Uso da cloroquina para Covid-19, um risco evitável, por Débora Melecchi*

A crise política no Brasil se aprofunda enquanto a curva de contaminação e morte pelo novo coronavírus (covid-19) cresce rapidamente no país. Em 15 de maio de 2020, o ministro da Saúde, Nelson Teich, pediu demissão diante de divergências com o Presidente da República sobre temas como uso da cloroquina e medidas de isolamento. O presidente Bolsonaro intensifica, a cada dia, a defesa para que o Ministério da Saúde recomende o uso mais amplo de cloroquina.

 

 

Porém, o protocolo do Ministério da Saúde recomenda o uso da cloroquina apenas para “casos críticos da Covid-19”.

Mas Bolsonaro quer induzir pacientes a usar o medicamento na fase inicial.

Essa insistência ocorre diante dos primeiros estudos sem evidência científica da eficácia da cloroquina (e de nenhuma outra substância) no tratamento dos pacientes positivos para a Covid-19.

Até esse momento, os resultados têm demonstrado que este medicamento pode não ser eficaz para tratar pacientes de Covid-19, incluindo pacientes com sintomas leves.

E o que de fato vem sendo demonstrado são os efeitos indesejáveis, incluindo problemas cardíacos.

Aqui estamos nos referindo a publicações em revistas renomadas como a The New England Journal of MedicineJAMAThe BMJ 1 e The BMJ 2;

São necessários novos estudos randomizados, controlados e com um grande número de pacientes, para uma conclusão sobre a eficiência desse medicamento.

Até o dia 14/05/2020, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) emitiu parecer de aprovação ética para 270 protocolos de pesquisas científicas relacionadas ao coronavírus, sendo que 15 ensaios clínicos são com cloroquina/hidroxicloroquina.

Até a publicação desta nota, o uso da cloroquina para tratar a Covid-19 é desaconselhado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), exatamente pelos motivos expostos acima.

A Anvisa, inclusive, decidiu enquadrar a hidroxicloroquina e a cloroquina como medicamentos de controle especial para evitar desabastecimento no mercado, uma vez que são utilizadas no combate de doenças como lúpus e artrite reumatoide.

Na busca de proteção, é legítimo as pessoas buscarem alternativas para o combate à covid-19, mesmo diante da falta da confirmação de um medicamento eficaz.

No caso da hidroxicloroquina, pesquisa encomendada pelo Conselho Federal de Farmácias (CFF), registrou aumento de 67,93% nas vendas nos primeiros três meses de 2020, comparado ao mesmo período do ano anterior.

Infelizmente, o uso da cloroquina ultrapassou o debate científico e se tornou uma questão política no Brasil.

Nas últimas três semanas, por determinação do Presidente da República, foram produzidos 1.250.000 comprimidos, que estão sendo enviados aos estados.

É um aumento de 900% em relação aos 125 mil comprimidos que o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx) costumava produzir em um ano inteiro, principalmente para consumo interno contra a malária.

Se o ritmo de produção vier a ser mantido, pelo menos mais um milhão de comprimidos poderão ser produzidos nos próximos 30 dias.

Mas o próprio Exército informa que a capacidade total, se necessário, pode chegar a um milhão por semana.

Isso se houver matéria-prima, que depende de importação da Índia.

Além disso, vale questionar o uso de verbas públicas num momento de calamidade pública para produção de medicamento sem confirmação para tratamento da Covid-19.

É preciso levar em conta o momento excepcional, mas isso não pode significar abandonar a racionalidade.

Tais atitudes do Presidente da República ferem a ciência; desrespeitam o juramento dos profissionais da Saúde ao compromisso de exercer a profissão com dignidade, respeito ao ser humano e à vida; e, além de mortos pela Covid-19, teremos mortos por uso indevido de medicamentos.

O Conselho Nacional de Saúde (CNS), através da Comissão Intersetorial de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica (Cictaf), tem alertado quanto ao uso de medicamentos ainda em estudo contra a Covid-19, uma vez que não possuem eficácia comprovada e podem causar danos à saúde.

Tem reafirmado a Saúde e a Assistência Farmacêutica como direito constitucionais, e a defesa do acesso racional a medicamentos, de forma segura, eficaz e de qualidade, a preços acessíveis, respeitando a necessidade das pessoas.

E ainda a defesa da ciência, da necessidade de articulação entre os diversos setores da sociedade, viabilizando a redução da dependência de equipamentos e insumos, construindo uma ampla e robusta produção nacional.

*Débora Melecchi é diretora de Organização Sindical da Fenafar e conselheira do Conselho Nacional de Saúde.