Saúde e acesso ao medicamento como direito, uma luta do profissional farmacêutico

“Mais Saúde para o Brasil! Saúde ferramenta de trabalho do farmacêutico. SUS – impulsionador de desenvolvimento e soberania para o Brasil avançar!”  foi o tema da mesa de debate da manhã desta sexta-feira (2) do 9º Congresso da Fenafar. 

Neste painel, o presidente da Fenafar, Ronald Ferreira dos Santos e o pesquisador do Departamento de Políticas de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Escola Nacional de Saúde Pública, o médico Jorge Bermudez falaram sobre a centralidade da Saúde na luta por um Brasil mais desenvolvido e também para o fortalecimento da valorização do trabalho farmacêutico.

Ronald Ferreira, presidente da Fenafar

O presidente da Fenafar iniciou sua intervenção falando que as diferentes formas de organização da sociedade são determinadas pelo modo de produção, que é a combinação entre as relações de produção existentes e as forças produtivas “Essa relação é o que ao longo da humanidade tem determinado o funcionamento dos processos. Compreender isso é fundamental para pensar a atividade da Saúde”.

Os conflitos entre o capital e o trabalho definem os avanços e ou retrocessos vividos em cada quadra história e se refletem nas regras sociais. “No Brasil, em 1988, conseguimos construir uma Constituição social-democrata, que alterou o que havia até então, que era a legitimação da ideia de que a saúde era uma atividade econômica, uma mercadoria. Foi na Constituição de 88 que mudamos essa lógica e inscrevemos a saúde como direito”, diz Ronald. 

Na sua avaliação, essa “foi a única reforma estruturante que nós conquistamos de fato no modo de produção da vida no Brasil. Não fizemos a reforma política, agrária, urbana, dos meios de comunicação – não fizemos nenhuma das reformas estruturantes mesmo do ponto de vista do capitalismo. A única que nós construímos foi justamente a da Saúde. Essa reforma permitiu nós tirarmos a saúde da condição de mercadoria e colocá-la como direito – ao menos no nosso contrato social estabelecido pela Constituição. Foi assim que nós conseguimos estruturar nossas relações de produção, a força produtiva do nosso trabalho para garantir que a saúde se consolidasse como direito”.

Ronald ressalta que as lutas desenvolvidas pela Fenafar nos últimos anos tinham ao mesmo temo o objetivo de valorizar a profissão do farmacêutico e fortalecer o direito à Saúde, numa compreensão integrada da luta geral com a luta específica. “O avanço da presença do farmacêutico nos serviços públicos, na atenção básica, na gestão municipal, se deu por um conjunto de processos que foram fundamentais para que a nossa categoria pudesse ocupar esses espaços. Isso se deveu à luta da nossa categoria para que a saúde fosse de fato um direito, colocou a discussão do direito ao acesso ao medicamento, à assistência farmacêutica de qualidade”.

O presidente da Fenafar chama a atenção, contudo, que mesmo depois de alçado a direito, “sempre houve um conflito entre os interesses que tentamos conciliar entre o trabalho e o direito à saúde do povo, com os interesses do capital e dos agentes do mercado que atuam na área da saúde”. Por isso, ele considera que sempre é preciso perguntar: “Nessa relação de produção, que interesses nos vamos defender?”. Principalmente num cenário, descrito brevemente por ele, de “ofensiva brutal contra o trabalho e os direitos, em que as conquistas obtidas pela categoria podem retroceder 30 anos! Vamos voltar a ouvir de alguns setores que nosso trabalho está em desuso, que o trabalho farmacêutico não é mais necessário, como ouvimos na década de 80 da Senadora Marluce Pinto”, alerta.

