A Assistência Farmacêutica e C&T são feitas para as pessoas

Informação e depoimentos de vida foram os elementos da Roda de Conversa que abriu o 8º Simpósio Nacional de C&T e Assistência Farmacêutica. O debate pode ser resumido no afirmação de Moyses Toniolo, conselheiro nacional de saúde e membro da Articulação Nacional da Aids. “Eu sou a prova de que a C&T pode transformar a vida, de que a C&T é muito mais do que a produção de medicamentos. Ela produz vida, não adoecimento, não óbito”, disse.

A roda cumpriu o papel de trazer uma análise histórica e contextualizada de como se desenvolveu no Brasil as políticas de Assistência Farmacêutica e C&T e os desafios dessas políticas diante da conjuntura atual do país.

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Participaram da roda, coordenada pela tesoureira da Federação Nacional dos Farmacêuticos, Célia Chaves, o vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, Marco Aurélio Krieger; o líder do grupo de pesquisa sobre Desenvolvimento, Complexo econômico-industrial e Inovação em saúde da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, Carlos Gadelha; do médico e pesquisador do núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ e vice-presidente da Abrasco, Reinaldo Guimarães; do professor da Universidade Federal de Santa Catarina Norberto Rech, e de Moyses Toniolo, conselheiro nacional de Saúde e membro da Articulação Nacional da Aids.

O objetivo dessas políticas são as pessoas

Ao abrir a roda, a diretora da Fenafar lembrou como a Escola Nacional dos Farmacêuticos iniciou, em 2011, esse processo de debate e mobilização para a 14ª Conferência Nacional de Saúde. “Quando nós, farmacêuticos, decidimos realizar um conjunto de etapas preparatórias para a 14ª CNS, nosso foco era mobilizar a categoria, porque avaliávamos que não havia uma mobilização no grau necessário. Mas, já naquela ocasião, tínhamos a percepção de que não poderia ser um debate endógeno, corporativista, mas que deveria envolver os demais profissionais, gestores e principalmente os usuários, para garantir o olhar da sociedade. Fomos num processo gradual, na 15ª tivemos um envolvimento maior. Agora, na 16ª, conseguimos atingir de forma mais efetiva outros setores. Esse processo é fundamental para que a categoria perceba a importância desse relacionamento entre o saber técnico-científico — que ainda está muito encastelado na universidade e em alguns espaços de serviços — com o saber popular, das pessoas, que são para as quais nós existimos como profissionais de saúde, gestores e atores das políticas públicas do nosso país. São para as pessoas que nós fazemos tudo isso”, afirmou.

O vice-presidente da Fiocruz fez uma apresentação mostrando a história da Fundação e a sua trajetória e consolidação como instituição de

 pesquisa em Saúde. Na sua criação, no início do século XX, em 25 de maio de 1900, com objetivo de enfrentar as epidemias de peste bubônica, varíola e febre amarela, até os dias de hoje, com o seu papel primordial de pesquisa e produção de medicamentos para o combate a epidemias, como a do zika vírus. Ele destacou que todo o estudo da incidência do zika, sua relação com a microcefalia e as primeiras respostas à doença foram feitas na Fiocruz.

Ele recordou como de um ano para outro, diante do surto da febre amarela em 2017, a Fiocruz conseguiu ampliar a produção de vacinas. A previsão era de entregar cerca de 20 milhões, mas foram produzidas 67 milhões de unidades. Além dessa producão, Krieger ressalta que a Fiocruz tem “todo o sistema de inovação nas áreas mais importantes da pesquisa e da produção”.

Ao final, ele apresentou o vídeo institucional da Fiocruz que mostra como o trabalho da fundação está presente na vida das pessoas. “Você pode até não saber, mas carrega a Fiocruz dentro de você”. 

Saúde, Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento

Carlos Gadelha focou sua apresentação na saúde como forte indutor do desenvolvimento econômico. “Não dá para pensar estratégia nacional de desenvolvimento sem pensar saúde, C&T e Assistência Farmacêutica”, afirmou.

Para ele, se quisermos de fato construir um Sistema Único de Saúde com base no tripé da universalidade, integralidade e equidade é preciso repensar a base produtiva do país. “Não haverá sistema de saúde universal com uma base produtiva industrial focada no minério de ferro e na soja”, exemplificou. 

Ele trouxe dados sobre registros de patentes no mundo para mostrar as assimetrias globais. A maior parte dos pedidos e registros de patentes está concentrada nos EUA, Europa e China. “A patente é um indicador precário, cheio de problemas, mas mostra a geopolítica de poder ligada a tecnologia e inovação”, destacou.

Gadelha chama a atenção para o fato de a conquista do nosso sistema único ter trazido uma questão que precisa ser enfrentada: “Quando o acesso universal começa a avançar, a gente começa a ficar dependente da inovação”, num cenário em que a “nossa base produtiva e tecnológica não é compatível com a nossa demanda”. 

Alguns dos dados que Gadelha apresentou mostram que 80% nosso déficit é na base biotecnológica – química fina, fármacos. “Isso nos coloca

 sob o risco de não ter uma política soberana, já que 60% das patentes de biotecnologia estão nas mãos de 15 empresas privadas. Ou seja, a gente depende da estratégia global dessas empresas para saber se teremos acesso a esses medicamentos”, alerta.

Para Carlos Gadelha, “o direito à vida e à ética deve presidir nossas políticas de C&T e Assistência Farmacêutica, com um acesso aos medicamentos que não gere uma estratificação da sociedade brasileira – medicamentos apenas para alguns cidadãos ou algumas regiões do Brasil”.

