A Big Pharma e o relógio do apartheid pandêmico, por Jorge Bemudez

Oxfam expõe a face nefasta das elites globais, reunidas em Davos. Neste dois anos, a cada 30 horas surgia um novo multimilionário, muitos deles, especulando com vacina e saúde; e um milhão de pessoas amargavam a pobreza extrema

Por Jorge Bermudez*

E nós, para onde vamos? Para onde caminham o mundo, os países centrais e o Sul Global?Acabamos de passar pelo Fórum Social das Resistências em Porto Alegre nos últimos 26 a 30 de abril e pelo Fórum Social Mundial no México de 1 a 6 de maio, onde ficou clara a necessidade de lutar contra a desigualdade e assegurar saúde, trabalho, moradia e outros determinantes da saúde às populações negligenciadas e vulneráveis. Estamos às portas do encerramento do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça entre os dias 22 e 26 de maio, onde se reúnem em lugar paradisíaco no meio dos Alpes suíços e rodeados de um forte esquema de segurança para bloquear manifestações, com cerca de 2.500 líderes mundiais em todos os campos, os países mais ricos do mundo, mas que, perversamente e indo em busca de seus próprios interesses, definem os rumos mundiais, incluindo das populações e países pobres e vulneráveis. Sempre foi assim e não vai ser agora, na polêmica da pandemia, que haveria de ser diferente.

Para driblar o bloqueio a manifestações hostis aos grandes senhores, ativistas da Enfermagem “aplaudem” os ganhos de capital dos líderes da indústria farmacêutica e afirmam que, para ganhar o equivalente à acumulação do CEO da Pfizer em um ano, em especial graças aos lucros obtidos com a vacina contra a covid-19 e que foi em grande parte financiada com recursos públicos, teriam que trabalhar diariamente até o ano 6.100 AD. Esses ativistas protestam fortemente pela recusa dos grandes empresários de aceitar a suspensão temporária de suas patentes, como proposto na Organização Mundial do Comércio, mas bloqueada pelos países centrais desde outubro de 2020.

Em artigo anterior, denunciamos que as empresas Pfizer, Moderna e BioNTech, embora destinando menos de 2% de suas vacinas a países de baixa renda, as três companhias lucraram cerca de US$ 34 bilhões em 2021, o que equivale a 65.000 dólares a cada minuto. Esse é o apartheid que se sobrepõe à solidariedade que o mundo anseia e busca.

Justamente no início do Fórum Econômico Mundial, a Oxfam — uma das mais atuantes entidades da sociedade civil e que recebe o eco da maioria das entidades e também de outros setores, acadêmicos, multilaterais, que merece todo nosso reconhecimento, compreensão e adesão ou aprovação — lança para conhecimento geral, seu relatório estarrecedor “Profiting from Pain/ Lucrar com a dor”, que nos traz de volta, com dados extraordinariamente significativos, à realidade que somos obrigados a enfrentar sem políticas públicas motivadas por interesses sociais, mas essencialmente da obediência cega às forças e regras de mercado. Já falamos anteriormente que a indústria farmacêutica é um setor que não conhece recessão e que lucra cada vez mais confrontando a dualidade Saúde ou Comércio.

De acordo com o documento apresentado pela Oxfam, os bilionários reunidos em Davos tem muito a comemorar, considerando os lucros sem precedentes obtidos com a pandemia, em contraste gritante com a dor e sofrimento que a humanidade padece nestes dois anos de isolamento, falta de convívio social, restrições, perdas e mortes. Bilionários de diversos setores não restritos às grandes corporações farmacêuticas, mas também aqueles de setores relacionados com alimentação e energia, vem aumentando suas fortunas no ritmo de um bilhão de dólares a cada dois dias. A pandemia acomete um mundo já desigual, aprofundando esse abismo. Ainda de acordo com o documento, há 2.688 bilionários no mundo, 573 a mais do que em 2020 no início da pandemia. A riqueza destes bilionários cresceu de 4,4% do PIB mundial em 2020 para 13,9% atualmente. Lembremos ainda que a expectativa de vida nos países de renda alta é 16 anos mais do que nos países de renda baixa e se estima que 5,6 milhões de pessoas morram a cada ano nos países pobres devido à falta de acesso à atenção à saúde.

A essência da desigualdade, o dado mais estarrecedor desse apartheid se resume no fato de que, no mesmo ritmo que durante a pandemia, a cada 30 horas surgia um novo multimilionário, a cada 33 horas um milhão de pessoas passavam ao nível de pobreza extrema. Isso equivale a dizer que ao passo que temos mais 573 bilionários, teremos este ano mais de 263 milhões de pessoas no nível de pobreza extrema.

O documento de Oxfam ainda estuda com mais detalhes os casos das empresas norte-americanas Pfizer e Moderna. Ainda são propostas medidas para atenuar a crise, como a taxação progressiva nas grandes fortunas. No mesmo sentido, o Banco Mundial já estuda um fundo financeiro para enfrentar a prevenção, preparo e resposta a pandemias, que esperam que possa ser discutido e equacionado por ocasião da reunião dos ministros de saúde do G-20 agora em junho.

Sem dúvidas como reflexo das pressões mundiais, os lucros exorbitantes já obtidos pelo monopólio e decorrentes da pandemia e pela proximidade da reunião do G-20, a Pfizer já anunciou que vai oferecer todos seus produtos patenteados e disponíveis na Europa e EUA, incluindo vacinas, a custos mais baixos a 45 países de renda mais baixa, cobrindo uma população de 1,2 bilhões de pessoas, em acordo a ser assinado com os países. Entretanto, já nos referimos anteriormente a acordos voluntários que não necessariamente são suficientes e tendem a excluir os países de renda média, muitos deles considerados países pobres.

Faltam medidas mais corajosas, incluindo apoiar o movimento que discute na OMC a suspensão temporária de uma série de artigos do Acordo TRIPS. Falta derrubar os vetos do presidente no Brasil à Lei 14.200/2021, que excepcionaliza as licenças compulsórias em casos de emergências em saúde pública de importância nacional ou global. Falta trilhar o caminho da solidariedade, o direito à saúde e o acesso universal a tecnologias essenciais. No Brasil, premissas obrigatórias incluem revitalizar o SUS, fortalecer e remontar o complexo econômico industrial da saúde e assegurar o acesso a medicamentos e tecnologias como um direito humano fundamental.

*Médico e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)

Fonte: Outras Palavras
Publicado em 26/05/2022