33 anos de erosão orçamentário-financeira dos direitos sociais na CF/88

Hoje é aniversário da Constituição Federal, mas não há muito a comemorar do ponto de vista do arcabouço fiscal que lhe dá sustentação cotidiana no ciclo orçamentário de todos entes políticos da federação brasileira. Paradoxalmente a pretexto de manter o teto dado pela Emenda 95/2016, tem sido — paulatinamente — quebrado o piso da proteção social desenhado em 5 de outubro de 1988.

 

 

A despeito de não haver redução formal no rol de direitos sociais inscritos no artigo 6º da Constituição, seus instrumentos de defesa na seara orçamentário-financeira têm sido submetidos a contínuo processo de esvaziamento ao longo desses trinta e três anos de sua vigência. Oportuno lembrar que, na quarta-feira da próxima semana (13/10/2021), voltará à pauta do Supremo Tribunal Federal a ADI 5.595, onde tem sido feito o debate sobre a vedação de retrocesso no piso federal em saúde.

A pretexto de recorrentes ajustes fiscais no Brasil, redesenhos normativos sucessivos incidiram sobre dois pilares (a saber, vinculação orçamentária e organização federativa solidária) que deveriam garantir — em reforço recíproco — a dimensão objetiva dos direitos à saúde e à educação e do arranjo sistêmico da seguridade social.

Desde 1988, a tese primordialmente adotada pelos poderes políticos seria a de que as finanças públicas tenderiam a um suposto desequilíbrio intertemporal por força do comportamento das despesas primárias, sem que se avaliasse concomitantemente o fluxo das despesas financeiras e a trajetória regressiva das receitas tributárias. Vale lembrar que a maioria das renúncias fiscais tem sido concedida por prazo indeterminado e sem monitoramento adequado do impacto nas metas fiscais e das contrapartidas prometidas no ato da sua instituição.

Assim, desenrolaram-se dezenas de emendas constitucionais que tiveram — direta ou indiretamente — escopo de reduzir o arcabouço normativo que rege o custeio dos direitos fundamentais na Constituição Federal. A justificação de tais iniciativas sustentava que seriam mutuamente excludentes as políticas de estabilização monetária, câmbio flutuante e resultado primário teoricamente capaz de estabilizar a trajetória da dívida pública (que perfazem o assim chamado tripé macroeconômico), de um lado, e a garantia de direitos sociais no Estado de Bem-Estar almejado constitucionalmente para o país, de outro.

Assim como se fossem antípodas em disputa no orçamento geral da União, a tensão entre estabilidade econômica e efetividade dos direitos sociais se situava sobre frágil equilíbrio jurídico-institucional, com repercussão direta ou indiretamente para o processo de endividamento.

Dada a existência mal equacionada de inúmeros conflitos distributivos incidentes sobre as contas públicas, os pisos de custeio da saúde e educação e o orçamento da Seguridade Social operavam, tanto no campo simbólico, quanto no pragmático, como uma espécie de contrapeso fiscal à necessidade de custo alegadamente ilimitado para as políticas monetária, creditícia e cambial.

Desvincular receitas, reduzir o escopo dos regimes de gasto mínimo e restringir o alcance interpretativo de transferências intergovernamentais equalizadoras das distorções federativas tornou-se estratégia, assumida implicitamente pela União desde o início da década de 1990, de estabilização macroeconômica, sobretudo, monetária.

Interessante notar a trajetória da desvinculação de receitas da União (DRU) no ato das disposições constitucionais transitórias (ADCT), cuja maior repercussão é a redução do saldo de contribuições sociais destinadas ao orçamento da Seguridade Social. A instituição da DRU se deu por meio da Emenda Constitucional de Revisão nº 1/1994, a pretexto de ser medida alegadamente transitória e excepcional, mas, desde então, foi sucessivamente prorrogada por meio de sete emendas ao ADCT para estender a sua vigência até 31/12/2023 (Emendas n.º 10/1996; 17/1997; 27/2000; 42/2003; 56/2007, 68/2011 e 93/2016).

Por outro lado, cabe rememorar o esvaziamento da responsabilidade de equalização fiscal da União em face dos entes subnacionais nas políticas públicas de educação e saúde, cujo arranjo orgânico constitucionalmente pressupõe rateio federativo de recursos na forma tanto do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), quanto do Sistema Único de Saúde (SUS).

A omissão federal quanto ao dever de complementação equitativa na educação básica obrigatória afronta o artigo 211, §§1º e 7º da Constituição e as estratégias 7.21, 20.6 e 20.7 do Plano Nacional de Educação (Lei federal nº 13.005/2014) que se referem ao conceito do custo aluno qualidade inicial e custo aluno qualidade (CAQi e CAQ). Tal omissão já foi diagnosticada, embora não totalmente sanada, pelas instâncias de controle, como se depreende da tentativa de postergar a quitação dos precatórios do extinto Fundef por meio da PEC 23/2021.

Na saúde, a falta de consolidação das pactuações federativas celebradas na Comissão Intergestores Triparte para aprovação do Conselho Nacional de Saúde e publicação pelo Ministério da Saúde restringe nuclearmente o alcance do artigo 198, §3º, II da Constituição, tal como consignado pelo Acórdão TCU 2888/2015.

Some-se a isso o fato de que o piso federal em ações e serviços públicos de saúde — fixado inicialmente pelo artigo 55 do ADCT em 30% do orçamento da Seguridade Social — foi redesenhado de forma reducionista pelas Emendas 29/2000, 86/2015 e 95/2016, o que fez com que a participação proporcional da União no custeio do SUS caísse em quase 25% no volume global de recursos públicos vertidos pelos três níveis da federação.

Eis o contexto em que é preciso reconhecer, como dois lados da mesma moeda, a regressividade proporcional de custeio dos direitos fundamentais por parte da União, de um lado, e a fragilização da equitativa descentralização de responsabilidades e repasses federativos que amparam políticas públicas definidas estruturalmente no texto constitucional, de outro.

Na série histórica dos seus trinta e três anos de vigência, depreende-se um implícito processo de desconstrução do constitucionalismo dirigente assumido na CF/1988, a pretexto de consolidação fiscal cada vez mais exigente da redução do tamanho do Estado. Eis o processo de inversão de prioridades alocativas definidas constitucionalmente, quiçá esteja-se diante de toda uma “constituição dirigente invertida”, tal como bem suscitam os professores Gilberto Bercovici e Luís Fernando Massonetto.

Tal trajetória foi criticamente acentuada desde a promulgação da Emenda 95/2016. Isso porque o supostamente transitório e excepcional “novo Regime Fiscal” impôs vintenário teto global de despesas primárias, no intuito de conter, sobretudo, a progressividade de custeio proporcional à arrecadação estatal nas ações e serviços públicos de saúde e nas atividades de manutenção e desenvolvimento do ensino (respectivamente artigos 198 e 212 da Constituição).

Trata-se de constitucionalizar a orientação finalística de a execução orçamentária dever produzir resultado primário positivo, por meio da contenção global das despesas primárias até 2036, alegadamente em prol da sustentabilidade intertemporal da dívida pública brasileira.

O que está em disputa, estruturalmente, é a interpretação sobre o alcance das normas que tanto distribuem responsabilidades federativas em arranjos orgânicos para consecução de políticas públicas; quanto fixam vinculações de receita, deveres de gasto mínimo em saúde e educação e um orçamento especializado na seguridade social.

Enquanto isso, nenhum avanço efetivo houve no regramento dos limites para a dívida mobiliária e consolidada da União (em omissão inconstitucional quanto aos artigos 48, XIV e 52, VI da CF); na relação temerária entre Tesouro e Banco Central (cujos custos e riscos fiscais das políticas cambial e monetária são mal equalizados no ciclo orçamentário); tampouco na contenção das renúncias fiscais, a despeito do artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e do artigo 113 do ADCT, acrescido pela Emenda 95.

A bem da verdade, essa tensão não é privativa da realidade brasileira, tampouco corresponde a um fenômeno recente. O questionamento do arcabouço protetivo do Estado de Bem-Estar Social (tal como fora construído por inúmeras nações democráticas em todo o mundo) tem ocorrido, desde a década de 1970, a partir da agenda de austeridade fiscal que busca lhe reduzir escopo em prol da primazia de custeio das despesas financeiras.

