Plano de Doria para remédios esbarra em ‘vazio’ de farmácias na periferia

O plano do prefeito João Doria (PSDB) de fechar farmácias em postos de saúde para distribuir medicamentos na rede particular terá como obstáculo a disposição irregular das drogarias privadas pela capital paulista. Se o problema não for superado, o programa pode deixar moradores de áreas da periferia de São Paulo mais distantes dos medicamentos.

A ideia do tucano, anunciada no fim de janeiro, é que o paciente pegue a receita em uma UBS (unidade básica de saúde) e, em vez de retirar ali mesmo o remédio, vá a uma farmácia privada, que será remunerada pelo município.

O objetivo, diz, é evitar a falta de remédio em decorrência de dificuldades logísticas e problemas de licitação.

O mecanismo é similar ao do programa federal Aqui Tem Farmácia Popular, pelo qual pacientes retiram gratuitamente na rede particular medicamentos contra doenças como diabetes e hipertensão.

O programa, de fato, facilitou o acesso a remédios em áreas do centro expandido. Na periferia da cidade, no entanto, onde os postos de saúde estão mais presentes, tem capilaridade limitada.

O motivo tem relação com os entraves legais que a prefeitura quer evitar: para receber dinheiro público, drogarias têm que cumprir uma série de exigências, como estar em dia com a Previdência, ter sistema de informática compatível com a prestação de contas e condições de emitir documentos fiscais, o que nem todos os pequenos estabelecimentos conseguem cumprir.

Se os obstáculos não forem superados pela prefeitura, o problema vai se repetir e distanciar os moradores da periferia dos medicamentos.

Hoje, o paciente que pega um remédio em uma das UBSs de Cidade Tiradentes, na zona leste, tem que percorrer até 5 quilômetros para chegar à drogaria credenciada mais perto. Situações semelhantes ocorrem em bairros como Tremembé (zona norte) e Parelheiros (zona sul).

As distâncias podem aumentar se a prefeitura utilizar apenas as grandes redes de farmácia, como Doria chegou a afirmar que faria no fim de janeiro. Elas estão ainda mais concentradas no centro expandido. O secretário municipal da Saúde, Wilson Pollara, diz, porém, que a ideia é contar com todas as farmácias.

ALMOXARIFADO

A distribuição geográfica não é o único desafio. A proposta enfrenta a resistência de sindicatos de farmacêuticos, que temem perder empregos, embora a prefeitura afirme que os profissionais serão incorporados a equipes da área de saúde da família.

Para Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP, o maior problema é retirar a integração entre a equipe médica e a de farmácia. “A farmácia da unidade de saúde não é só um almoxarifado de medicamentos, ela é um local de orientação sobre o tratamento”, diz.

Outro problema, avalia, é a questão da transparência. “Hoje, quando falta medicamento em uma UBS, há um registro disso. Como ficará quando acontecer na farmácia particular?”

Já Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e secretário municipal em 2003 e 2004 (gestão Marta Suplicy), aprova o plano de Doria. “A mudança garantirá que, a despeito de qualquer problema logístico ou de licitação, o medicamento estará disponível.”

Para ele, as pequenas farmácias em situação irregular procurarão resolver as formalidades necessárias no momento em que o mercado público se abrir a elas.

Independentemente da solução que for tomada, pacientes em diversas regiões são unânimes nos relatos sobre a falta de medicamentos nos postos de saúde da cidade neste ano. A situação é reconhecida pela prefeitura.

Desempregada e com uma problema no calcanhar, Mirian Gonçalves, que não quis revelar a idade, não conseguiu nem anti-inflamatório no posto do Itaim Bibi, na zona oeste de São Paulo. “Não encontro mais nada” diz.

O aposentado João Jesus Pereira, 78, está há mais de um mês sem besilato de anlodipino, para pressão alta e angina. “Para onde foram os impostos que a gente paga?”

SEM PREJUÍZO

O secretário municipal da Saúde, Wilson Pollara, afirma que o novo modelo de distribuição de medicamentos não irá prejudicar os moradores de nenhuma área da cidade de São Paulo.

Segundo ele, a gestão do prefeito João Doria (PSDB) quer contar com todas as farmácias da cidade. “Quando o paciente receber a prescrição, vão perguntar a ele para onde enviar a receita, e ele vai buscar e pode escolher até mesmo a marca”, diz.

Pollara afirma que o formato do programa para que a distribuição aconteça dessa maneira ainda está sendo desenhado. Por isso, o novo sistema só deve entrar em operação a partir de, “no mínimo”, o semestre que vem.

Para ele, a atual rede de farmácias da cidade tem capilaridade suficiente. Caso alguma região fique sem drogaria próxima, afirma, a farmácia da UBS pode ser mantida.

As unidades da prefeitura também continuarão a dispensar medicamentos que não são facilmente encontrados em drogarias, como alguns para hanseníase e para tuberculose.

Pollara afirma que a falta de remédios em postos de saúde atualmente se deve ao fato de a gestão Fernando Haddad (PT) ter reduzido as compras no ano passado.

“A partir de setembro de 2016 as compras de medicamentos e suprimentos foram reduzidas drasticamente -e limitadas a 10% do que era necessário para atender à população”, disse em nota a secretaria. Segundo a pasta, em janeiro foram retomados os processos de compras.

A gestão Doria também anunciou acordo para receber doações de medicamentos por laboratórios privados.

Sobre o caso dos pacientes citados, afirma que o anti-inflamatório foi disponibilizado nesta semana para Mirian, e que o besilato de anlodipino deverá estar disponível nos próximos dias.

HADDAD E ESTADO

Por meio de nota, a assessoria da secretaria de Saúde da gestão Haddad citou problemas com fornecedores e com o governo do Estado e disse que, devido à crise econômica, houve um aumento de 30% na procura por medicamentos na rede no ano passado. As receitas do setor privado passaram de 29% para 36% do consumo mensal.

De acordo com a gestão, isso alterou o planejamento de compras da secretaria, “que manteve licitações em andamento e deixou compras feitas para vários itens”.

“O número maior de usuários exigiu um aumento nas encomendas junto aos fornecedores, encontrando a dificuldade do setor privado em entregar a demanda e a restrição orçamentária do não repasse do governo do Estado para aquisição de remédios, que já tem uma dívida acumulada de R$ 120 milhões com o município desde 2012”, afirma a nota.

A secretaria da Saúde da gestão Alckmin (PSDB), por sua vez, disse “lamentar” que a gestão petista responsabilize o Estado “por sua falta de gestão e planejamento no que compete-se à aquisição de medicamentos”. Segundo a pasta, o Estado mantém 12 Farmácias do programa Dose Certa na capital paulista.