A dura realidade da saúde pública no Chile: ‘Se você não tem dinheiro, morre’

erta Aparicio tem 49 anos. Ela é empregada doméstica no Chile, mas não trabalha regularmente há mais de seis anos. Ela parece cansada e, acima de tudo, triste. Berta tem osteoartrite lombar grave, doença que não a deixa viver em paz sem dores constantes.

“As dores são terríveis, às vezes elas não me deixam dormir, andar ou me mexer. Há dias em que não consigo sair da cama”, diz a chilena.

Ela conta que a dor nas costas apareceu alguns anos atrás, mas que nunca havia pensado que o problema iria afetar o restante de sua vida.

“Aos 43 anos, fui a um consultório em Cerrillos [região de Santiago], fiz a primeira ressonância e eles me disseram que duas vértebras estavam danificadas, e que eu precisava de uma cirurgia, mas que não ele podiam realizá-la no local. Então me encaminharam para o Hospital El Carmen de Maipú.”

Naquela época, em 2013, se Berta tivesse dinheiro para bancar um tratamento particular, o problema provavelmente teria se resolvido.

No entanto, como a grande maioria dos chilenos, ela é atendida pelo Fundo Nacional de Saúde (Fonasa), o serviço público de saúde do Chile. E pedidos por melhorias nesse sistema se tornaram um dos motes dos recentes protestos no Chile.

Depois do início das dores, Berta nunca imaginou que entraria em um ciclo interminável de espera por consultas e exames.

“Esperei uma consulta por três anos”, diz. Após o diagnóstico, ela foi encaminhada a um centro de assistência hospitalar para uma consulta com um médico. “Quando cheguei ao hospital, o médico disse: ‘Sinto muito, aqui não tratamos desse problema, não temos esses especialistas'”.

Há algumas semelhanças com as deficiências do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro: em 2018, pesquisa feita pelo Datafolha para o Conselho Federal de Medicina apontou que 82% dos entrevistados se queixavam do tempo de espera para consultas, 80% do tempo de espera para exame de imagem e 79% do tempo de espera para cirurgias.

Eu já perdi a esperança. Sinto que isso é uma brincadeira’, diz Berta Aparicio,

Em 2015, quando Berta tinha 46 anos, ela teve que retornar ao mesmo consultório em que tinha iniciado sua jornada.

“Voltei ao médico e pedi uma consulta no hospital San Borja Arriarán, na região onde eu moro, mas, enquanto isso, o tempo passou e eu não aguentava mais a dor”.

“Um cinesiologista me disse que a doença já havia avançado muito e que ele não poderia me ajudar sem a opinião de um especialista”, disse.

Berta esperou mais três anos até que finalmente recebeu uma ligação que poderia dar uma solução a seu problema.

“Eles me ligaram de San Borja Ariarán em 9 de abril deste ano deste ano. Me disseram que iriam fazer uma infiltração na minha coluna. Eu fiquei tão feliz, tão feliz, mesmo que não fosse a operação que eu precisava. Pensei que finalmente meu problema seria resolvido, mesmo que fosse com uma solução diferente (da usual). Pensei que não sentiria mais dor”.

Porém, nenhuma das dez sessões de infiltração prometidas pelo Fonasa se realizou até agora.

“Sinto que eles estão brincando comigo. Toda vez que vou perguntar, eles me dizem: ‘senhora, não venha aqui, você tem que esperar, o sistema

 é assim.’ Sinto uma raiva, uma impotência… Porque você acredita em uma ilusão e eles não querem você. Você sabe que eles não se importam com você”, diz Berta.

Berta mora em um pequeno apartamento de dois quartos na comunidade de Cerrillos, em Santiago, ao lado de seu marido Juan Véjar e de três filhos.

Juan é assistente de vinícola e ganha o salário mínimo equivalente a 301 mil pesos (cerca de R$ 1.600), dinheiro que mantém toda a família, pois Berta não consegue mais trabalhar.

Em tese, o Fonasa garante cobertura total de suas despesas médicas. No entanto, ninguém informou quanto tempo ela deveria esperar para acessar esse benefício. Já se passaram mais de seis anos de dores constantes.

