Vacinas contra Covid-19 devem ser bem público, livre de patentes

Na última sexta-feira, 29/01, a Fenafar realizou durante a programação do Fórum Social Mundial a mesa de debates: Patentes para quem? Fórum pela Liberdade de Uso do Conhecimento. 25 anos depois! Com a participação de especialistas e lideranças que protagonizaram o debate sobre o tema nos anos 90, os participantes destacaram as graves consequências que a aprovação da lei de patentes e a política de desmonte do parque industrial da saúde trouxeram para o Brasil.

O presidente da Fenafar, Ronald Ferreira dos Santos, abriu a atividade destacando a posição histórica da Federação Nacional dos Farmacêuticos, sempre em defesa da vida, da saúde pública e de políticas que impulsionem a independência científica, tecnológica e industrial do Brasil. 

Participaram do debate o chefe do departamento da política de medicamentos da ENSP/Fiocruz, Jorge Bermudez, a ex-coordenadora do Fórum pela Liberdade de Uso do Conhecimento, Sara Kanter, as deputadas federais Alice Portugal e Jandira Feghali, Allen Habert diretor da CNTU, e Rilke Novato, diretor da Fenafar.

Bermudez chamou a atenção para o fato de que “esse debate sobre a propriedade intelectual, sobre medicamentos, ganha relevo e está diretamente relacionado ao direito à vida, não um produto mercadológico, mas como direito à cidadania”, afirmou. E, constatou que, infelizmente, o país vivem um momento em que “os interesses da vida estão numa situação desfavorável diante dos interesses do mercado”, diante das iniquidades do mundo capitalista e da financeirização do momento atual. 

Resgatando o processo que culminou na aprovação da atual Lei de Patentes, ele avalia que o que ela “representou foi a total submissão e entreguismo do Brasil a interesses estrangeiros, promovendo desindustrialização, desemprego, dependência tecnológica”. As consequência disso estão escancaradas hoje, quando o Brasil não tem insumos para produzir vacinas e outros produtos no momento da pandemia, ressaltou.

A farmacêutica e ex-coordenadora do Fórum pela Liberdade do Uso do Conhecimento, Sara Kanter, afirmou que a pandemia evidenciou um cenário de apartheid social. Os preços diferenciados praticados pelas indústrias farmacêuticos por dose da vacina é um exemplo. A Pfizer, por exemplo, vendeu a vacina para a União Européia por U$ 14,50 a dose. Já o preço para os EUA foi de U$ 19,50 e para Israel U$ 28,00. São números que explicitam o “interesse político comercial sobre o produto farmacêutico e que gera uma situação de opressão e dependência”. 

Sobre luta promovida na década de 90, a ex-coordenadora do Fórum pela Liberdade do Uso do Conhecimento lembra que o primeiro dossiê contra o PL das Patentes contava com a assinatura de 84 entidades. No segundo dossiê já haviam mais de 1000 entidades signatárias, o que mostra a importância do debate e do movimento realizado, que acabou se espraiando para vários setores que compreenderam os riscos que aquele projeto trazia para a soberania do país. “Nós queríamos licença compulsória, queríamos que medicamentos básicos não fossem objeto de monopólio”, disse recuperando algumas das bandeiras daquele movimento. 

Denunciou o Artigo 40 da Lei, que admite a extensão de prazo para patentes, e que é alvo de controvérsia jurídica “se é constitucional ou não”. Mas uma coisa é certa: “Essas extensões podem fazer com que produtos nunca cheguem ao mercado e outras empresas não possam lançar seus genéricos”, afirmou. E ressaltou a importância de o Brasil ter ao menos conseguido aprovar uma legislação para a produção de medicamentos genéricos no país.

A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) 

A parlamentar contextualizou o cenário no qual surgiu a proposta da Lei de Patentes. “Era um momento da avalanche da destruição do papel do Estado. Fizemos nossa Constituição na contramão desse movimento. Nossa Constituição surge como fruto de uma luta pós-ditadura com muitas coisas represadas. Depois disso, FHC, foi desmontando a Constituição. E ai vem o projeto de patentes”, resgata.

Mesmo nos momentos mais favoráveis da luta política, lembra Jandira, “tentamos alterar essa lei que está em vigor e não conseguimos concluir nenhuma delas. É um tema muito difícil no Congresso Nacional, mesmo no tema das doenças negligenciadas”.

E a disputa é internacional. “O Canadá compra três vezes o número de doses que a sua população precisa e não há mediação, nenhum organismo internacional para mediar isso. Eu compro e ninguém me impede”.

No Brasil, destaca, “seja pela questão das patentes e dependência de produção no complexo econômico industrial da saúde estamos numa situação difícil, porque somos hoje uma vergonha internacional nas nossas relações com o mundo”, lamenta. “Fiocruz e Butantan nos salvam como plantas fabris, mas não temos IFAS suficientes para suprir essa produção. O IFA que vai chegar ao Butantan é devido à relação direta do governo de São Paulo com a China”.

