Coronavírus expõe fragilidade das farmacêuticas, que receberam menor investimento da década sob Bolsonaro

Estímulo do BNDES e do MInistério da Ciência e Tecnologia caiu 63% ano passado, aumentando dependência brasileira com medicamentos importados; modelo está em xeque por conta da pandemia da covid-19.

 

 

Por Diego Junqueira, Repórter Brasil

O entusiasmo do presidente Jair Bolsonaro em torno da cloroquina – remédio antimalárico em teste contra a covid-19 – contrasta com a redução do estímulo à indústria farmacêutica durante seu primeiro ano de mandato.

Os investimentos federais em produção e pesquisa farmacêutica no setor privado caíram 63% em 2019, segundo levantamento da Repórter Brasil junto aos dois principais financiadores públicos, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) e a Financiadora de Inovação e Pesquisa (Finep), vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações.

No ano passado, o investimento total dos dois órgãos no setor foi de R$ 306 milhões, ante R$ 840 milhões em 2018. É o índice mais baixo de investimentos desde 2009. Desde 2004, quando o governo federal definiu a saúde como área prioritária de investimento industrial e ampliou as linhas de financiamento, os recursos aplicados nas farmacêuticas chegaram a R$ 8,66 bilhões – média de R$ 541 milhões por ano. Os dados consideram somente os valores liberados e não incluem recursos empregados pelo Ministério da Saúde em laboratórios públicos.

Enquanto caem os investimentos públicos no setor, crescem os gastos com a importação de remédios, vacinas e insumos farmacêuticos [matéria-prima para a produção de remédios]. A balança comercial atingiu em 2018 e 2019 recorde negativo histórico de US$ 6,9 bilhões, segundo o Ministério da Economia. Foram US$ 8,1 bilhões em importações e US$ 1,2 bilhão em exportações no ano passado.

Os números revelam o alto grau de dependência externa tanto de medicamentos prontos como de matéria-prima farmacêutica, afirma Paulo Henrique de Almeida Rodrigues, professor do Instituto de Medicinal Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). O Brasil hoje importa 90% dos ingredientes básicos usados na fabricação, principalmente da China e da Índia.

“Até a década de 1990, o Brasil tinha produção local, mas as empresas foram extintas e não houve substituição. O país ficou extremamente vulnerável à importação de insumos”, afirma Rodrigues.

A crise do novo coronavírus deixa evidente a fragilidade da indústria nacional. Com o isolamento social na China (em fevereiro) e na Índia (em vigor), houve queda nos dois países na produção de insumos farmacêuticos, que são disputados também por empresas da Europa e dos Estados Unidos. Há ainda dificuldades logísticas, já que o transporte é feito principalmente por voos de passageiros, que enfrentam redução drástica.

Os dois principais produtos em falta hoje são a cloroquina e a hidroxicloroquina. A Índia, uma das maiores fabricantes do mundo, proibiu em março a venda desses e outros insumos utilizados no combate à covid-19. Outras classes de remédios também estão ameaçadas. A agência europeia de medicamentos afirmou que o continente tem baixo estoque e risco de desabastecimento de anestesias e antibióticos usados para tratar o novo coronavírus. A Repórter Brasil mostrou no último dia 3 que a produção de remédios já está mais cara no Brasil, e que os preços tendem a subir.

“Uma crise como a do coronavírus, em que há dificuldade para importar produtos farmacêuticos, mostra as nossas carências em saúde”, diz a economista Julia Paranhos, pesquisadora da UFRJ. Além da redução de investimento nas empresas, ela aponta queda no incentivo à pesquisa em tecnologia e inovação. “Isso tudo vai contra as políticas que vinham sendo implementadas no Brasil, que tinham objetivo de fortalecer essa indústria e diminuir a dependência externa”.

“Até o momento, não vimos medidas de estímulo do governo para o Complexo industrial da Saúde. Deveríamos estar neste momento incentivando a produção local desses medicamentos para reduzir nossa dependência”, afirma Débora Melecchi, coordenadora da Comissão Intersetorial de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica do Conselho Nacional de Saúde.