“Eu já perdi a esperança. Sinto que isso é uma brincadeira. Uma vida de pura injustiça. Se você não tem dinheiro neste país, você morre.”

Diante da situação extrema, seu marido, Juan, até pensou em medidas desesperadas.

“Descobrimos em uma clínica particular, que cobra cerca de 5 milhões de pesos (cerca de R$ 26 mil) pela operação. Então meu marido me disse: ‘Vamos vender o apartamento para que você possa operar’… Mas respondi que precisamos deixar a casa para nossos filhos… Vamos deixar assim. Aprendi a viver com dor”.

“Estou em um estado muito ruim, fisicamente e emocionalmente. Sofri depressão. Sinto que neste país é um pecado ser pobre. Estamos em uma sociedade que não enxerga os pobres: os ricos estão ficando mais ricos e os pobres, mais pobres”.

Os números da desigualdade

O médico José Miguel Bernucci, secretário nacional da Faculdade de Medicina do Chile, diz que “o problema que estamos tendo, e que vem aumentando com o tempo, são as diferenças que os pacientes encontram nos sistemas público e privado”.

No sistema de saúde chileno, a desigualdade está fortemente presente.

O Fonasa, órgão público que administra os fundos do Estado para a saúde, atende 80% da população e divide seus beneficiários em quatro seções, de A a D, de acordo com sua renda econômica — sendo A a mais baixa.

17% dos chilenos usam os Isapre ou instituições de saúde previdenciária. O percentual restante corresponde ao sistema de saúde das Forças Armadas.

Os Isapre são entidades privadas de saúde, com as quais o paciente assina um contrato. Cerca de 7% do salário mensal bruto do paciente é destinado a essas instituições privadas. Quanto mais dinheiro você paga, mais benefícios terá.

Nesse ponto começam as diferenças entre os dois sistemas.

“No Chile, os gastos com saúde ficam em 50% para entidades privadas e 50% para o sistema público. Parece justo, mas precisamos entender que 80% das pessoas são atendidas no serviço público”, diz Bernucci.

Há mais mais alguns agravantes, segundo ele.

“Em saúde, existe um fator chamado determinantes sociais, que diz que as pessoas mais pobres têm a tendência a ficar mais doentes e, portanto, a gastar mais com saúde do que os mais ricos.”

Ou seja, a população mais vulnerável fica mais desprotegida no país.

Há outro conceito, chamado “despesas diretas”, que é o dinheiro que sai diretamente da renda primária de cada família para bancar a saúde. Nesse ponto, o Chile também não se sai muito bem.

Segundo um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) lançado neste ano, a média desse tipo de gasto em seus países-membros é de 20,6% da renda das famílias. No entanto, no Chile, esse valor sobe para 35,1%, ocupando o terceiro lugar nos países com os maiores custos diretos com saúde, apenas abaixo da Letônia e do México.

Em comparação, enquanto os brasileiros gastaram de seu próprio bolso o equivalente a US$ 351 per capita em 2016 em despesas com saúde, os chilenos gastaram US$ 766 em 2018, também segundo a OCDE.

Para Bernucci, esse é um fato que fala por si. “Isso gera desigualdade imediata, porque cria uma diferença entre os grupos de pacientes que não podem pagar, aqueles que podem pagar menos e aqueles que podem pagar mais”.

Em outras palavras, a saúde, a vida e a morte dependem do quanto o cidadão chileno têm disponível para gastar.

Embora o sistema público deva atender a maioria das pessoas, conseguir uma consulta não é tarefa simples, como mostra a história de Berta.

Segundo informações do Ministério da Saúde, em junho de 2019, mais de 1,5 milhão de pessoas estavam em lista de espera de um especialista ou de uma cirurgia.

No total, existem mais de 1,8 milhão de solicitações.

Mais de 130 mil desses pedidos estão abertos há dois ou três anos. Pouco mais de 80 mil solicitações existem há mais de três.