O SUS deve pautar e ser a referência das políticas

O vice-presidente da Abrasco, Reinaldo Guimarães, trouxe uma análise de quais características precisam ter as políticas de Ciência &

 Tecnologia em Saúde. Para ele, “O SUS tem que ser o principal fomentador, regulador e demandante das políticas de C&T em Saúde”. Ele afirmou, também, que a pesquisa liderada pelo SUS deve abandonar “uma perspectiva de resultados de curto prazo”, uma vez que “é equivocada a ideia de que a pesquisa que o SUS precisa é aquela cujos resultados sejam imediatamente absorvidos. Há pesquisas de médio e longo prazo que são essenciais para o SUS”, disse.

Guimarães listou alguns aspectos que precisariam nortear essas políticas: extensão temática, a intersetorialidade e a abrangência geográfica, “dentro de uma perspectiva civilizatória para levar esse conhecimento ao conjunto do território da nação”, disse.

Uma política que nasceu do controle social

Norberto Rech, que foi um dos principais responsáveis pela implantação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica no país, fez uma

 resgate do processo que deu origem a essa política, que completa 15 anos. “Foi a primeira  política gestada e aprovada no âmbito do controle social da saúde. Nenhuma outra política teve sua formulação e decisão construída no âmbito do CNS. Uma política que nasceu de um conjunto de conferências municipais, estaduais e nacional, e que representa uma opinião contextualizada da sociedade brasileira sobre aquilo que se tinha como perspectiva para um apolítica de Assistência Farmacêutica”, disse.

Naquele momento [2004], a Assistência Farmacêutica “foi entendida como sendo não apenas a reposição ou a disponibilidade de produtos [medicamentos] nos serviços de saúde, ela foi concebida, pela resolução do CNS, como política integrante da política nacional de saúde com princípios e eixos estratégicos importantes. Ela é um conjunto de diretrizes que deve orientar um conjunto de decisões dos gestores. Além disso, ela é norteadora de outras políticas, por isso ela é fundamental, já que ela resgata a característica intersetorial, uma vez que ela deve orientar políticas de C&T, de medicamentos, de capacitação de recursos humanos. E, muitas vezes, a gente perde essa perspectiva e reduz a Assistência Farmacêutica à disponibilidade de medicamentos nos serviços”, observou Rech.

O professor da UFSC ressaltou o papel do Estado como regulador dessas políticas, para que as decisões sejam pautadas pelo interesse da sociedade. “O Estado não deve apenas definir o montante de recursos, mas onde e como esses recursos serão aplicados na perspectiva do direito ao acesso”, afirmou.

Rech lembrou do licenciamento compulsório do Efavirenz, um exemplo de como o Estado deve atuar, e denunciou que “o processo de desestruturação da Anvisa não atende aos interesses da cidadania, uma vez que a autoridade regulatória abre mão de seu papel, o que aumenta a nossa dependência externa”. 

Ele ressaltou, ainda, a importância da transparência, a falta de informação sobre os investimentos públicos em saúde, na compra de medicamentos e em programas. “Estamos frente a um Estado que não deixa transparente informações que são direitos da cidadania, e a ausência dessa informação prejudica a nossa análise e tomada de decisões”.

A Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica a serviço da vida

Moyses Toniolo trouxe humanidade para as denúncias e dados que seus colegas apresentaram. Numa intervenção emocionante, o conselheiro de saúde e representante da Articulação Nacional de Aids, agradeceu ao controle social por ter envolvido os usuários no debate sobre essas políticas e afirmou, arrancando aplausos do público: “Eu sou o produto da Ciência e Tecnologia, eu sou a prova de que a C&T pode transformar a vida”, disse.

Ele ressaltou um dado da Organização Mundial da Saúde que apontava a perspectiva de que, no ano 2000, o Brasil teria 1 milhão de pessoas vivendo com HIV/Aids. “Estamos em 2018 e não chegamos a este número. Somos pouco mais de 900 mil. Essa é a prova que C&T produz muito mais do que medicamentos. Ela produz vida, não adoecimento, não óbito. Ela produz qualidade de vida e expectativa de estarmos aqui”, disse.

Ele lembrou que antes da ação do Estado para garantir acesso aos medicamentos para o tratamento do HIV, os pacientes tinham que

 literalmente contrabandear medicamentos. Por tudo isso, para Toniolo, o SUS é uma política que produz justiça social. “Quando muita gente acha que o movimento sanitário foi só feito pela academia, nós estávamos participando representando os movimentos dos portadores de HIV/AIDS, mostrando quantos morriam por semana e que a gente queria continuar vivo”.

O conselheiro alertou para o caráter civil-militar do futuro governo, que caminha para violar direitos humanos, para fazer uma gestão “sem justiça tributária e fiscal, com preponderância privatista, que nega gênero, que discrimina as expressões da sexualidade, com um Congresso Nacional que na sua maioria representa grupos de interesse privados. Caminhamos para um absolutismo patronal”. 

Moyses disse que a sociedade precisa “lutar e ser resistência para que isso não aconteça”. Ele lembrou de outras patologias e de populações negligenciadas que não possuem acesso aos tratamentos necessários. E reforçou, assim, a participação da sociedade na elaboração das políticas. “Quem determina a estratégia e a prioridade da saúde não são eles dentro de gabinetes, mas é a participação e o controle social na saúde”.

Renata Mielli, do Rio de Janeiro, fotos Danilo Castro/CNS