Saúde, economia e sensatez na pandemia, por Leandro Farias

O distanciamento social tem custos econômicos, mas adotá-lo parcialmente ou renunciar a ele pode custar muito mais caro.

 

 

É “natural” que haja um “tensionamento” para a flexibilização das medidas de distanciamento social por conta dos impactos econômicos gerados. Os resultados divulgados da economia no primeiro trimestre mostram queda de 3,4% na população ocupada e redução de 2% no consumo das famílias. O déficit primário em Abril foi de 92,9 bilhões de reais, e parece haver pouco espaço para uma expansão fiscal vigorosa como uma crise dessa magnitude exige.

Porém, precisamos reforçar que a economia é feita por pessoas. Os números revelam que apenas o Estado do Rio de Janeiro ultrapassou a marca de países inteiros (China, Índia e Rússia!) em número de mortes confirmadas por covid-19: 6.781 mortes e 69.499 casos confirmados.

Um estudo da Fiocruz indica que, mesmo com a restrição parcial ou total ―o chamado lockdown― o coronavírus continuará circulando, e qualquer nível de relaxamento resultará em aumento de casos e mortes (dezenas de milhares), uma vez que, na ausência de uma vacina ou medicamento para covid-19, as medidas de distanciamento social são necessárias por alguns períodos até 2024.

“(…) a adoção das medidas de distanciamento social resulta em custos econômicos, mas adotá-las parcialmente ou renunciar a elas pode significar não só custos maiores, mas também graves impactos para a saúde. (…) Podem gerar dezenas de milhares de óbitos que seriam evitáveis”, dizem os pesquisadores.

Relembrando: a economia é feita por pessoas. Convido você, leitor, a fazer a seguinte reflexão: Quanto tempo leva para que um profissional se torne capacitado para desempenhar tal função? Quanto tempo VOCÊ levou para se tornar apto para executar o seu trabalho? Lembrando que os processos de “ficar de pé”, “andar”, “falar”, “ler”, “escrever”, “fazer contas” e todo o período acadêmico são inclusos no seu tempo de aprendizado.

Na economia é preciso haver quem produza e quem compre, e para isso é necessário haver saúde. Consultas, exames, internações e medicamentos têm um custo elevado, basta olhar o percentual do PIB estadunidense destinado a assistência à saúde.

Segundo dados da Subsecretaria de Atenção Hospitalar Urgência e Emergência, do início de abril até a semana passada, 1.298 pacientes morreram com síndrome respiratória aguda grave na fila à espera de um leito nas 26 emergências da Prefeitura do Rio. E neste momento, leitor, haveria centenas de pessoas na fila por leitos de enfermaria e UTI.

Levantamento feito pela Ministério Público do Rio de Janeiro mostra que há 1.886 leitos impedidos de funcionar em 27 hospitais da rede federal, estadual e municipal, e 55% deles, por conta de falta de profissionais, seguido de infraestrutura.

Enquanto isso, em plena pandemia, investigações expõem possíveis relações entre lideranças políticas, empresários, o governador do Rio e o escritório de advocacia da primeira-dama, cenário semelhante a um “passado bem recente”.

Mais de 700 milhões de reais foram destinados à montagem e ao funcionamento de sete hospitais de campanha, porém, dos sete hospitais prometidos para o final do mês de abril, apenas um está em funcionamento, o Hospital do Maracanã, que, apesar de inaugurado, segundo reportagens, tem demonstrado desorganização e precariedade.

Em 31 de dezembro a China enviou o alerta à Organização Mundial de Saúde sobre a covid-19. Após um mês, a Itália registrou os dois primeiros casos (dois turistas chineses). Em 26 de fevereiro, anunciamos o primeiro caso, um homem que retornou de viagem da Itália. Ou seja, o Brasil acompanhou antecipadamente a gravidade e as medidas sanitárias adotadas pela China, Europa e EUA.

Ainda não existe vacina ou medicamento para eliminarmos o vírus. Por ser uma doença nova, ainda estamos pesquisando e buscando entender quais os efeitos do vírus em nosso organismo. Precisamos ganhar tempo! Por isso a importância de não sobrecarregarmos o nosso sistema de saúde. A retomada gradual da economia requer, primeiramente, respeitar e seguir com as medidas de distanciamento social, implantação de um programa de testagem em massa da população e ampliação da oferta de leitos hospitalares. Economicamente falando: toda vida importa!