“Cerca de 54% das horas de trabalho dos médicos chilenos são preenchidas no setor privado e os 46% restantes no público”, diz Bernucci. Ou seja, os 80% da população que usam o sistema público têm muito menos chances de receber atenção médica do que os 20% mais privilegiados.

As histórias de pessoas que morreram à espera de uma consulta ou cirurgia são contadas às centenas. Em alguns casos, a autorização para o procedimento só ocorre depois que o paciente já morreu.

Bernucci diz que é necessário mais espaço na saúde pública e, claro, mais recursos financeiros. “Precisamos de uma mudança na lógica de financiamento da saúde para reduzir a desigualdade”, diz o médico.

Ele também afirma que a falta de profissionais no serviço público é uma questão de gestão e financiamento do setor, e não apenas da vontade dos profissionais.

O governo propõe soluções?

Em conversa com a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, a médica Paula Daza, subsecretária de Saúde Pública do Chile, falou sobre como o governo tem enfrentado essa situação, que, embora se arraste há muitos anos, está se tornando visível hoje mais do que nunca por causa dos protestos.

“Temos percebido que o sistema melhorou efetivamente, temos um serviço sólido de saúde, temos um número significativo de hospitais públicos, temos profissionais de saúde, mas continuamos a fazer as coisas da mesma maneira”, diz Daza. “O número de especialistas que temos não dá conta do número de pessoas que temos de atender. Isso é uma realidade”, diz.

Para isso, afirma, existe um plano especial que já está em funcionamento há algum tempo e está progredindo sistematicamente.

“Hoje temos um sistema que funciona, mas obviamente não responde às demandas. E é por isso que novos sistemas estão sendo implementados para fornecer respostas”.

Um desses novos mecanismos é o chamado Hospital Digital. Ele é um hospital de base, com especialistas médicos e equipe preparada para responder às perguntas de diferentes partes do país. O objetivo é agilizar os processos.

“O Hospital Digital foi uma criação nacional, do médico Emilio Santelices (ex-ministro da Saúde), que reuniu muitas ideias de várias partes e conseguiu criá-lo. Não vai resolver todos os problemas, é um apoio aos serviços de saúde, mas é claramente uma melhoria na gestão, atenção, oportunidade”, diz Daza.

Embora o orçamento da saúde para 2020 vá aumentar em 5,7%, o Hospital Digital teve um corte de recursos. No entanto, a subsecretária de Saúde Pública garante que o hospital continua sendo uma prioridade para o governo.

Segundo ela, há mais propostas em andamento no setor.

“Uma delas é a conta do seguro que visa cobrir doenças graves, que é muito urgente e esperamos que seja divulgada rapidamente”, diz Daza. Esse projeto está alinhado com a redução de listas de espera e a redução de despesas diretas com saúde.

Por sua vez, no dia 9 de novembro, o ministro da Saúde do Chile, Jaime Mañalich, anunciou que em dezembro apresentará uma grande reforma do sistema público.

“Estamos propondo uma reforma muito importante, eu diria a mais importante para o Fonasa nos últimos 40 anos, em consonância com as

 demandas dos movimentos sociais”, afirmou o ministro.

Já Daza diz que entende a angústia e o drama dos pacientes. “Esta é uma questão muito complexa, tremendamente sensível, é importante resolvê-la com urgência”, diz.

Após o acordo entre o governo e a oposição para redigir uma nova Constituição para o Chile, Bernuccia afirma que a saúde pública deve ser


“A Constituição do Chile diz que o cidadão tem o direito de escolher o sistema de saúde, seja ele público ou privado, mas não possui uma disposição sobre o próprio direito à saúde. Uma mudança na Constituição em relação à garantia do direito à saúde é fundamental e é tônica das manifestações atuais”. prioridade.

Talvez em um futuro próximo, Berta finalmente consiga receber o tratamento ideal. Os recentes protestos podem ter motivado uma mudança importante no sistema de saúde do Chile.

“Fico um pouco feliz que esses protestos tenham surgido, (foi bom) para mim e para tantas pessoas que estão doentes. Os jovens foram ousados. Se eu pudesse me mover, sairia com uma placa dizendo que há anos estou esperando por saúde”, diz ela.

Fonte: BBC