Governo promove ‘privatização da loucura’ em sistema de saúde mental do país

Modelo incentiva eletrochoque, internação compulsória e hospitais psiquiátricos. Quem ganha são os interesses econômicos da indústria farmacêutica e da indústria de produção de manicômios.

 

 

Existe uma expressão no campo progressista da psicologia e psiquiatria no Brasil que diz o seguinte: “saúde não se vende, loucura não se prende”. Trata-se de um lema da luta antimanicomial, que desde o início do século 21 é travada contra o sistema de saúde mental que se baseia em métodos como a internação compulsória das pessoas consideradas “loucas”. Essas pessoas, em “sofrimento psíquico” ou dependentes de drogas, por exemplo, são ainda hoje objeto de tratamentos como a eletroconvulsoterapia (popularmente, eletrochoque), muitas vezes associada à tortura.

Desde 2018, ainda no governo Michel Temer, o sistema antimanicomial humanizador está em xeque, com a Nota Técnica Conad 01/2018. Na quarta-feira (6), o governo Jair Bolsonaro avançou ainda mais no sentido de reintroduzir no país a lógica que compromete mais de 50 anos de uma reforma psiquiátrica desenvolvida a partir da Europa – em países como Itália e França – que pretende reinserir “o louco” na sociedade.

Com as diretrizes da nova Nota Técnica n° 11/2019, do Ministério da Saúde e órgãos a ele ligados, incentiva-se a internação involuntária ou compulsória da pessoa com saúde mental comprometida, por decisão de pessoas ou entes alheios à vontade do paciente: médico, psiquiatra, o Estado ou familiares. Mais do que isso, a tendência é que se criem milhares de leitos (em hospitais públicos, de economia mista ou privados) bancados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), para tratar “loucos” segundo a lógica ultrapassada do século 20 cujo símbolo mais popularmente conhecido é o “eletrochoque”.

Por outro lado, trata-se de fato da privatização da loucura, em lugar do lema “saúde não se vende, loucura não se prende”. Com as normas da Nota Técnica, saem ganhando os interesses econômicos da indústria farmacêutica e da indústria de produção de manicômios.

“O que nós entendemos, enquanto psicólogos e conselhos de psicologia, é que a decisão de internação é do usuário do serviço, se ele entender que precisa de cuidados em tempo integral numa instituição. Essa é uma decisão do sujeito, e não do Estado, do médico ou da psicóloga”, diz Beatriz Brambilla, psicóloga e conselheira do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP).

“Durante os últimos anos, a gente vinha lutando pelo fechamento de todos os leitos de hospitais psiquiátricos, apostando em modelos de base comunitária e territorial de cuidado (do paciente). Agora, desde o ano passado, tem sido retomado este modelo de tratamento de segregação, internação das pessoas, muito focado apenas numa perspectiva biológica, dos sintomas e da cura”, acrescenta.

Segundo a psicologia contrária ao modelo que os governos Temer e Bolsonaro vêm adotando, o hospital psiquiátrico é extremamente prejudicial à pessoa submetida a sua lógica. “O sujeito perde as referências do trabalho, da família, da comunidade, da sua vida diária”, diz Beatriz.

A Nota Técnica do governo deve ser avaliada, portanto, a partir de dois pontos de vista:

1) o que se refere ao modelo de tratamento do paciente, propriamente dito;

2) o sistema de financiamento dessa política, que, além de representar um retrocesso, é financiada pelo Estado.

Hoje, o SUS já é objeto dessa política e os hospitais psiquiátricos que possuem convênios com o sistema têm leitos destinados à população para esse fim.

Inspeção

Em junho do ano passado, foi lançado um relatório reunindo os resultados da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, realizada em 2017 nas cinco regiões do Brasil. A inspeção foi feita pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC/MPF).

“Foi uma inspeção em 40 hospitais psiquiátricos no Brasil. Nessa inspeção já encontramos muitos casos de internação compulsória, de pessoas que não querem estar nesses espaços e são levadas pela família ou mesmo pelo Estado, o que representa a anulação do sujeito”, afirma Beatriz Brambilla.

Essa lógica está sendo retomada. É uma prática, na rede do SUS, contrária ao a um modelo da reforma psiquiátrica de acordo com o princípio segundo o qual “todos são iguais perante a lei”, do artigo 5° da Constituição de 1988.

O retrocesso vai na contramão da legislação em vigor, construída ao longo de quase duas décadas, como a Lei Paulo Delgado (Lei 10.216/2001), que regula as internações psiquiátricas e promove mudanças no modelo assistencial aos pacientes portadores de sofrimento mental. Assim como a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), que rechaça explicitamente a questão da internação.

“Esse tema, como um todo, deve ser entendido segundo três eixos: do ponto de vista legal da evolução que vínhamos conseguindo; sob o aspecto clínico; e no que diz respeito ao modelo de saúde pública. Na minha leitura, tudo isso está ameaçado neste momento. É muito retrocesso”, conclui Beatriz.

Fonte: Rede Brasil Atual, por Eduardo Maretti
Publicado em 11/02/2019