Questionado, o Ministério da Saúde não se manifestou até a publicação desta reportagem.

Política de inovação

Alvo de críticas do presidente Jair Bolsonaro na campanha eleitoral, o BNDES foi quem mais cortou verbas. Foram aplicados R$ 87,5 milhões em 2019, ante R$ 370 milhões em 2018. É o menor valor investido pelo banco no setor farmacêutico desde 2001 (R$ 52 milhões). O BNDES Profarma, programa criado pelo banco em 2004 para estimular a indústria, foi extinto em 2016. O departamento responsável pelo setor também foi desfeito e incorporado a outras áreas do banco.

O BNDES diz que o investimento caiu em 2019 pois o ano passado representou “o fim de um ciclo de investimento para o início de um novo”. “Esses ciclos costumam ter duração de três a quatro anos e são renovados à medida que a capacidade produtiva atinge seu ápice”, diz o banco, em nota enviada à Repórter Brasil. O BNDES diz que as operações aprovadas em 2019 aumentaram quatro vezes em relação a 2018 e que o desembolso voltou a crescer em 2020 (leia a nota completa).

Na Finep, os valores liberados em 2019 somaram R$ 219 milhões, queda de 53% ante os R$ 470 milhões investidos no ano anterior. A maior parte do investimento foi para o programa de inovação da Hypera Pharma (R$ 111 milhões). A fabricante de genéricos (ex-Hypermarcas) é a que mais recebeu recursos públicos nos últimos 16 anos: R$ 1,6 bilhão. Procurada, a Finep diz que segue apoiando o setor farmacêutico e disponibilizando as linhas de crédito previstas. “Eventuais aumentos e reduções de valores apoiados refletem a demanda por recursos pela própria indústria”, diz a financiadora, em nota.

Além de investir menos, o governo federal reduziu a compra de medicamentos por meio do programa de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDP), a principal política de inovação do setor. Criada em 2008 pelo Ministério da Saúde, ela busca estimular a alta tecnologia em laboratórios públicos e privados e incentivar a produção nacional de matéria-prima farmacêutica.

Em 2019, o Ministério da Saúde comprou R$ 1,6 bilhão de medicamentos via PDP – queda de 52% ante o gasto de R$ 3,4 bilhões em 2018. A média anual de 2011 a 2018 foi de R$ 2,6 bilhões.

O ministério também suspendeu no ano passado 19 das 85 PDPs vigentes – alegando atraso nos projetos, falha na entrega dos produtos e determinação do Tribunal de Contas da União.

Um das parcerias atingidas foi a da farmacêutica Libbs com o Instituto Butantan para desenvolvimento do trastuzumabe, medicação de alto custo para câncer de mama que esteve em falta no SUS em 2018 e 2019. A diretora de relações institucionais da Libbs, Márcia Bueno, diz que a decisão obrigou a empresa a reduzir investimentos no desenvolvimento da ampola, que é atualmente o remédio de maior gasto no país.

“Sempre há risco de perda [dos investimentos públicos] quando há descontinuidade”, afirma Luiz Marinho, coordenador da Alfob (associação brasileira de laboratórios públicos).

Para Ogari Pacheco, do laboratório Cristália, o programa de PDPs passou por um “freio de arrumação” na atual gestão. Ele aposta na liberação das parcerias suspensas até o final do ano. O Cristália detém o maior número de projetos (21), sendo 4 deles atualmente suspensos pelo ministério.

“Não saberia dizer se é uma redução da demanda das empresas ou do repasse do governo, mas a Finep e o BNDES continuam solicitando projetos porque há capital para investimento”, afirma Sérgio Frangioni, presidente da Blanver e presidente da associação nacional das indústrias de química fina (Abifina). “Desde 2009 já foram vários ministros e vários questionamentos, mas a PDP é um modelo de negócio de sucesso na maioria dos casos”, diz ele. Sua empresa também foi afetada com a suspensão da PDP envolvendo o sofosbuvir, medicamento para hepatite C envolvido em disputa judicial. “Esperávamos algumas demandas do Ministério da Saúde que não vieram. Tivemos que demitir 25% dos funcionários”, afirma.

