As patentes da Gilead e crime de lesa-humanidade*

Artigo demonstra como o oligopólio da indústria farmacêutica afeta a soberania das nações e compromete a vida das pessoas ao tratar medicamentos como mercadorias, impondo preços abusivos e impedindo que os países possam produzir genéricos que poderiam salvar milhares de vidas. O artigo é assinado pelo presidente da Fenafar, Ronald Ferreira dos Santos, por Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde e pelo pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, Jorge Bermudez. 

A voracidade da indústria farmacêutica não reconhece  limites e a manutenção de monopólios ignora o impacto que essas estratégias representam na opção entre vida ou morte daqueles que precisam ter acesso a medicamentos. Estamos diante do maior imbróglio político-jurídico dos últimos tempos, com a Gilead tentando a qualquer custo manter o monopólio do fornecimento de Sofosbuvir ao SUS e impedindo a aquisição de uma versão genérica desenvolvida, estritamente dentro da legalidade, por Farmanguinhos e o Consórcio BMK, registrada na Anvisa e ofertada a um preço inferior ao que vem sendo praticado pela Gilead.

Inicialmente, houve toda uma polêmica gerada pela expectativa de patente (de 126 solicitações de proteção patentaria reduzidas a 13 e depois a apenas 2), que estabeleceu um monopólio de fato, não de direito, pois a patente ainda não havia sido concedida. Essa estratégia acarretou toda uma mobilização da sociedade civil junto ao INPI e a própria Gilead pleiteando o indeferimento das patentes, em nome do direito à saúde e na defesa dos pacientes antes das patentes.

O deferimento da patente PI 0410846-9, intermediário utilizado pela Gilead no processo de desenvolvimento e produção do Sofosbuvir, levou a uma nova onda de mobilização, gerada pelo receio dessa patente poder bloquear a produção pública do medicamento.

Logo se verificou que essa patente, ao não ser parte da rota de síntese do Sofosbuvir desenvolvido no contexto da cooperação de Farmanguinhos com o Consórcio BMK, não impediria a aquisição do produto pelo SUS.

Entretanto, santa inocência pensar que a empresa norte-americana não iria utilizar todas as manobras possíveis para impedir qualquer concorrência.

Inicialmente questionando que um Acordo de Cooperação Técnica havia sido transformado em PDP sem base legal, tentaram impugnar as compras pelo Ministério da Saúde, semeando a discórdia, mostrando que os aspectos econômicos e o lucro representam para a indústria interesses acima dos interesses sociais. Não fosse isso suficiente, a imprensa nos mostra que, utilizando a pressão e conseguindo uma liminar, pela via judicial conseguiram paralisar doze caminhões carregados da versão genérica e mais barata do Sofosbuvir às portas dos almoxarifados, deixando 15 mil pessoas simplesmente sem tratamento no Brasil. Pela imprensa, a Gilead se recusa a comentar o fato em mais esta etapa da queda de braço entre interesses individuais/ comerciais e os interesses coletivos/ sociais. A alegação da Gilead, de acordo com as notícias da imprensa, foi de que  o preço ofertado pela Blanver, empresa concorrente, seria “inexequível”. Esqueceu a Gilead de mencionar que, logo depois de lançar o produto em escala mundial ao custo de 84.000 dólares e ser questionada pelos países centrais, sublicenciou 11 companhias farmacêuticas indianas a produzir e comercializar ao preço de 840 dólares pelo curso de 12 semanas de tratamento, mas para eles esse preço seria “exequível”.

Acabamos de completar 70 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos! Acabamos de ler o Relatório do Painel de Alto Nível em acesso a medicamentos do Secretário-geral das Nações Unidas. O Conselho Nacional de Saúde, junto com a Fiocruz e outros parceiros, acaba de aprovar a Carta do Rio de Janeiro por ocasião da mobilização de mais de 700 pessoas em dez seminários regionais e o 8o Simpósio Nacional de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica. Mas, que importa tudo isso para essa indústria que coloca o lucro acima de qualquer outro interesse?

Se o governo brasileiro propõe um “crime de lesa-Patria” ao tentar empurrar o denominado Deferimento Sumário de patentes sem exame do mérito, certamente podemos afirmar que, ao colocar o interesse econômico acima da saúde das nossas populações, ao judicializar um pleito político e de interesse corporativo, na contramão das discussões.munduais, a indústria farmacêutica, neste caso a Gilead com a insistência intransigente do monopólio, está cometendo e deve ser responsabilizada pelo crime de “lesa-Humanidade”! Com a palavra, nossos juristas e a defesa da Saúde como direito de todos e dever do Estado.

Brasília, 21 de dezembro de 2018

*Fernando Pigatto – Presidente do Conselho Nacional de Saúde 
Jorge Bermudez – Pesquisador
NAF (Departamento de Políticas de Medicamentos e Assistência Farmacêutica), Escola Nacional de Saúde Pública – FIOCRUZ 
Ronald Ferreira dos Santos – Presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos