“A luz para esses dias escuros é o próprio SUS”, diz presidente do CNS

A possibilidade de pôr em prática o conjunto das convicções acumuladas ao longo de uma vida de militância foi o fator motivador principal para o farmacêutico e presidente da Fenafar, Ronald Ferreira dos Santos assumir a presidência do Conselho Nacional de Saúde – cargo de que se despede no dia 13 de dezembro de 2018. No comando da instância máxima do controle social da saúde no Brasil, desfrutou das condições necessárias para experimentar, na prática, em um contexto de extrema turbulência política, as próprias “convicções políticas”, que prezam, acima de tudo, pela gestão participativa.

 

 

Nesta entrevista, Ronald faz um balanço do triênio que se encerra e traça um panorama das dificuldades que serão enfrentadas no futuro. A defesa do Sistema Único de Saúde é a responsabilidade mais urgente – especialmente neste momento de restrição aos direitos sociais. A mensagem final, todavia, é de otimismo. O SUS sofrerá toda a sorte de ataques, mas não perecerá – porque tem como guardião o próprio povo brasileiro, que não tolera desmonte dos muitos e essenciais serviços hoje oferecidos.

Como foi exercer a presidência do Conselho Nacional de Saúde?
Ronald: 
Foi uma experiência pessoal de grande satisfação, porque, embora atravessando um dos períodos mais turbulentos da democracia nacional, pudemos validar um conjunto de valores a respeito do convívio democrático que consegui acumular ao longo do tempo. Foi de uma satisfação bastante grande, embora desafiador, embora trazendo pessoalmente alguns preços bastante elevados, particularmente os familiares, os pessoais. Mas, do ponto de vista de realização, a gente conseguiu dar conta de ver se materializando na prática o que é possível tirar do pensamento, das ideias, e colocar na prática do convívio social: um conjunto importante de valores que podem contribuir com o avanço civilizacional, ou barrar quaisquer possíveis retrocessos.

O CNS que você deixa agora certamente é diferente daquele que encontrou há três anos. O que mudou?
Ronald: A gente conseguiu fazer com que alcançasse um protagonismo maior o conjunto dos atores que participam das instituições ou entidades. Conseguimos fazer com que a estrutura do controle social brasileiro – não só aqui, no Conselho Nacional de Saúde, mas, também, nos conselhos estaduais, nos conselhos municipais e no conjunto dos diferentes movimentos que têm como atividade econômica a saúde – funcionasse como um espaço importante para dar protagonismo a esses atores. A consequência foi o reconhecimento do controle social, o reconhecimento do Conselho por diferentes instituições.

Esse reconhecimento é algo inédito na história do controle social?
Ronald: A gente vem de um processo crescente de reconhecimento e respeito pelas diferentes instituições, mas, nos últimos anos, tanto a academia como o Legislativo, o Judiciário e os próprios movimentos sociais conseguiram ter uma capacidade de interlocução e mobilização bastante superior. Podemos dizer que, hoje, que o CNS é um espaço em que o processo de construção do que ele decide e aponta tem repercussão, tem consequência e participação no processo decisório da gestão da saúde brasileira.

Quais os principais desafios que o CNS enfrentou no último triênio?
Ronald: O principal desafio foi enfrentar uma ofensiva do ponto de vista da contratação social brasileira. Nós enfrentamos a ruptura do Estado Democrático de Direito e o rompimento da soberania da vontade popular, somados a um processo de esvaziamento do Estado. Foi uma ofensiva brutal sobre os preceitos da contratação que estabelecemos em 1988. Quando nós realizamos nossos eventos tendo como símbolo a própria Constituição, a capa da Constituição, é porque esse conjunto de princípios que nós contratamos, que nós estabelecemos – de um estágio de bem estar social, onde o Estado tem um papel importante, onde há o espírito da solidariedade, onde a construção de um país soberano independente e democrático é a base do processo civilizatório – sofreram o mais brutal ataque da história do nosso país.

E o que esperar do futuro?
Ronald: Bem, para fechar esse processo, ele respaldado pelas urnas, o que permite, inclusive, ao possível futuro super ministro da economia dizer que tem que acabar com o Estado de bem-estar social, acabar com esse processo social-democrata da contratação social brasileira. Então, esse processo que nós enfrentamos ao longo desse período de reafirmar a Constituição, reafirmar o Estado Democrático de Direito, reafirmar os direitos sociais, reafirmar os princípios do SUS, os princípios da seguridade social, é um embate que acredito que deva continuar porque ele está mais vivo do que nunca – e do resultado dele, ao fim e ao cabo, dependem milhares de vidas, principalmente de mulheres, negros, crianças e pobres.

Vidas que já estão sendo perdidas?
Ronald: É isso que mostram os números dos principais indicadores de saúde, como, por exemplo, o aumento da mortalidade infantil e o aumento da mortalidade materna – que são a resultante de quem ganha e quem perde nessa disputa de qual contrato social nós vamos estabelecer. Esse é o principal desafio que nós buscamos encarar através desse espaço que o próprio povo brasileiro criou, que é o espaço do controle social, para construir certas alianças, construir força técnica, política e social para existir. Esse tem sido o movimento e acredito que deva continuar para cumprir a missão do CNS: proteger vidas.

Por que parte das pessoas que dependem do SUS não se dão conta da situação de ameaça que ele vive?
Ronald: Pela mesma razão pela qual um trabalhador defende o fim dos direitos trabalhistas. Pela mesma razão pela qual um negro tem a firme convicção de que não existe racismo no Brasil, que racismo é uma invenção. Pela mesma razão pela qual muitos afirmam que não existe o problema do machismo no Brasil… Porque, na verdade, essa disputa na sociedade por entendimento, por leitura, é um processo permanente de enfrentamento que a gente tem com uma máquina que está jogando do lado de um Estado mínimo, de um Estado onde o mercado seja o grande e todo poderoso ordenador dos processos.

Qual o interesse do mercado na saúde?
Ronald: Nós estamos falando de uma atividade econômica que equivale a aproximadamente o PIB do Uruguai, Equador, Paraguai e Bolívia juntos – que é o tamanho da atividade econômica da saúde. E o mercado faz essa disputa colocando dificuldades e alimentando as expectativas de que o sonho para resolver os problemas da saúde é o povo ter um plano de saúde. É isso o que você vê no jornal da manhã, no jornal do meio dia, no intervalo dos programas de televisão, no rádio, nos jornais. É absolutamente justo que o pai de família se preocupe, já que a informação que ele recebe dia e noite diz que esse SUS não funciona e que a solução é o plano de saúde. É claro e justo que ele queira o plano de saúde para cuidar dos seus. É a resultante dessa disputa que acaba colocando as posições das pessoas, ou da maioria da população, nessa ou naquela frente. A maior preocupação do brasileiro, que é a maior preocupação de qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, é com a vida, com a saúde. Se você diz que esse modelo que está aí colocado não dá conta porque só tem problemas – filas, gente nos corredores, falta disso e daquilo – e apresenta como modelo de salvação aqueles comerciais com aquela família linda e feliz com seu plano de saúde, se essa é a verdade vendida, é muito difícil de fazer o enfrentamento e colocar o real quadro dessa atividade econômica.

O SUS corre o risco de deixar de existir?
Ronald: Eu acredito que a saúde vai ganhar uma dimensão superior na disputa do projeto civilizatório brasileiro. É importante lembrar que essa pauta da saúde foi, na década de 80, talvez a que mais reuniu força social e política na sociedade brasileira e que conseguiu produzir os principais avanços na Constituição de 1988. Eu tenho em conta que o SUS vai sofrer os mais severos ataques. Corre um risco bastante grande. Mas, é justamente na função do papel que tem a atividade econômica da saúde que reside a possibilidade de resistir. Essa onda conservadora, ultraliberal, vem com muita força, mas ela é diferente daquela da década de 60. Naquela época, o Brasil não tinha vivido a experiência de ter um sistema de garantia de medicamentos na farmácia popular, com mais médicos, com SAMU, com tratamento para Aids, com Atenção Básica, com Saúde da Família… O povo brasileiro, que não havia vivido essa experiência, mesmo assim, conseguiu, na década de 80, fazer a construção na Constituição da principal reforma do Estado brasileiro…

Ou seja, a saúde pública resistirá…
Ronald: Eu acredito que o que se apresenta para o futuro vai demandar muita unidade, muita amplitude, muita capacidade de mobilização da inteligência brasileira, da nossa força política e social. O SUS enfrenta uma grande ameaça, mas está nele também a possibilidade de resistir. Eu vislumbro dias bastante escuros, mas a luz para esses dias é o próprio SUS, seus próprios princípios, e a experiência histórica do povo brasileiro na sua construção. A gente está falando de milhares de vidas, então, é muito sombrio o que pode estar se apresentando. Mas eu também acho que é nesse debate que a gente precisa fazer em torno da vida, em torno do SUS, que está a possibilidade de resistir a essa onda.

A 16ª Conferência Nacional de Saúde, em agosto do ano que vem, será uma das primeiras arenas para fazer esse enfrentamento. Muitos temem que, em razão do novo governo, ela não aconteça. O que dizer para essas pessoas?
Ronald: A 16ª Conferência Nacional de Saúde está acontecendo. Ela vai acontecer. Essa é uma construção que nós experimentamos no Brasil com institucionalidade ou sem institucionalidade, mas, hoje, mais do que nunca, com a legitimidade e a legalidade da Constituição, das leis complementares e da própria lei orgânica do Sistema Único de Saúde. Ela vai acontecer e vai ser um espaço importante de resistência em defesa da vida, em defesa da democracia. Na verdade, ela já está acontecendo, diversos municípios estão fazendo suas etapas preparatórias, diversos Estados já têm suas etapas estaduais marcadas e suas comissões organizadoras estruturadas. A 16° vai acontecer de qualquer forma, ela já foi convocada e nós temos a convicção de que temos força sobre qualquer circunstância para fazer com que esse tema da saúde mobilize o povo brasileiro com muita força em 2019.

Fonte: Conselho Nacional de Saúde