Dos genéricos às PDPs

A Lei dos Genéricos e a criação da Anvisa, em 1999, foram os primeiros impulsos para remontar a indústria farmacêutica nacional, já que exigiu das empresas novas certificações e padrões de qualidade na fabricação de medicamentos.

O resultado foi um salto no mercado de genéricos, que passou de 9% para 35% das unidades comercializadas no país, entre 2004 e 2017. A participação de mercado das empresas nacionais também cresceu no período, de 33% para 55%.

Em faturamento, contudo, os genéricos correspondem hoje a apenas 14% das vendas. E aí está outro gargalo da indústria brasileira, já que as empresas estrangeiras lideram com folga o mercado de produtos novos (protegidos por patentes) e biológicos (de alta tecnologia).

Em 2008, o governo federal inaugurou uma nova fase de investimentos no setor com a criação das PDPs. “A política de genéricos deu musculatura para a indústria brasileira, mas não era direcionada à inovação”, afirma o pesquisador da Fiocruz Carlos Gadelha, ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (2011-2015) e um dos criadores das PDPs.

A ideia foi unir a política industrial às necessidades de saúde, direcionando os investimentos do BNDES e da Finep para a fabricação de insumos farmacêuticos e medicamentos importantes para o SUS.

Nas PDPs, empresas estrangeiras transferem a tecnologia de fabricação de um remédio para empresas privadas brasileiras e laboratórios públicos. Algumas parcerias envolvem apenas companhias nacionais. A contrapartida do Ministério da Saúde é comprar o remédio da empresa privada durante o período de transferência de tecnologia.

Entre 2011 e 2018, o ministério adquiriu R$ 20,7 bilhões de medicamentos por meio das PDPs – as compras ocorrem sem necessidade de licitação. A economia estimada aos cofres públicos é de R$ 7,1 bilhões, segundo a pasta.

Entre os produtos que ficaram mais baratos com as PDPs estão remédios para tratamento de câncer (imatinibe e everolimo), HIV (tenofovir), transtornos mentais (olanzapina, clozapina e quetiapina) e para pacientes transplantados (tacrolimo).

Apesar dos resultados, a política de PDPs vive um cenário de “insegurança” desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. O principal receio é a não continuidade da política e a dúvida de que o Ministério da Saúde seguirá comprando os produtos. Marco Dacal, diretor da fábrica de biotecnológicos da Libbs, afirma que desde 2016 tem visitado seus parceiros internacionais ao menos três vezes por ano para tratar do programa das PDPs.

Dos oito projetos da Libbs, dois foram suspensos pelo ministério, mesmo após o grupo empresarial ter investido R$ 250 milhões na construção de uma fábrica de alta tecnologia na grande São Paulo – que também contou com empréstimos públicos (R$ 532 milhões do BNDES e R$ 169 milhões da Finep). “Isso aqui é fruto das PDPs”, diz a diretora Márcia Bueno a respeito da nova fábrica em Embu das Artes (SP), a primeira do Brasil a produzir os avançados anticorpos monoclonais, usados contra câncer, doenças autoimunes e outras enfermidades.

Bueno também mostra preocupação com a queda na compra de medicamentos por meio do programa. A Libbs começou a produzir em 2019 o rituximabe, remédio para câncer no sistema linfático usado no tratamento da ex-presidente Dilma e dos atores Edson Celulari e Reynaldo Gianecchini. O Ministério da Saúde, no entanto, ainda não garantiu sua contrapartida. “Estamos esperando o governo anunciar a compra”, diz ela.

Segundo Gadelha, da Fiocruz, “investir em inovação tem risco”, já que nem sempre os resultados são alcançados no tempo que se espera. Ele avalia, porém, que as PDPs estão alcançando seus objetivos, embora o ambiente de incerteza “paralise o investimento”. “Dar continuidade e estabilidade ao programa são fundamentais para que o Brasil não perca todo o investimento que já foi realizado”.

Fonte: Repórter Brasil
Publicado em 27/04/2020