Leandro Farias é farmacêutico sanitarista da Fiocruz, fundador do Movimento Chega de Descaso

“Quem possui a patente desta vacina?”, pergunta o jornalista na TV. “O povo, eu diria. Não há patente”, responde o médico e cientista norte-americano Jonas Salk na famosa entrevista que concedeu em 1955, após lançar a primeira vacina contra a poliomielite, doença contagiosa que desafiava a medicina na época. “Você poderia patentear o sol?”, continuou o cientista, que se tornou inspiração para quem defende medicamentos acessíveis à população.A provocação do pesquisador faz sentido. O preço dos medicamentos está diretamente ligado à existência (ou não) de uma patente – instrumento que garante exclusividade na fabricação e venda de um produto. Sem concorrentes, os valores dos remédios tendem a ser mais altos – o que garante lucro maior à indústria farmacêutica.

No Brasil, contudo, uma singularidade da legislação permite que o monopólio de um remédio dure mais tempo do que a média mundial, o que atrasa a entrada de genéricos no mercado, que são mais baratos.

Por conta disso, o Ministério da Saúde vai desperdiçar R$ 3,8 bilhões nos próximos dez anos com a compra de nove medicamentos, indicados para o tratamento de câncer, hepatite C, reumatismo e doenças raras. O gasto foi estimado por pesquisadores do Grupo de Economia da Inovação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Enquanto o prazo de uma patente farmacêutica é de 20 anos em outros países, no Brasil a duração média é de 23 anos. Há casos que passam dos 28 anos. “A legislação brasileira dá um benefício extra às empresas que não estava previsto [no tratado internacional que determinou duas décadas como tempo padrão]”, diz a economista Julia Paranhos, coordenadora do estudo.

Artigo 40, parágrafo único

O problema no Brasil gira em torno da Lei de Propriedade Industrial, aprovada em 1996 sob forte lobby do setor farmacêutico. Um artigo da lei autoriza o tempo extra às patentes caso o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) demore mais de 10 anos para analisar um pedido. Atualmente, o órgão leva em média 13 anos para concluir uma análise do setor farmacêutico – o que amplia para 23 anos, em média, o monopólio sobre um remédio.

Um exemplo é o dasatinibe, usado no tratamento de leucemia. Nos últimos cinco anos, o Ministério da Saúde gastou em média R$ 69 para cada comprimido. Na Índia, a versão genérica é vendida a R$ 16. O remédio similar poderia chegar ao Brasil em abril de 2020, quando completa 20 anos a patente do dasatinibe. Porém, o mercado nacional continuará fechado até novembro de 2028, porque o INPI demorou 18 anos para analisar o pedido.

O polêmico trecho da lei está em debate no Supremo Tribunal Federal, onde uma ação de 2016 da Procuradoria-Geral da República pede o fim da prorrogação de patentes no Brasil, mas não há prazo para o julgamento.

O INPI concedeu 683 patentes farmacêuticas desde 1997, das quais 630 (92%) foram beneficiadas com a prorrogação acima dos 20 anos, segundo levantamento do grupo de pesquisa da UFRJ, que investiga o setor há mais de 10 anos.

Mesmo quando a prorrogação não se aplica, como no caso das patentes pedidas antes de a lei entrar em vigor, a indústria farmacêutica recorre ao artigo 40 para entrar com ações na Justiça pedindo a extensão do monopólio. É o caso do humira (para artrite reumatoide e outras doenças), do laboratório norte-americano Abbvie. Uma ação judicial garante à empresa a exclusividade no Brasil até fevereiro de 2020, embora sua patente tenha expirado em 2017.

Enquanto uma decisão definitiva da Justiça não sai, a insegurança jurídica mantém concorrentes fora do mercado. Com isso, nos últimos cinco anos, o Ministério da Saúde repassou R$ 3,7 bilhões à Abbvie para comprar o humira. Ao final dos três anos de prorrogação da patente, o prejuízo estimado ao Ministério da Saúde será de R$ 990 milhões, segundo o estudo.

O humira é o medicamento de maior faturamento no mundo todo, com vendas globais de US$ 19,9 bilhões só em 2018. Para se ter ideia de como o fim da patente impacta seu preço, na Europa, a Abbvie ofereceu descontos de 80% após a chegada dos primeiros similares. Afinal, qual o preço real dessa droga?

Família de patentes

A prorrogação de patentes farmacêuticas tornou-se padrão no Brasil por dois motivos: o alto número de pedidos de invenção apresentados pelas empresas e o baixo número de examinadores do INPI.