Caso houvesse equidade no debate brasileiro sobre ajuste intertemporal nas contas públicas para torná-lo consonante com o ordenamento constitucional vigente e enquanto não forem fixados os limites de endividamento federal a que se referem o artigo 48, XIV e artigo 52, VI da Constituição Federal, deveriam ser vedadas:
a) a criação ou expansão de programas e linhas de financiamento;
b) a remissão, renegociação ou refinanciamento de dívidas que impliquem ampliação das despesas com subsídios e subvenções e;
c) a concessão ou a ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária.

Cabe rememorar, a esse propósito, que, diante do risco de ruptura da “regra de ouro” inscrita no artigo 167, III da Constituição, é que os §§3º e 4º do artigo 21, bem como os artigos 116 e 139 da Lei de Diretrizes Orçamentárias da União para 2019 (Lei 13.707/2018) dispuseram acerca da necessidade de regramento detido sobre a redução das renúncias fiscais, ao longo deste exercício financeiro, mediante:
a) prazo de vigência para cada benefício (em regra, não superior a cinco anos);
b) cronograma para aludida redução “em pelo menos 10% ao ano e que o respectivo ato seja acompanhado dos objetivos, metas e indicadores relativos à política pública fomentada, bem como da indicação do órgão responsável pela supervisão, acompanhamento e avaliação”, visando à meta global de redução à metade do estoque de renúncias fiscais no nível federal, para que
c) “a renúncia total da receita, no prazo de 10 anos, não ultrapa[ssa]sse 2% do produto interno bruto (PIB)”, já que, em 2017, chegara ao patamar de 4% do PIB, tal como diagnosticado nas contas anuais da presidência da República pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
Em igual medida, a LDO federal/2019 previu, em seus artigos 147 e 148, a necessidade de o Banco Central elucidar, de forma mais detida e abrangente, não só a análise e justificativa da evolução das

operações compromissadas no período, como também o impacto e os custos da 1) remuneração das disponibilidades do Tesouro Nacional; 2) manutenção das reservas cambiais, demonstrando a composição das reservas internacionais com metodologia de cálculo de sua rentabilidade e do custo de captação; bem como a 3) rentabilidade de sua carteira de títulos, destacando os de emissão da União.

Em esforço de refinamento dos deveres já inscritos no artigo 7º, §2º e no artigo 9º, §5º, ambos da LRF, a LDO federal de 2019 apontou contundentemente para a centralidade dos custos das operações compromissadas e das reservas internacionais para os resultados das políticas cambial, monetária e creditícia conduzidas pelo Banco Central.

Dois anos se passaram desde a LDO/2019 e nada disso, porém, avançou — de fato e de direito — no ordenamento das finanças públicas brasileiras. A Emenda 109/2021, aliás, provou ser engodo a promessa de revisão das renúncias fiscais.

Houve tão somente fugacidade no diagnóstico de que era preciso ampliar as rotas de ajuste fiscal, mas, infelizmente, tais medidas de resolução no controle das renúncias fiscais e das despesas financeiras ainda são quimeras distantes. Enquanto são erodidos os pilares sociais da Constituição de 1988, nunca saem do papel efetivamente as promessas residuais de enfrentar as iniquidades fiscais que perpassam as receitas e as despesas financeiras.

Embora seja inegável a necessidade de aprimoramento da qualidade do gasto primário para sua maior aderência ao respectivo planejamento setorial das políticas públicas, em termos de metas físicas e financeiras, bem como seja imperativa a busca por controle de produtividade mínima dos servidores públicos na despesa de pessoal, não se pode ignorar a necessidade de ampliar o foco do debate sobre as regras fiscais do país.

A raiz do impasse fiscal brasileiro reside na falta de coordenação entre as políticas fiscal, monetária e cambial, com severa fragilidade institucional e normativa para a gestão da dívida pública.
Sem se ampliar o enfoque do ajuste fiscal para que ele passe a compreender também os impasses na gestão das receitas e das despesas financeiras, somente se empreenderá — de forma ainda mais veloz e evidente — a erosão orçamentário-financeira dos direitos sociais, em desconstrução do eixo de identidade da Constituição de 1988.

*Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Fonte: Conjur