Medicamentos: insumos de saúde para nós, mercadoria para o Governo?

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Artigo do presidente da Fenafar, Ronald Ferreira dos Santos, e do pesquisador da  Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) Jorge Bermudez denuncia que o governo trata venda de medicamentos como se fosse venda de arroz, feijão, laranja.

por Jorge Bermudez e Ronald Ferreira dos Santos*

A sociedade brasileira é locupletada diuturnamente com propostas, ao serviço de interesses diferentes e muitas vezes divergentes, compatíveis muitas vezes com a “usina de crises” com que o presidente da Câmara dos Deputados chamou o atual governo.

Nascido na base de apoio do governo, ou dos filhos da base, o Senado Federal registrou há uma semana (13/06/2019) o PL 3589/2019, de autoria do Senador Flávio Bolsonaro, transformando os medicamentos em meros objetos de consumo.

Alterando a Lei 5.991/1973, o referido projeto de lei “permite a dispensação de medicamentos em todos os estabelecimentos comerciais”, incluindo estabelecimentos hoteleiros e similares, se referindo a “medicamentos anódinos”, não sujeitos a prescrição médica.

Na contramão de toda a orientação que a Saúde Global vem discutindo e que teve pontos altos na recente Assembleia Mundial da Saúde no último mês de maio em Genebra, com expressiva participação de delegação do Brasil, propõe-se agora no Brasil que os medicamentos sejam tratados como bens de consumo, como mercadorias, como quinquilharia a venda em qualquer estabelecimento comercial, como se compra arroz, feijão, legumes ou pão.

Os grandes foros mundiais, incluindo a Organização Mundial da Saúde e as Nações Unidas, vem abordando a questão do acesso a medicamentos no contexto de direitos humanos fundamentais e na necessidade de atingir populações negligenciadas e vulneráveis.

Essas ações estão contextualizados na Agenda 2030 e nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que todos os países membros da ONU assinaram e que inclui o compromisso de implementar ações com o objetivo de não deixar ninguém para trás.

A questão do acesso a medicamentos tem estado de maneira permanente nas agendas das organizações multilaterais, dos governos, dos organismos não-governamentais, de uma maneira geral nos diálogos da nossa sociedade.

Aprendemos muito no Brasil no passado recente com a pandemia de HIV/Aids e a resposta brasileira, com a produção local de ARVs (antirretrovirais), com o fortalecimento da produção pública, com a competição genérica e com a possibilidade de ter emitido uma licença compulsória em 2007.

O Brasil enfrenta ainda o “imbroglio jurídico-politico” com o tratamento da Hepatite C, o desenvolvimento e produção nacional do Sofosbuvir e a impossibilidade de fornecer, a preços mais baixos, ao SUS, pela litigação jurídica de empresa de capital transnacional e que se sente no direito de continuar fornecendo o produto com alegação monopólica.

Temos muito a aprender ainda nas negociações em curso para a discussão do Tratado de Livre Comércio do Mercosul com a União Europeia, em que pressionam nossos governos com cláusulas TRIPS-plus que nossa soberania e nossos interesses teriam a obrigação de rejeitar.

O que significaria para o Brasil a venda livre de medicamentos?

Significaria dispensar o papel dos profissionais de saúde, em especial do Farmacêutico, das questões relacionadas com o acesso a esses medicamentos.

Significaria renunciar aos ensinamentos das nossas universidades, a renunciar a reconhecer nossas políticas públicas (Política Nacional de Medicamentos e Política Nacional de Assistência Farmacêutica) e, em especial, não reconhecer a luta permanentemente que temos tido para reconhecer que as farmácias, além de estabelecimentos de saúde, muitas vezes representam a porta de entrada do cidadão no sistema de saúde, nosso SUS, modelo para o mundo e que iniciativas governamentais atuais insistem em desconstruir ou até em incluir nas reformas ultra neoliberais que fortalecem o Capital Financeiro e a privatização e desmerecem o cidadão.

Palavras de alerta: vamos respeitar nossa Constituição! O mundo está de olho no Brasil!

*Jorge Bermudez  é pesquisador da  Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) e Ronald Ferreira dos Santos, presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos).

Fonte: Viomundo
Publicado em 24/06/2019