Esse é o cenário criado por um governo que nega a ciência, e não se pensa em saúde sem pensar tecnologia, ciência, meio ambiente, afirmou a deputada. “Nós não nos preparamos para a pandemia. Nós não temos comando, estimulo”. 

Para Jandira “não deveria haver patente de vacina, nem para doenças negligenciadas e nem para determinados produtos e medicamentos que salvam vidas. Essas patentes deveriam ser quebradas:.

O engenheiro Allen Habert  também relembrou das lutas e movimentos realizados na década de 90 para impedir que o projeto das patentes fosse aprovado. Mas foi e sem salvaguardas importantes que foram introduzidas em outros países. Ele citou, por exemplo, as salvaguardas aprovadas pela Índia que permitiu que o país se transformasse no maior produtor de genéricos e matérias primas.

Olhando o cenário atual, marcado pela pandemia, Habert citou a manifestação do secretário-geral da ONU, António Gutierres que defendeu durante reunião na Alemanha, em dezembro, que a vacina fosse tratada como bem público. Ele defendeu que a vacina esteja disponível “para todos em todas as partes”. Habert diz que é preciso dar mais visibilidade a esta posição, porque “só há saída para a humanidade se todos forem vacinados. Não tem economia sem vacina”, disse. 

O dirigente da CNTU salientou que o Brasil é campeão mundial em vacinação. Somos o país que mais vacina no planeta.

A deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), coordenadora da Frente Parlamenta em Defesa da Assistência Farmacêutica disse que é momento de renovar os votos em torno do Fórum pela Liberdade do Uso do Conhecimento e como é estratégica a luta contra as potentes e a propriedade intelectual para os produtos da cadeia relacionada aos insumos farmacêuticos e medicamentos. “A propriedade intelectual nesse momento de pandemia, diante de um vírus que se agrava, não é humano. Ela [propriedade intelecutal] não pode ser um obstáculo à vida de bilhões de seres humanos”, alerta.

Para a parlamentar, única farmacêutica no Congresso Nacional, “a capacidade produtiva da indústria farmacêutica concentrada em poucos países não consegue dar conta dessa manda. A luta em defesa da paz, da vida, e da soberania passa hoje por coletivizarmos o conhecimentos”.

Alice avalia que a sociedade brasileira talvez ainda não tenha a total dimensão de como o Brasil foi desconstruído com o golpe de 2016. Acompanhamos recentemente a luta contra a privatização dos laboratórios estatais, alguns foram vendidos como o BahiaFarma. Mas apesar das privatizações e do desmonte, ainda há possibilidade de reativar o parque industrial que estava montado no Brasil. 

Hoje nossa bandeira é em torno da Vacina Já!. “Em novembro aconteceu a reunião da OMC, nela países como Índia e Africa do Sul  e Quênia propuseram que não houvesse sanções comerciais para os países que quebrassem as patentes das vacinas. Seria uma trégua temporária das regras das patentes em nível mundial, dos segredos industriais e do monopólio farmacêutico. Estamos enfrentando um vírus que veio para dizimar a vida humana. Estados Unidos, União Europeia, Suíça, Noruega, Canadá, Japão e Austrália foram contra. Quem destoou da sua história diplomática em defesa de uma visão universal foi o Brasil, que se agregou ao bloco dos ricos. Mesmo a China, que tem duas vacinas, se colocou aberta para flexibilizar a patente. Dos 160 países, 99 anunciaram adesão à proposta”, disse Alice. 

Mas apesar de haver um clamor internacional pela quebra das patentes em torno da vacina para o Covid-19, o Brasil segue uma linha negacionista e submissa aos interesses do capital e dos ricos.

O último a fazer uso da palavra foi o diretor da Fenafar, Rilke Novato. Rilke também recuperou os interesses por detrás da aprovação da Lei de Patentes no Brasil: a Organização Internacional de Propriedade Intelectual e a Indústria Farmacêutica. Ele destacou três prejuízos trazidos pela lei: o primeiro é consequência de termos aprovado uma lei sem um tempo de carência para entrar em vigor. “O Brasil por lei não reconhecia patentes e em um ano passou a reconhecer. Não teve tempo de desenvolver um parque industrial de fármacos e se preparar”. O segundo foi incluir na lei o instituto das patentes pipeline. “Termos permitido reconhecer patentes de produtos que já estavam disponíveis no Brasil trouxe prejuízos imensos ao país”. E o terceiro foi permitir a discussão “sobre patentemente de microorganismos, algo que pode ter implicações severas no campo da agricultura”.

Além disso, destaca Rilke, “não houve dispositivo por parte do governo FHC de garantir algum avanço nacional, investimentos para contrapor essa situação criminosa que passamos a ter com a aprovação dessa lei”.

Para o diretor da Fenafar o Fórum pela Liberdade do Uso do Conhecimento “está vivo e precisamos mantê-lo muito vivo. Conhecimento precisa ser livre, não é mercadoria, principalmente o conhecimento que pode ser usado para salvar vidas”, afirmou.

Renata Mielli