Atualmente existem 319 funcionários responsáveis por analisar invenções de todos os setores da economia. Mas na fila há 160 mil pedidos pendentes, ou 501 por examinador, segundo o INPI. O cenário é pior do que o encontrado nos Estados Unidos, Europa, Japão, Índia e México.

Já o excesso de pedidos de patentes farmacêuticas foi investigado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), órgão ligado ao Ministério da Saúde. No caso do adalimumabe, o estudo identificou 33 pedidos apresentados ao INPI pela Abbvie e suas concorrentes. Apenas dois pedidos foram concedidos, um foi rejeitado, oito foram arquivados e 22 continuam na fila.

Além de amontoar a pilha de trabalho do INPI, os múltiplos pedidos de patente para um mesmo princípio ativo são uma estratégia da indústria farmacêutica para “perpetuar a exclusividade de um produto”, diz a farmacêutica Roberta Dorneles da Costa, pesquisadora da UERJ e uma das autoras do estudo da Fiocruz.

“A indústria farmacêutica adota diferentes estratégias para manter o monopólio. O primeiro passo é criar essa rede interminável de patentes”, diz Carlos Portugal Gouvêa, professor de direito comercial da USP. “Outra estratégia são os processos judiciais, porque enquanto não há uma decisão final, os concorrentes ficam afastados”, completa Paranhos.

O INPI reconhece que o número de examinadores é baixo e que “a demora na análise de pedidos de patentes tem levado à extensão do prazo de proteção”. O órgão informou que em julho começou um plano para reduzir o tempo de análise das patentes para cinco anos: a meta é reduzir a pilha de pedidos em 80% até 2021.

Procurada, a Abbvie não comentou a prorrogação do monopólio do humira nem tratou dos vários pedidos de patente para o medicamento. O laboratório disse à Repórter Brasil que o preço do remédio caiu nos últimos dez anos.

O Ministério da Saúde disse à Repórter Brasil que se pronunciará após a publicação do estudo.

Negociação de preços

Outro medicamento analisado pela UFRJ é o sofosbuvir, indicado para a hepatite C, doença que atinge 71 milhões de pessoas no mundo e mata 400 mil por ano, a maior parte em países pobres. Desenvolvido pela Gilead, o sofosbuvir parece tão revolucionário como a vacina de Salk, já que cura a hepatite C em 95% dos casos. Mas o alto preço cobrado pela Gilead e a barreira aos genéricos mantém a erradicação da doença num horizonte distante.

No Brasil, o Ministério da Saúde gastou mais de R$ 1,7 bilhão com o sofosbuvir desde 2014, pagando em média R$ 258 por comprimido, segundo o levantamento da UFRJ. Em países de baixa renda, porém, ele é vendido por R$ 2,95 (98% menos), enquanto nos Estados Unidos chega a R$ 4.000. O pedido de patente no Brasil foi apresentado em março de 2008, mas após 11 anos a análise ainda não foi concluída. A UFRJ estima em R$ 346 milhões o custo extra ao Ministério da Saúde para cada ano de prorrogação da patente do sofosbuvir.

Ao defender a prorrogação das patentes, a Interfarma (representante das empresas estrangeiras no Brasil) diz que os laboratórios não aproveitam comercialmente os 20 anos de monopólio, já que os primeiros 10 anos são dedicados a pesquisas e testes para criar o medicamento. A entidade diz que os investimentos farmacêuticos são altos e que a sustentabilidade do negócio “requer a manutenção do direito à propriedade industrial”.

O presidente do laboratório brasileiro com o maior número de patentes, no entanto, defende duração de 20 anos para o monopólio, “tal como é reconhecido no mundo inteiro”, diz Ogari Pacheco, do Cristália. Para a Libbs, que financiou a pesquisa da UFRJ, a prorrogação de patentes “atrasa a entrada de genéricos” e “aumenta muito os gastos do SUS”. A Abifina, representante das farmacêuticas brasileiras, classifica este trecho da lei como inconstitucional e diz que que algumas empresas usam a lei para “extensão artificial do prazo das patentes”.

Para os pesquisadores da UFRJ, além de mostrar a necessidade de investimentos no INPI, o estudo indica que o governo brasileiro pode gastar menos com medicamentos. “É possível o Ministério da Saúde buscar formas de negociar os produtos e conseguir preços mais baixos”, diz Paranhos.

“O futuro está em nossas mãos”, disse Salk em 1985. “Para decidir se usaremos a ciência, a tecnologia e o conhecimento que possuímos para o melhor, em vez de para o pior”.

Fonte: Repórter Brasil, por Diego Junqueira
Publicada em 09/09/2019