Morre Carlos Araújo, advogado das causas populares

Na madrugada do dia do advogado, celebrado no dia 11 de agosto, faleceu o advogado trabalhista Carlos Araújo. Nascido em 1938 em São Francisco de Paula (RS), formou-se em direito em 1963, mas começou a advogar em 1960, ainda durante a faculdade. Atuou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), nas Ligas Camponesas, na luta armada contra a ditadura, no Partido Democrático Trabalhista (PDT) e foi deputado estadual. Durante 20 anos foi casado com a ex-presidenta Dilma Rousseff.

 

 

Em sua página no Facebook, o presidente da Fenafar prestou sua homenagem a Carlos Araújo. “Hoje o Brasil e o Rio Grande do Sul ficaram menores, um grande guerreiro do Povo Brasileiro e da nossa Nação nos deixou, Carlos Araujo, sua luta em defesa da Democracia, dos Direitos dos Trabalhadores, da soberania de nossa Nação permanecerão vivas. Foram incontáveis as contribuições para nosso país de Carlos Araujo, mas tenho a obrigação de deixar registrado seu papel fundamental em contribuir com a categoria farmacêutica e com os defensores do Direito a Saúde, no vitorioso processo legislativo que transformou recentemente o conceito de Farmácia, de simples comercio para estabelecimento de saúde. CARLOS ARAUJO PRESENTE!!!”

A farmacêutica gaúcha Jussara Cony também deixou sua homenagem ao advogado. “Um grandioso companheiro de todas as lutas! Pelos direitos dos trabalhadores, pela Soberania e Democracia! Um socialista! Tive a honra de militância conjunta e de tê-lo encontrado como Deputado Estadual, quando exerci meu primeiro mandato na ALERGS! Muito aprendizado e gratidão!

Como Farmacêutica, meu querido colega Ronald Ferreira Dos Santos, presidente do CNS, não foram poucas as vezes que posso ser testemunha de sua defesa dos direitos de nossa categoria e da saúde pública e universal! Carlos Araújo é um dos homens dos quais o Rio Grande do Sul e o Brasil podem se orgulhar!”.

Na entrevista abaixo, concedida em seu escritório, em Porto Alegre, em 15 de abril de 2015, a Luiz Otávio Ribas, Araújo conta histórias como o caso da greve na fábrica de fogões Wallig, lembra do tempo que militou com Francisco Julião, de sua admiração por Getúlio Vargas e sobre a influência de seu pai, um dos precursores da advocacia trabalhista no país.

Essa entrevista fez parte da tese “Direito insurgente e assessoria jurídica popular” defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 2015. A entrevista na íntegra com Carlos Araújo pode ser acessada neste link.

Conte um pouco da sua trajetória como advogado.
Carlos Araújo: Meu pai abriu o primeiro escritório de advocacia no Brasil somente para trabalhador, em 1952. Eu entrei neste escritório posteriormente e passei a advogar nele. Desde o início, quando eu tinha 14 anos, eu comecei a frequentar a Justiça do Trabalho, fui criado dentro da Justiça do Trabalho. Eu comecei bem antes de me formar, naquela época podia advogar no quarto ano da faculdade. Eu fiz uma faculdade longa, porque eu andava metido nestes movimentos todos. Eu comecei na advocacia com movimento social nos anos 1960. Eu sempre tive minha atividade política paralela à advocacia, tanto partidária, no início do PCB, quanto nos nossos próprios movimentos. Quando rompemos com o partidão, por exemplo, criamos um movimento chamado Castro Alves, depois eu fui para a Liga Camponesa fazer guerrilha com o Francisco Julião, no nordeste. Depois voltei pra continuar advogando, mas sempre diretamente na porta da fábrica. Neste período eu tentei, volta e meia, fazer algumas lutas sindicais, escrevendo jornais operários. Depois fui para a luta armada contra a ditadura, fiquei quatro anos preso. Então voltei a advogar da mesma forma, com os sindicatos. Assim, voltei a fazer esta advocacia mais direta na porta de fábrica. Embora eu tenha feito política a minha vida inteira, eu sou sobretudo um advogado, um advogado de pobre das injustiças do dia-a-dia. Eu advogo pra gente muito pobre mesmo, metade das questões eu não cobro nada.

De onde vem esta inspiração pela “advocacia de pobre”?
Vem do meu pai. Nós somos do interior do Rio Grande do Sul, São Francisco de Paula. Ainda criança via muito meu pai dormindo no escritório de casa. Volta e meia ele e um cara ficavam horas conversando. Eu e meus irmãos tínhamos 8, 9 e 10 anos de idade e aquilo começou a aguçar nossa curiosidade. Volta e meia a gente via na rua pichações: “O petróleo é nosso”, “Fim das armas atômicas”, “Fim da guerra na Coréia” e achávamos curioso, não sabíamos o que era. Um dia, nos disseram: “Isso é o pai de vocês que pinta estas coisas de madrugada”. Nós ficamos aguçados com aquilo e fomos perguntar para o pai: “O que é isto aí? Estão dizendo que é tu que pinta junto com outro cara”. Então nós fomos entender que os dois eram do partidão. “Oh pai, melhor pintar de dia, todo mundo sabe que é tu! Pra que pintar de noite, é serração, frio, chuva”. Eu gostava muito do meu pai, queria ser igual a ele, o meu sonho era ser do partido comunista. A partir dos 11 anos fui estudar em Porto Alegre e, quando tinha 14 para 15 anos, meu colega me convidou para entrar na Juventude Comunista e aquilo passou a ser a minha vida.

