Pesquisadores comentam as ameaças ao programa brasileiro de HIV/Aids

Com uma atuação marcada por quebra de patentes, distribuição de medicamentos e combate à homofobia, o Brasil se consolidou como referência internacional em políticas públicas de enfrentamento à epidemia de HIV/Aids ao longo dos anos 1990 e 2000. Essa trajetória foi analisada pelos historiadores Marcos Cueto e Gabriel Lopes, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Na entrevista eles alertam para as ameaças que o retrocesso nestas políticas podem trazer para o país. 

O artigo Aids, Antiretrovirals, Brazil and the International Politics of Global Health, 1996–2008, publicado na revista Social History of Medicine (Oxford University Press), destaca o protagonismo do país na política global da Aids em meados dos anos 1990 até a primeira década do século 21.

No mês em que se celebra o Dia Internacional de Luta Contra a Aids, em 1º de dezembro, Lopes alerta, porém, para as ameaças às conquistas das últimas décadas. “Para que os avanços não sejam perdidos, as políticas voltadas para o combate ao HIV/Aids devem ser encaradas como políticas de Estado e não de governo. Por isso, é importante defender os ideais de saúde como direito, seguindo a Constituição Federal”. A data foi instituída pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no fim da década de 1980, para reforçar a solidariedade, a tolerância e a compreensão com as pessoas infectadas pelo HIV.

Nesta entrevista, os historiadores da COC falam sobre o artigo e discutem o atual cenário de enfraqueciemento das políticas públicas para o tema. Gabriel Lopes, que é bolsista de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC, critica o que chamou de ‘moralização da Aids’. “O movimento conservador, muitas vezes, relaciona a Aids a práticas consideradas impuras ou a comportamentos não desejáveis. Estes setores têm assumido um papel importante nesta ‘moralização’, tornando a questão mais complexa e obscura”, ressaltou.

O Brasil colocou os países em desenvolvimento em posição de destaque no cenário internacional, promovendo debates sobre processos e políticas de acesso universal a antirretrovirais (ARVs), como mostra o artigo. Quais foram as estratégias brasileiras neste processo? 
Marcos Cueto: O Brasil não somente desafiou as poderosas empresas farmacêuticas, como também a suposição de que as políticas internacionais de saúde eram definidas apenas por países desenvolvidos. As duas principais estratégias brasileiras neste processo foram a parceria entre sanitaristas, Organizações Não Governamentais (ONGs), pessoas vivendo com HIV, diplomatas e funcionários do governo e, em segundo lugar, a participação brasileira em importantes reuniões e redes internacionais para discutir o acesso gratuito a medicamentos. Os resultados da combinação de uma política de saúde esclarecida e ativismo da saúde contribuíram para que o país alcançasse relevância internacional.

Gabriel Lopes: Além disso, o Brasil incluiu grupos sociais neste debate, incorporando o ativismo, novas pesquisas sobre o tema, a política internacional e as práticas de saúde brasileira. Certamente, se o país não possuísse uma estrutura em termos de Sistema Único de Saúde, de corpo diplomático que soubesse dialogar com os outros países, além da capacidade de negociar e propor discussões com a indústria farmacêutica, não teria atingido essa posição.

Como foi a discussão proposta pelo Brasil sobre medicamentos antirretrovirais como mercadorias ou bens públicos e como isso influenciou o acesso gratuito a estes fármacos?
Marcos Cueto: O Brasil foi um modelo importante pela parceria entre diferentes atores, a luta contra a homofobia, a articulação entre prevenção e tratamento, a promoção de medicamentos genéricos e a redução de preços dos medicamentos de marca.

Gabriel Lopes: As políticas de saúde global de Aids foram influenciadas pelo advento dos antirretrovirais – fármacos usados para o tratamento de HIV/Aids e outras doenças infecciosas – a partir de 1996. A política de saúde brasileira, respaldada pelo SUS, defendia o acesso público e universal a estes medicamentos. No entanto, defensores das grandes indústrias farmacêuticas consideravam que o Brasil não era suficientemente pobre para conseguir a quebra de patente para obter esses remédios, enquanto os diplomatas envolvidos defendiam essa quebra para a distribuição gratuita dos remédios à população. Curiosamente, atualmente, os países que mais precisam destes medicamentos e de tratamento, são países pobres localizados na África, que menos têm acesso, revelando uma contradição com as ideias defendidas pelas farmacêuticas naquela época.

De que forma o Programa Nacional de Aids e Doenças Sexualmente Transmissíveis e o Sistema Único de Saúde (SUS) contribuíram para o protagonismo brasileiro nas políticas globais para o HIV/Aids?
Marcos Cueto: Os princípios de integralidade e participação da comunidade serviram para articular o trabalho de prevenção, tratamento e o ativismo em saúde, favoreceram a articulação brasileira no cenário internacional.

