Covid-19: o mundo em um ‘apartheid de vacinas’

Em artigo assinado por Luana Bermudez e Jorge Bermudez destacam como o monopólio de medicamentos, particularmente o das vacinas, protegidos por patentes para as grandes indústrias farmacêuticas aprofunda desigualdades estruturais. No caso da pandemia de Covid-19, a patente sobre as vacinas gera gargalos de aquisição e distribuição, aprofundando a crise sanitária internacional. Leia abaixo:

Em maio de 2021, no Fórum de Paz em Paris, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou que o mundo não estava “sob risco de um apartheid de vacinas, mas que o mundo já estava no apartheid de vacinas”. Ele foi além, denunciando que os países de renda alta, responsáveis por 15% da população mundial, detinham 45% das vacinas no mundo e que os países de baixa e média-baixa renda, responsáveis por quase metade da população mundial, detinham apenas 17%. Ele ainda afirmou que, embora 63 milhões de doses de vacinas, houvessem sido enviadas a 124 países, isso correspondia a apenas 0,5% da população desses países.

Na mesma semana, o presidente dos EUA afirmou que estaria compartilhando 80 milhões de doses com países pobres nas semanas seguintes, mais do que qualquer outro país. Entretanto, isso representava apenas 13% das vacinas produzidas no país. Na verdade, 80 milhões de doses para uma população mundial de quase 8 bilhões de habitantes cobrem apenas 1% dessa população, se fossem distribuídos equitativamente.

É inacreditável, e inaceitável, verificar que, transcorridos quase 18 meses da declaração de emergência de caráter internacional, as propostas de solidariedade buscadas inicialmente e que foram debatidas em todos os grandes foros mundiais, hoje praticamente ecoam no vazio. Se os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a Agenda 2030, revendo os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, colocaram como chamada “não deixar ninguém para trás”, a pandemia nos levou mais de 4 milhões de pessoas, em meio a mais de 200 milhões de casos de Covid-19. Muitas dessas mortes poderiam ser evitadas por diversos motivos. Não nos referimos ao início da pandemia, mas aos tempos atuais em que as mortes evitáveis ficam muito evidentes e a desigualdade é gritante.

No meio de 2020, o secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, já afirmava que o mundo havia chegado a um ponto de ruptura em relação às desigualdades. Durante a Conferência Anual Nelson Mandela, realizada em julho de 2020, Guterres teceu severas críticas ao comportamento dos países desenvolvidos na resposta à pandemia, destacando que o legado do colonialismo ainda tem consequências nas relações globais de poder, que estes estão investindo somente em sua própria sobrevivência e falharam em apoiar os países em desenvolvimento em tempos tão difíceis.

Guterres também comparou a Covid-19 com um raio-x, expondo as falácias e revelando as fraturas no frágil esqueleto da nossa sociedade: “A mentira de que o livre mercado pode oferecer acesso a saúde para todos, a ficção de que o trabalho de cuidado não remunerado não é trabalho, a ilusão de que vivemos num mundo pós-racista, o mito de que estamos todos no mesmo barco. Porque, embora todos estejamos flutuando no mesmo mar, é claro que alguns de nós estão em super iates, enquanto outros estão agarrados aos escombros flutuantes”.

Para onde foram as promessas de solidariedade, de tecnologias e vacinas relacionadas com a pandemia como bens públicos globais, propostas no início da pandemia? Tantas iniciativas, tão bem formuladas, em especial, no âmbito da OMS, como ACT-accelerator, C-TAP, COVAX, não receberam o apoio nem os recursos necessários para seus objetivos e sofreram com subfinanciamento (ver aqui e aqui).

Hoje, a desigualdade fica muito mais evidente. Na União Africana, que inclui 55 países e 1,2 bilhão de habitantes, apesar da adesão ao Consórcio Covax para receber vacinas, países como Burundi e Eritreia ainda não estavam sem nenhuma dose de vacina até poucos dias atrás. Enquanto países da África ainda precisam vacinar os trabalhadores de saúde da linha de frente de combate à pandemia, países centrais já estão vacinando adolescentes e crianças e começam a discutir a aplicação de uma terceira dose ou dose de reforço, em flagrante expressão de iniquidade, desigualdade e falta de solidariedade.

O negacionismo que vimos em diversos países do mundo, como no exemplo da Tanzânia, aliado ao nacionalismo exacerbado que vimos em países centrais, vem levando a uma distribuição desigual de vacinas e relegando países periféricos a uma espera até 2022, ou mesmo 2023, para acesso aos imunizantes necessários à cobertura de suas populações.

Entre as lições que esperávamos ao enfrentar a pandemia de Covid-19, a solidariedade se colocava sempre como imperativo, com necessidade de implementar medidas restritivas de contenção, mas, ao mesmo tempo, gerando as condições para a manutenção de conquistas sociais sem, em nenhum momento, aceitar a geração cada vez maior de desemprego, subemprego e emprego informal – condições agravadas pelo negacionismo explícito de autoridades, em diversos países e segmentos da sociedade.