Ele lembra que a construção da Política Nacional de Assistência Farmacêutica nasceu desse debate da Fenafar. Aliás, recorda, os dirigentes da Federação naquele período foram os principais protagonistas da Conferência Nacional de Assistência Farmacêutica e Medicamentos que resultou, posteriormente na PNAF. Por isso, Ronald aponta que a categoria precisa estar atenta e compreender que a luta pelo direito à Saúde, em defesa do SUS é indissociável da luta pela valorização da profissão farmacêutica”. 

8ª + 8 = 16ª Conferência Nacional de Saúde – Democracia e Saúde

Ronald Ferreira dos Santos, que preside o Conselho Nacional de Saúde, reitera que “a construção da resistência contra os retrocessos, inclusive para ter ousadia de lutar por avanços, passa pelo resgate da importante experiência da 8ª Conferência Nacional de Saúde, que tinha inclusive como palavras de ordem central a Democracia e a Saúde. E esse tem que ser o nosso desafio para o próximo período, construirmos a 8ª + 8, a nossa 16ª Conferência Nacional de Saúde, em julho de 2019, para enfrentar aqueles que querem alterar nossa contratação da saúde como direito, para recolocar no centro da luta política a democracia e o direito à saúde.

No final, Ronald anunciou a parceria entre a Escola Nacional dos Farmacêuticos, a Fiocruz e o Conselho Nacional da Saúde realizarão uma série de etapas do 8º Simpósio Nacional de Ciência, Tecnologia e Assistência Farmacêutica para preparar a intervenção de toda a categoria farmacêutica para a 16ª CNS.

Jorge Bermudez

Jorge Bermudez focou sua apresentação na questão do acesso ao medicamento como fator de tensão entre o mercado e o direito à saúde, na luta pela soberania dos países tanto no aspecto da produção industrial de medicamentos, como para a adoção de políticas públicos de acesso.

Ele afirmou que é “impossível absorver novas tecnologias e produtos novos sem aumento dos recursos principalmente num cenário de congelamento da EC 95”, por isso ele considera que é fundamental ampliar o debate pela revogação da Emenda “que impede de avançar, pior vamos retroceder”.

Bemudez falou sobre como a política comercial e industrial definida no âmbito de acordos internacionais e de organismos multilaterais como a Organização Mundial do Comércio impactam na soberania e na vida das pessoas. Ele fala como as patentes e a expectativa de patentes geram uma situação de monopólio que impede a competição e faz com que o laboratório produtor estabeleça o seu preço. E o que se vê são medicamentos com preços inacessíveis e exorbitantes sem que haja informações reais sobre o custo de produção destes produtos. Ou seja, não se conhece a diferença entre custo e preço e há uma situação privilegiada de monopólios que representam uma enorme exclusão, fruto da “cobiça sem limites da indústria farmacêutica de colocar preços elevados e de retirar produtos do mercado quando não tem mais interesse na sua comercialização”. 

Por isso é preciso repor a debate sobre o acesso ao medicamento como um direito. “Se a pessoa não tem acesso ao medicamento na hora certa para o seu uso, gera-se agravamento nas condições de saúde e mais gastos com internações por exemplo, ou a ampliação das demandas judiciais para garantir o acesso a medicamentos que não estão na lista do SUS, e que geralmente  são tratamentos de alto custo”.

Bermudez adicionou outro fator no debate para além da questão custo x preço, que é a assimetria de informação que há sobre os medicamentos. “O médico não sabe e nem quer saber o preço do medicamento, para o médico, depois que ele prescreveu, se encerra o processo. A partir daí é problema do consumidor e do sistema de saúde. E, além disso, a indústria oferece um tipo de informação sobre o medicamento para o médico, uma informação diferente para o dispensador e outra informação para o consumidor”,  que é o vetor mais frágil e hipossuficiente nessa relação.

Além disso, Bermudez recorda que “o médico é bombardeado pela propaganda da indústria e acaba prescrevendo a marca, sempre mais cara. E, o usuário não tem conhecimento para alterar o tratamento”.

Quem pode pagar pelos novos medicamentos?