Gabriel Lopes: A estruturação do SUS, em 1988, que reconheceu a saúde como direito de todos os cidadãos e uma obrigação do Estado, foi fundamental para deixar o ambiente preparado para que o Brasil pudesse influenciar as políticas internacionais de saúde relacionadas ao HIV/Aids. Outro ponto importante foi a atuação do Estado, já que os diplomatas brasileiros estavam engajados em defender questões importantes frente à Organização Mundial do Comércio e o acesso a antirretrovirais, por exemplo. Além disso, este processo recebeu o apoio de organizações não-governamentais e da população, mobilizando intelectuais, artistas, formadores de opinião e a sociedade civil para o debate. Essa sinergia interna e externa foram fundamentais nesse período.

Como o contexto político brasileiro a partir de 2008, com a multiplicidade de partidos políticos e o desmantelamento da bancada multipartidária de saúde, interferiu na política nacional para HIV/Aids? 
Gabriel Lopes: Nesse período, mantiveram-se os ganhos em mortalidade, mas experimentou-se um aumento lento, mas constante, da morbidade pelo HIV, resultado de políticas de tratamento com pouca prevenção. Além disso, houve uma interferência da indústria farmacêutica internacional. Os antirretrovirais feitos na Índia ficaram em descrédito e toda a produção de medicamentos em países periféricos foi colocado em xeque. Observamos ainda ações importantes do governo americano que procuravam proteger a indústria farmacêutica.

Além disso, questões internacionais ligadas a alas conservadoras foram importantes para culpabilizar as pessoas portadoras do HIV/Aids. De certa forma, essa confluência também com setores conservadores nacionais interferiu nas questões brasileiras. Vale destacar que no período indicado no artigo – 1996 a 2008 – havia uma bancada da ciência e da saúde no congresso nacional, um grupo organizado que defendia essas questões. Atualmente, nós não temos isso, as coisas estão mais desmobilizadas e a tendência é que a saúde não seja vista como um direito.

Em maio de 2019, o Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde sofreu alterações e, atualmente, integra o outro departamento que se dedica também a doenças como hanseníase e tuberculose. Qual o impacto dessa decisão nas políticas de combate ao HIV/Aids?
Gabriel Lopes: Considerado referência mundial no tratamento de HIV/Aids, o Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais tem atuação histórica na luta contra a doença, como a oferta gratuita de tratamento para portadores do vírus. Outra iniciativa recente foi o encerramento das redes sociais relacionadas aos temas HIV/Aids. Essas medidas podem ampliar a invisibilidade desta doença, uma vez que reduziu o acesso da população a informações sobre doenças que continuam sendo uma questão de saúde pública global. O cenário atual é crítico e pode ser considerado um retrocesso, com tendência a se agravar. Essas doenças precisam ser encaradas como uma questão de saúde pública e devem ser enfrentadas em diversos níveis seja com informação de qualidade, prevenção, educação sexual ou o fornecimento de medicamentos.

Dados do Unaids, mostram um aumento de 21% no número de novos casos de infecção por HIV no Brasil entre 2010 e 2018. Qual a importância da educação sexual nesse contexto? 
Gabriel Lopes: Atualmente, observa-se a permanente ‘moralização da Aids’, que relaciona a doença a práticas consideradas impuras ou a comportamentos ‘não desejáveis’. Estes argumentos culpabilizam as pessoas e reforçam a ideia de que se você tem Aids é porque não estava de acordo com o comportamento ‘correto’ ou se envolveu com ‘pessoas erradas’. Setores conservadores [da sociedade] têm assumido um papel importante nessa ‘moralização’, tornando a questão mais complexa e obscura. Nesse contexto de conservadorismo, a educação sexual tem sido atacada por diversas frentes que defendem que esse assunto deve ser abordado prioritariamente pela família, excluindo a escola e outros grupos sociais do debate. Não adianta ter remédio e uma política de tratamento, se não se investe na educação sexual e na prevenção bem estruturada.

Diante do enfraquecimento de órgãos ligados às políticas públicas voltadas a essa questão, o que considera mais importante no enfrentamento do HIV/Aids nesse momento atual?
Gabriel Lopes: Como historiador, defendo que, para que os avanços não sejam perdidos, as políticas voltadas para o combate ao HIV/Aids devem ser encaradas como políticas de Estado e não de governo. A sociedade precisa estar mobilizada para que os ganhos conquistados até aqui sejam retidos e para que certos avanços não sejam perdidos com a mudança de governo. É importante defender os ideais de saúde como direito, seguindo a constituição federal.

Fonte: Agência Fiocruz
Publicado em 03/12/2019