Farmácia Popular 2021: mais uma supressão de benefícios sociais

Em artigo, Jorge Bermudez, pesquisador em Saúde Pública da Ensp/Fiocruz e pesquisador parceiro do CEE-Fiocruz, mostra como o desmonte do Programa Farmácia Popular, mesmo em meio à maior crise sanitária da histórica recente, é parte de uma política definida e sistemática para afastar a população de seus direitos.

 

 

anúncio de que o governo reduziu e pretende reduzir ainda mais os recursos para o Programa Farmácia Popular na pandemia não deve causar surpresa para aqueles que acompanhamos as ações que vêm sendo implementadas considerando uma abordagem ultraliberal, promovendo a supressão de benefícios sociais e apostando na necropolítica e no empobrecimento radical da nossa população. Assim, essa proposta não pode ser analisada como iniciativa isolada, mas como parte de uma política bem definida, coerente com uma crueldade sistemática, tomada como diretriz que afasta a população de seus direitos.

Afinal de contas, há maior crueldade do que reduzir o auxílio emergencial, duramente conquistado pela insistência dos parlamentares de partidos de oposição, de R$ 600 para R$ 150 a 375, impondo para muitos optar entre comprar um botijão de gás e não ter o que cozinhar, ou comprar uma cesta básica e não ter como cozinhar? O descompromisso sem limites está, ainda, alicerçado na situação caótica a que chegamos, pelo negacionismo e descalabro de exemplos como a promoção de aglomerações e o desprezo pelas medidas de contenção necessárias de nossos gestores federais, ao longo deste primeiro ano da pandemia!

A medida de corte de recursos e comprometimento do Programa Farmácia Popular deve ser entendida no contexto de uma série de outras implementadas ao longo dos últimos anos e que tiveram como seu principal deflagrador a EC-95/2016, no governo Temer, com o teto dos gastos públicos congelados pelo período de vinte anos. Esse congelamento asfixia ainda mais nosso Sistema Único de Saúde, já subfinanciado, sobrecarregado e que precisa cada vez mais incorporar novas tecnologias para enfrentar as doenças prevalentes no Brasil.

A rede própria de Farmácia Popular era um modelo para a assistência farmacêutica, para a dispensação de medicamentos e ao mostrar a centralidade do medicamento nas ações de saúde

Já em 2017, fizemos questão de criticar a decisão do então ministro da Saúde, Ricardo Barros, no governo Temer, de acabar com a rede própria do Programa Farmácia Popular, desativando as quase 400 unidades que cumpriam papel fundamental na assistência às populações, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. É necessário lembrar que essa rede própria oferecia um elenco de 112 medicamentos, complementando o acesso a produtos essenciais. Mais do que isso, era um modelo para a assistência farmacêutica, para a dispensação de medicamentos e ao mostrar a centralidade do medicamento nas ações de saúde. De maneira autoritária e sem discutir com o Conselho Nacional de Saúde, essa rede foi desmantelada, sem considerar que, em alguns municípios, era a única alternativa para a população – o que viria a onerar ainda mais o sistema com atendimentos e até internações que poderiam ser evitadas.

É lamentável saber que a cruzada contra os interesses sociais também se viu refletida na discussão e aprovação da Lei Orçamentária Anual para 2021, contemplando cortes de R$ 34 bilhões a R$ 36 bilhões na Saúde, em plena pandemia, e comparando com o orçamento de 2020, além de cortes substanciais nas áreas de Educação (27%) e de Ciência e Tecnologia (28,7%), mostrando a indiferença dos nossos governantes para com essas áreas.

Por essa sucessão de medidas econômicas que penalizam a população, o empobrecimento cresce assustadoramente, com dados mostrando que, em 2020, aumentou de 51,4% para 55,9% a proporção de famílias brasileiras que passam a formar a base da pirâmide social nas classes D/E, correspondendo a 41 milhões de famílias ou 56% dos domicílios (ver aqui). Entretanto, nada disso sensibiliza a sanha ultraliberal do atual governo.

Vemos, agora, que, no auge do agravamento da pandemia no Brasil, no momento em que o mundo fecha suas fronteiras para os brasileiros; no momento em que a pandemia se encontra fora de controle pelas medidas adotadas tardiamente, em função do negacionismo presente nas ações, atitudes e manifestações públicas de governantes; no momento em que chegamos à tentativa de acordos com a Opas [Organização Pan-Americana de Saúde] para auxiliar no abastecimento de medicamentos de emergência para intubação (); é nesse momento que o governo propõe a redução do Programa Farmácia Popular, o Aqui tem Farmácia Popular, em que tantos estabelecimentos comerciais mostram um compromisso maior com políticas sociais do que os próprios governantes. 

A redução de recursos no auge da pandemia pode e deve ser caracterizado como crime de lesa-humanidade, mas essas acusações não sensibilizam nossos frios representantes do ultraliberalismo e da financeirização das políticas sociais. 

Vamos lembrar que a rede de farmácias privadas engajadas no Aqui tem Farmácia Popular, hoje, atende a cerca de 20 milhões de pessoas com doenças crônicas. Pessoas carentes, muitas delas com dificuldades de transporte e locomoção, buscam nessas farmácias, e acabam obtendo, gratuitamente, medicamentos para asma, diabetes e hipertensão arterial, comorbidades consideradas de risco na pandemia. Entendemos que, hoje, mais de 30 mil farmácias acabam poupando o sistema hospitalar, sobrecarregado e em colapso com o atendimento emergencial na Covid.

Nas palavras da deputada Carmem Zanotto, presidente da Frente Parlamentar Mista da Saúde no Congresso Nacional: “A Farmácia Popular não pode acabar!…”. Também já escutamos palavras de solidariedade do Conass, do Conasems e do Conseho Nacional de Saúde, destacando a necessidade de manutenção desse programa que tanto vem impactando positivamente o acesso da população brasileira aos medicamentos. O programa se encontra em operação em cerca de 80% dos municípios brasileiros, ou quase 4,4 mil cidades. Há evidências de que ele vem evitando internações por hipertensão arterial ou por diabetes, portanto, evitando a sobrecarga da rede hospitalar no Brasil. 

Desde sua estruturação, em 2004, o Programa Farmácia Popular, além de oferecer gratuitamente, na rede de farmácias conveniadas, o elenco de medicamentos para tratamento da asma, diabetes e hipertensão arterial, entrega, com descontos consideráveis, medicamentos para o tratamento de afecções que incluem osteoporose, rinite, doença de Parkinson, glaucoma e dislipidemia, incluindo, ainda, contraceptivos e fraldas geriátricas a preços subsidiados.

O acesso a medicamentos deve ser considerado cada vez mais no contexto da Saúde como direito de todos, gravado no nosso texto constitucional. Nesse sentido, todas as iniciativas capazes de expandir esse direito deve ser defendida e apoiada, na contramão do corte de benefícios sociais conquistados arduamente nos últimos anos. 

Defender o acesso a medicamentos, defender o SUS é defender a vida! Vamos tratar medicamentos como bens públicos e nunca como mercadorias ou commodities que possam ser objeto das disputas de mercado que estamos enfrentando. Como bem disse nossa deputada Alice Portugal, coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa da Assistência Farmacêutica, nesse sentido, vamos consolidar o acesso a medicamentos como um direito humano fundamental! As lições aprendidas com a pandemia nos mostram a importância da solidariedade sempre se confirmando como políticas sociais no confronto de políticas econômicas e da saúde na defesa de interesses sociais, no combate à incoerência entre direitos coletivos e direitos individuais. 

Defender o SUS é defender a Vida!

Fonte: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.