Estudos mostram que as fábricas podem adaptar suas plantas e entregar vacinas prontas em menos de seis meses se tiverem acesso às tecnologias e know-how para a produção

A necessidade de garantir acesso da população a tecnologias relacionadas com o enfrentamento da pandemia levou a que, no mundo inteiro, fossem elaboradas, discutidas e publicizadas propostas para acelerar esse objetivo. Diversos países implementaram alterações em seus marcos regulatórios de propriedade intelectual, com o objetivo de facilitar a emissão de licenças compulsórias, na linha de pensamento de que o licenciamento voluntário não se constitui em mecanismo suficiente para evitar monopólios e preços elevados das tecnologias.

Denuncias recentes apontam que, em que pese terem sido financiadas com recursos públicos, as companhias farmacêuticas, aproveitando seus monopólios, estão cobrando preços excessivos, estimando-se que diversos países estejam pagando valores entre quatro e 24 vezes mais do que seriam os preços de custo.

Tomando como ponto de partida a reprogramação da iniciativa de BioNTech em Marburg, na Alemanha, que readaptou uma fábrica de produtos oncológicos para a fabricação de vacinas de m-RNA no prazo de seis meses, com a capacidade de produção de milhões de doses semanalmente, é proposto um esforço global articulado para a produção em massa dessa vacina para atender o mundo. Estudos mostram que as fábricas podem adaptar suas plantas e entregar vacinas prontas em menos de seis meses se tiverem acesso às tecnologias e know-how para a produção das vacinas contra Covid-19. Assim, países em desenvolvimento teriam plenas condições para frear o avanço da pandemia e acabar com as mortes evitáveis. Estima-se que se isso fosse realizado, entre 1.000 e 1.500 mortes poderiam ser evitadas diariamente somente no Brasil.

Outro movimento relevante de solidariedade que já mencionamos (ver aqui) foi a iniciativa da Índia e África do Sul na Organização Mundial do Comércio (OMC), propondo a suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual das tecnologias relacionadas com a pandemia, mas que vem sendo bloqueada por um grupo menor de países de renda alta, impedindo a possibilidade de remover patentes, temporariamente, para fazer frente à pandemia de maneira mais equânime, quebrando os monopólios e a imposição de preços elevados.

Em junho de 2021, os diretores da OMS, OMC, FMI e Banco Mundial publicaram posicionamentos conjuntos, antecedendo a reunião do G7, destacando que a pandemia não terminaria até que todos tivessem acesso à vacinas. Eles apresentaram proposta  desenvolvida pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pedindo financiamento de US$ 50 bilhões por parte desses países, com o objetivo de garantir 11 bilhões de doses de vacinas para atingir a vacinação de no mínimo 40% da população de todos os países, até o fim de 2021, e de 60%, no primeiro semestre de 2022, além de medidas de contenção em locais com baixa cobertura vacinal. Além do benefício inestimável de salvar vidas, a proposta destaca que esse investimento acabaria com a pandemia mais rapidamente, aceleraria a recuperação econômica e geraria cerca de US$ 9 trilhões em produção global adicional, até 2025.

Porém, a resposta do G7 foi a promessa de doação conjunta de 1 bilhão de doses, muito aquém dos 11 bilhões solicitados pela OMS, e um plano de resposta em cem dias a uma futura pandemia. Não fizeram menção aos US$ 50 bilhões, nem à discussão sobre suspensão temporária de direitos de propriedade intelectual bloqueada na OMC. Cabe destacar que esse pequeno grupo de países detém 60% da riqueza e 35% do PIB mundial, com cerca de 10% da população global, sendo, porém, responsáveis por 50% das doses de vacina contra Covid-19 contratadas até o momento.

Fica evidente que, apesar de transparecerem solidariedade, esses países estão apenas perpetuando a iniquidade e a injustiça social global. É necessário radicalizar a solidariedade, em defesa da vida. Assim como a África se mobiliza na formação de um consórcio para a produção local de vacinas na África do Sul, os países em desenvolvimento têm capacidade de produção que pode e deve ser potencializada ao máximo.

O Brasil deu um passo à frente com a aprovação, inicialmente no Senado e em seguida na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 12/2021, originalmente do Senador Paulo Paim, que estabelece as bases para aprovação de licenciamento compulsório com maior rapidez, e atendendo a situação excepcional que a pandemia representa. Ainda temos muito para avançar na garantia de acesso a todas as tecnologias que possam ser utilizadas contra a Covid-19.

Consideramos necessário que se revise a política restritiva no Brasil, que as áreas sociais sejam adequadamente financiadas, que se assegure a nossa soberania produtiva e sanitária e se apoie o fortalecimento do nosso Sistema Único de Saúde, patrimônio da sociedade e exemplo para o mundo, cumprindo o preceito constitucional de “saúde como direito de todos e dever do Estado”!

*Luana Bermudez, assessora da Presidência da Fiocruz, doutoranda da Ensp/Fiocruz e integrante da UAEM Brasil (Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais);
**Jorge Bermudez, pesquisador em Saúde Pública da Ensp/Fiocruz e pesquisador parceiro do CEE-Fiocruz

Fonte: CIEE-Fiocruz / Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil