Golpe na Fiocruz: Governo Temer nomeia para a presidência candidata derrotada

A decisão do Ministro da Saúde, Ricado Barros, de nomear a segunda colocada gera revolta entre comunidade científica e profissionais da saúde e rompe com a tradição do respeito à soberania do voto nas instituições que realizam processo eletivo para gestores. Nísia Trindade teve 59,7% dos votos; Tania Araújo-Jorge.

 

Há 25 anos a presidência da Fundação Oswaldo Cruz é escolhida por eleição direta junto a seus trabalhadores, pesquisadores e professores. De 23 a 25 de novembro, 4.415 servidores de todas as unidades no Brasil elegeram a doutora Nísia Trindade, atual vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação, para o mandato 2017-2020. Nísia recebeu 2.556 votos em primeira opção, ou seja, 59,7%. Em segundo lugar, ficou a doutora Tania Araújo-Jorge, pesquisadora e ex-diretora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC). Obteve 1.695 votos em primeira opção (39,6%). Houve um comparecimento às urnas de 82,1% da comunidade.

O presidente da Fenafar e do Conselho Nacional de Saúde, Ronald Ferreira dos Santos, afirmou que a decisão fere a vontade soberana do corpo funcional da Fiocruz que há anos escolhe seus gestores de forma participativa, democrática e transparente. “Os instrumentos de participação social são indispensáveis para o desenvolvimento e fortalecimento das nossas instituições. Na Fiocruz, um destes instrumentos é a voto da sua comunidade para a escolha de seus gestores. Isso se dá a partir de uma debate interno, com base em propostas de aprimoramento das políticas e ações da gestão para impulsionar e manter a Fiocruz como um das instituições de referência em pesquisa de Saúde no mundo. Essa decisão é uma verdadeira ameaça a nossa mais bem sucedida experiência de atuação nas ciências da saúde que é a Fiocruz. É a mais cruel evidência da ação de traidores da pátria”, afirmou.

O atual presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, afirmou que a decisão de nomear a segunda colocada “criou uma comoção intensa em todas as áreas em que a Fiocruz trabalha. Deveria ser um processo natural do presidente Temer e do ministro Barros de reconhecer que a Fiocruz tem demonstrado maturidade no processo de seleção da presidência”.

A farmacêutica e Senadora da República pelo estado do Amazonas, Vanessa Grazziotin, se manifestou nas redes sociais sobre a decisão. “Mais uma vez o governo Michel Temer demostra o seu desrespeito com o processo democrático no Brasil, desta vez nas eleições da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde de forma monocrática e autoritária, “indicou” a segunda colocada. Um verdadeiro absurdo! Não podemos aceitar mais um golpe desse governo que desrespeita uma tradição seguida há décadas. Na Fiocruz, a eleição do presidente foi instituída logo após a gestão de Sérgio Arouca (1985/1988). Nunca houve uma intervenção desse tipo, salvo na época da ditadura e do governo Collor. Mais uma vez é hora de mobilizar e convocar a categoria, parlamentares, sociedade, órgãos e instituições que defendem a democracia, para barrar esse golpe em uma das mais importantes instituições de pesquisa em Saúde da América Latina”.

Desmonte do SUS e mercantilização da Saúde

A diretora do Cebes e professora de Medicina da ESCS/DF (Escola Superior de Ciências da Saúde,do Distrito Federal), Ana Maria Costa, em artigo publicado no Blog Viomundo, analisa a nomeação da segunda colocada como parte das iniciativas de um governo que está operando o desmonte de uma das maiores políticas públicas do mundo: o Sistema Único de Saúde.

Para a pesquisadora “os possíveis acordos quanto ao próprio papel almejado para a Fiocruz no bojo da política setorial pretendida pelo atual governo”, podem explicar a nomeação da segunda colocada.

“A Fiocruz tem tido um papel estratégico na implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) tanto como formadora de recursos humanos como na produção de conhecimento, pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Por conta disso, o Brasil tem suficiência de insumos estratégicos em saúde, condição essencial para a soberania e sobrevivência do projeto universalista constitucional definido para a saúde. Mas as evidências recentes demonstradas no discurso e nas práticas do atual governo não convergem para a consolidação do SUS como sistema universal, integral e de qualidade. O dramático momento vivido pelo projeto político desenhado para o país expõe a vulnerabilidade dos princípios do SUS. Nesse cenário já se falou que a Fiocruz deve voltar-se para o mercado, abandonando sua vocação de produtora de serviços e insumos para o setor publico da saúde”, alerta Ana Maria.

Carta a Michel Temer

Funcionários e gestores da Fundação Oswaldo Cruz enviaram uma carta ao Presidente Michel Temer, manifestando o repúdio com a decisão. Leia abaixo na íntegra.

A Fundação Oswaldo Cruz, com 116 anos de dedicação à ciência e saúde em prol da população brasileira, recentemente finalizou um intenso processo democrático, de escolha de candidatos à presidência da instituição, nos termos de seu Estatuto. A taxa de comparecimento às urnas foi de 82,1% (4415 servidores), e apresentou o seguinte resultado: em primeiro lugar, a dra. Nísia Verônica Trindade Lima, que obteve 2.556 votos; em segundo lugar, a dra. Tania Cremonini de Araújo-Jorge, que obteve 1.695 votos. O resultado da eleição foi homologado pelo Conselho Deliberativo da Fiocruz e encaminhado à Sua Excelência o Ministro de Estado da Saúde Ricardo Barros na expectativa do referendo ao resultado do pleito, e à decisão e nomeação de Nísia Verônica Trindade Lima, vencedora das eleições, como presidente da Fiocruz. A comunidade da Fiocruz, com apoio de Instituições Científicas Nacionais e Internacionais, espera que a candidata mais votada, com maioria expressiva dos votos, como tem sido a tradição da Fundação, assuma a Presidência da Fiocruz.

Devemos preservar o processo de gestão democrática e participativa da Fiocruz, tão duramente conquistado e construído por nossas instituições de ensino e pesquisa e que tem sido fundamental para tornar a Fundação Oswaldo Cruz referência na área de ciência e tecnologia nacional e internacionalmente. Tal processo, levando-se em consideração a história da Fundação, tem sido decisivo para uma condução equilibrada e eficaz da instituição, o que tem permitido alcançar resultados de destaque na promoção da saúde: a inauguração do Centro Henrique Penna – Protótipos, Biofármacos e Reativos para Diagnósticos, que aumenta o fornecimento de produtos para o SUS; a eleição da pesquisadora Celina Turchi, como uma das dez personalidades do ano na ciência mundial pela revista britânica Nature, por seu trabalho para o estabelecimento da relação entre o vírus zika e a microcefalia em bebês; o registro de teste para zika, dengue e chikungunya, primeiro do país com a chancela da Anvisa; o escalonamento do projeto Eliminar a Dengue (Wolbachia) com mais bairros em Niterói (RJ), entre outros.

O acatamento do nome da dra. Nísia Verônica Trindade Lima como presidente da Fiocruz representa proteger a Fundação, como instituição estratégica de pesquisa, pela sua inegável contribuição para a saúde pública do Brasil. Segundo o presidente da Fiocruz, Paulo Gadelha, “a comunidade da Fundação espera que o presidente Michel Temer reflita sobre essa decisão tão séria, que poderá pacificar a instituição, dando tranquilidade para que a Fundação continue desempenhando seu papel em favor da saúde do povo brasileiro”.

Da redação com agências