“As mulheres cumprem um papel muito importante para o enfrentamento da pandemia”

Ao ganhar o prêmio Carolina Bori Ciência & Mulher, a epidemiologista Gulnar Azevedo e Silva* ressalta o protagonismo feminino na saúde coletiva.

 

 

Quando a pandemia começou, eu era presidente da Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva], uma entidade que abriga três ramos no que diz respeito à saúde: epidemiologia; políticas e planejamento; e ciências sociais e humanas. A associação tem grupos temáticos para cuidar de assuntos como população indígena, racismo, gênero e meio ambiente. Dediquei muito tempo à Abrasco e, ao mesmo tempo, continuei dando aulas na Uerj [Universidade Estadual do Rio de Janeiro], orientando e fazendo pesquisa. Isso representou uma carga de trabalho muito grande, inclusive aos fins de semana.

Minha área de atuação é a epidemiologia de doenças crônicas, mas durante a pandemia acabei, assim como muitos colegas, mudando o foco para entender os impactos diretos e indiretos da pandemia. Houve uma queda grande dos exames para detecção precoce de doenças crônicas. Publicamos um artigo mostrando uma diminuição em cerca de 10% nos óbitos registrados como sendo por câncer e doenças cardiovasculares. Nossa interpretação é que essas pessoas já estivessem doentes, com risco aumentado de desenvolver doença grave se contraíssem o vírus Sars-CoV-2. A Covid-19 foi, assim, a causa de morte registrada no atestado de óbito, sem que pudéssemos monitorar os efeitos das doenças crônicas.

As pessoas deixaram de procurar diagnósticos e adiaram tratamentos, o que não poderia acontecer. Isso terá muito impacto no sistema de saúde, temos chamado a atenção para a importância de o governo garantir recursos suficientes a essa área e às demais necessidades impostas pela pandemia.

A Frente pela Vida foi um movimento que começou em maio de 2020, muito por iniciativa da Abrasco. Como presidente, convidei representantes de outras entidades científicas e da saúde e do Conselho Nacional de Saúde, em uma grande articulação, para pensarmos a melhor forma de trabalhar no enfrentamento da pandemia. Fizemos uma Marcha Virtual em junho de 2020, e o movimento foi crescendo na ação de denunciar e pressionar o governo para que fizesse um plano nacional de enfrentamento à Covid-19. Mas fomos além e, com a participação de mais de 80 pessoas, em três semanas escrevemos nosso próprio plano e abrimos uma grande discussão. O produto final foi entregue ao Ministério da Saúde, ao Congresso Nacional e ao STF [Supremo Tribunal Federal].

No final de 2020 criamos também um movimento pelo fortalecimento do SUS [Sistema Único de Saúde]. A frente tomou como prioridade a defesa da vida, trazendo questões como o direito universal à saúde, democracia e defesa do meio ambiente.

O Ministério da Saúde nunca fez uma campanha de vacinação contra a Covid-19, como o país tinha o costume de fazer para outras doenças. Essa ausência tem um impacto grande, sobretudo na vacinação das crianças. As pessoas estão hesitantes, desconfiadas, e não há motivo para isso. Pelo contrário, é um momento de proteger seus filhos. A pandemia não acabou, as crianças correm o risco de evoluir mal se pegarem a Covid-19 e os efeitos colaterais da vacina são raríssimos.

A SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência] selecionou três pesquisadoras para o prêmio Carolina Bori, eu fui selecionada na área de Ciências Biológicas e da Saúde. Vejo isso como um reflexo de como é importante valorizar a saúde pública nesse momento em que as saídas não são individuais. É claro que todo o trabalho básico de pesquisa é fundamental, foi o que possibilitou o desenvolvimento da vacina. Mas, além disso, há a parte da distribuição, da organização dos sistemas para oferecer vacina a todos e a possibilidade de ter a saúde como direito fundamental. O Brasil tem uma diferenciação em relação à saúde pública porque tem o SUS, o maior sistema público de saúde do mundo.

As mulheres representam mais de 70% dos profissionais na minha área, a saúde coletiva. Entre os profissionais da saúde também somos maioria, com uma parte enorme da enfermagem. Mas há poucas mulheres parlamentares na área da saúde, no Congresso Nacional e também entre os gestores. Os homens ocupam mais as esferas do poder, precisamos mudar isso.

As mulheres cumprem um papel muito importante no enfrentamento da pandemia e na reconstrução do país, vivemos uma crise política e sanitária muito grande. Aprendemos desde cedo a cuidar dos outros e a nos dividir entre as tarefas. Há também a persistência, a resiliência, a sensibilidade de ver quando se deve ser mais delicada ou compreensiva e quando é necessário ser mais dura. Espero que a população saiba eleger bons representantes para que o país tenha outro futuro.

Gulnar Azevedo e Silva é presidente da Abrasco Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Possui graduação em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 1978, mestrado em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutorado em Medicina pela Universidade de São Paulo em 1997. Foi coordenadora de prevenção do Instituto Nacional de Câncer entre 2003 e 2007. É professora do Instituto de Medicina Social (IMS) – UERJ desde 2000 e em janeiro de 2019 foi aprovada como professora titular. Desenvolve pesquisas no campo da epidemiologia de doenças crônicas não-transmissíveis com ênfase na epidemiologia aplicada à avaliação de políticas de prevenção e controle do câncer. É bolsista de produtividade do CNPq e do programa Cientistas do Nosso Estado da FAPERJ. Faz parte do Steering Committee do programa global de vigilância da sobrevida em câncer (CONCORD), liderado pela London School of Hygiene & Tropical Medicine (LSHTM).