No caso dos medicamentos de ponta e novas terapias os preços exorbitantes geram uma desigualdade profunda. O pesquisador da Fiocruz trouxe alguns exemplos para mostrar como a caixa-preta da indústria farmacêutica e o monopólio atuam de forma extorsiva e sem qualquer preocupação com o interesse público e com a saúde. “Quase todos os aprovados custam mais de 100 mil dólares o tratamento. Como o Xofigo, para câncer de próstata cuja tratamento fica por 69 mil dólares, ou o Luxturna para distrofia retiniana (cegueira), que fica por 425 mil dólares. Isso é inaceitável!”, afirmou Bermudez.

Segundo Bermudez, em 2014, o CEO da Bayer na Índia falou, referindo-se a um produto oncológico: “Não, nós não desenvolvemos esse produto para o mercado indiano. Nós desenvolvemos essa produto para os pacientes ocidentais que podem pagar. É um produto caro, porque é um produto oncológico”. A declaração causou forte reação e o governo indiano emitiu uma licença compulsória para a produção do medicamento genérico. O produto da Bayer saia por 5.500 dólares. O genérico indiano foi comercializado por 175 dólares por paciente por mês, tornando o produto mais acessível aos cidadãos indianos. 

“O compromisso das indústrias com o lucro é inaceitável do ponto de vista de acesso a medicamentos. No Brasil o único caso de licença compulsória de patentes foi o Efavirenz. Precisamos utilizar mais esses mecanismos para garantir o acesso de medicamentos aos cidadãos brasileiros”, alertou Jorge Bermudez.

Farmacêuticos e a efetivação do direito à Assistência Farmacêutica

Dalmare Anderson

Para fazer a mediação desses temas para o âmbito farmacêutico, o diretor da Fenafar, Dalmare Anderson, ressaltou o importante papel da Fenafar “de pensar para além da corporação e entender como nossa luta específica pode influenciar positivamente na luta pelo direito à saúde”.

Ele citou uma das principais conquistas da categoria que foi a aprovação da Lei 13.021. Até a aprovação dessa lei eu não via farmacêutico em lugar nenhum. Onde trabalha o farmacêutico? Mas desde a pouco tempo, e pelo trabalho da Fenafar, a gente consegue se olhar como uma categoria única, somos todos farmacêuticos, não importa qual nossa área de atuação. Isso já é um avanço impressionante”.

A lei 13.021 é resultado de uma luta de mais de 20 anos, que se iniciou em 1984, quando a Fenafar se mobilizou para enfrentar o projeto de lei da senadora Marluce Pinto, que acabava com a obrigatoriedade da presença do farmacêutico nas farmácias e estabelecimentos de saúde. 

Essa lei só existe porque a Fenafar protagonizou a luta pela sua aprovação desde sempre, ressaltou Dalmare. “Essa legislação reafirmou a co-responsabilização do dono da farmácia, que a responsabilidade técnica do farmacêtuico não pode ser desautorizada, a obrigatoriedade da presença do profissional farmacêutico nos hospitais públicos nas 24 horas de funcionamento, dentre tantos outras questões que permitiram, inclusive, que hoje estejamos assistindo ao surgimento da clínica farmacêutica nas farmácias, por exemplo. A gente só consegue fazer isso, porque nossa profissão arregaçou as mangas para discutir uma nova visão de Assistência Farmacêutica, porque colocamos no centro da política o debate sobre o acesso ao medicamento, porque não adianta cuidar clinicamente do que não é acessível. Se o usuário não tem acesso ao medicamento eu não tenha como realizar a clínica”.

Então, para Dalmare a discussão do acesso como direito é fundamental, e neste contexto uma das principais perdas, um dos principais retrocessos para o direito à saúde e para o acesso ao medicamento foi o fim do programa farmácia popular sede própria. “A extinção dessa política pública é um grande retrocesso”, lamenta.

por Renata Mielli, do Espírito Santo