Como você relaciona advocacia e política?
Quando comecei só fazia advocacia social, a militância política era outra coisa. Depois, a advocacia social passou a ser na porta de fábrica. Eu fazia pouquíssima advocacia sindical, era apenas diretamente nas fábricas. O resultado disto é que hoje eu tenho um pronto socorro jurídico do trabalhador. De uns 8 anos para cá eu atendo, junto com outros colegas, tudo que o trabalhador precisa: briga com vizinho, separação, prisão, ação de despejo, tudo que atormente. Eu sou um advogado, eu não sou um jurista, eu sou um advogado de gente pobre. Então eu sou um combatente, minha advocacia é de combate. Um exemplo é o caso da fábrica de fogões Wallig, em Porto Alegre, em 1975, quando me envolvi na organização da greve com cerca de mil trabalhadores. As condições de trabalho eram péssimas, como em todo Brasil. Hoje ainda não são boas, imagina naquela época. Eles faziam tudo do fogão nesta fábrica. O setor de fundição era de chão batido porque saltava do forno muito aço, ferros incandescentes. O cara trabalhava só com um calçãozinho porque se trabalhasse de roupa pegava fogo nela. Mas os patrões não pagavam insalubridade, então nós fizemos greve.

Como foi o período com o Francisco Julião?
Ele era um grande revolucionário. Foi o primeiro cara na história do Brasil, talvez da humanidade, a usar o Código Civil como a arma principal de combate em defesa do pobre. Isto é uma coisa inacreditável, fantástica. Como é que ele descobriu isto!? Quando atuamos juntos em Santo Antão, ele perguntava aos trabalhadores da cana de açúcar: “Há quanto tempo você estava lá?”. “Ah, eu estou há 10 anos”. “Então você tem uma posse de boa-fé e pacífica e o patrão tem que lhe indenizar”. Então o Julião começou a ingressar com ações de indenização. Esta história, muito interessante, não é contada, os latifundiários, os senhores de engenho começaram a ficar loucos! Julião, um excelente orador e poeta, um organizador, começou a empolgar o povo, e os trabalhadores começaram a se unir. Fiquei numa Liga Camponesa durante muito tempo, que tinha 20.000 associados com carteirinha, pagando. O Código Civil foi a base ideológica das Ligas Camponesas, vamos dizer assim. Essa era a sustentação jurídica que dava aquela possibilidade. Ao mesmo tempo que a lei era o algoz do povo brasileiro, era tanto a garantia máxima da propriedade privada, também deixava brechas. E nós entrávamos nestas brechas.

Como você percebe esta relação dos movimentos com o Estado brasileiro?
Depende muito de quem tem hegemonia do aparelho de Estado. O Getúlio Vargas, que foi o maior revolucionário que este país já conheceu, proporcionou tanto dentro do campo como na cidade, uma relação de colaboração entre o Estado e o movimento. Não do movimento com o Estado. Ele criou, por exemplo, a Companhia de Colonização do Oeste, que só numa das levas assentou 5.000, em Goiás. Foi o que originou depois o movimento mais espetacular, depois da Liga Camponesa, o Formoso, de Zé Porfírio. Então o Getúlio Vargas tem uma relação de colaboração muito forte com os movimentos sociais. É uma discussão mais profunda que tem que se ter sobre a questão do Getúlio como propositivo do desenvolvimento capitalista no Brasil. Um dos esteios desta proposta do Getúlio era a Justiça do Trabalho para as relações trabalhistas. No discurso dele, que infelizmente é pouco conhecido, posse entre aspas, quando toma o poder, em 1930, Getúlio fala, em síntese: “no meu governo terá aprofundamentos, uma democracia social, uma democracia política e uma democracia econômica, o Estado será o indutor do desenvolvimento. Mas, as rédeas do processo estarão nas mãos firmes das forças sociais”. Ele era muito esperto e cunhou a expressão “forças sociais” para dizer quem teria a hegemonia do processo. Dois anos depois os paulistas vieram de lá e disseram: “ estas tais de forças sociais não tem condições de dirigir o capitalismo brasileiro. Só quem tem condições é o capital internacional, que tem know how, dinheiro, conhecimento”. A proposta do Getúlio era: “nós temos que dividir o bolo enquanto ele estiver crescendo”. E os paulistas diziam, “não dá pra dividir o bolo enquanto está crescendo, senão não cresce nunca”. E esta é a questão que vem até hoje. Então, tentando responder eu digo que há uma colaboração do Estado, mas também há um Estado repressor.

Você, por algum motivo, pensou em abandonar a advocacia?
Não, de jeito nenhum. Mas tive que abandonar durante a Ditadura porque me prenderam. Quer dizer, eu abandonei várias vezes. Uma vez para atuar nas Ligas Camponesas, no nordeste. Lá fiquei com o Francisco Julião uns três anos. Depois, em 1968, para a luta armada contra a Ditadura, aquela loucurada que nós fizemos. Depois, em 1992, para ser deputado. Depois voltei para advocacia, cansei de ser deputado estadual. Aliás, ficar na cadeia foi uma das melhores coisas que eu já fiz na vida. Foi fundamental porque tive 4 anos para, pela primeira vez, estudar seriamente, 13, 14, 15 horas por dia, de forma sistemática. Eu sempre digo que não há nada mais prazeroso do que o orgasmo sexual, mas o orgasmo do conhecimento também é quase igual.

Da redação com Brasil de Fato