A trajetória da distribuição de renda no Brasil

Pesquisa do IPEA publicada no jornal Valor Econômico traça um panorama sobre a desigualdade no Brasil, com estudos sobre a distribuição de renda a partir de 1928.

Após cair ampla e ininterruptamente entre 1942 e 1963, a desigualdade social no Brasil deu um salto e voltou a crescer rapidamente já nos primeiros anos da ditadura militar, a partir do golpe de 64. Tal movimento, desconhecido na história econômica do país, é uma das conclusões de um estudo que, a partir de dados tributários, remonta a história de nove décadas de desigualdade social no Brasil.

A pesquisa, de autoria de Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, sob orientação de Marcelo Medeiros, ambos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Universidade de Brasília (UnB), joga luz sobre a distribuição de renda no Brasil a partir de 1928, período a respeito do qual, até então, muito pouco se sabia sobre o tema.

“Uma série ano a ano da desigualdade nós só tínhamos depois de 1976, com as Pnads. Antes disso, só estudos isolados a partir de 1930, que são praticamente desconhecidos. Uma parte enorme da nossa história econômica passou ao largo do estudo da desigualdade”, afirma Medeiros. “Até hoje a história se concentrou no comportamento do Produto Interno Bruto (PIB). Será possível revisar muitas coisas a partir da pesquisa do Pedro”, diz.

O estudo “Top Income Shares and Inequality: 1928-2012” (A fatia de renda do topo e a desigualdade, em tradução livre) argumenta que, em um país de renda concentrada como o Brasil, o que determina o crescimento ou queda da desigualdade social ao longo dos anos é o comportamento do topo  que, na pesquisa, é retratado na fração 1% mais rica da população maior de 20 anos de idade. Em 2012, por exemplo, a renda média desse grupo era estimada em R$ 552,9 mil anuais. “À medida que os 10% mais ricos consistentemente detêm entre metade e dois terços da renda nacional desde 1974, a desigualdade entre os 90% mais pobres tende a ter influência mais fraca”, diz o texto.

O retrato traçado na pesquisa é o de um Brasil muito desigual, desde 1928 até os dias atuais. A trajetória da distribuição de renda no país parece bem mais estável historicamente do que se pensava até então. Em média, ao longo das nove décadas analisadas, cerca de 15% de toda a renda do país esteve concentrada nas mãos da fatia 1% mais rica. A desigualdade é grande até dentro da elite: historicamente, após 1974, a parcela 0,1% mais rica deteve entre 8% e 15% da renda total. Entre 2006 e 2012, o 1% mais rico concentrava mais renda, comparativamente, do que toda a metade mais pobre da população.

“A desigualdade fala muito sobre o bem-estar social. Diz, por exemplo, quem se apropria da maior parte do crescimento do país”, explica Medeiros, dedicado a pesquisar o tema desde 2001. “Crescimento econômico sem redução da desigualdade é menos do que se precisa para se obter uma sociedade boa”, diz Medeiros. Embora pobreza e desigualdade não sejam sinônimos, são problemas relacionados. “Com menos desigualdade o Brasil poderia ter menos pobreza”, afirma.

O trabalho traz revelações surpreendentes. Entre 1942 e 1963, em período de forte crescimento econômico, houve a mais expressiva e duradoura redução da desigualdade já registrada no Brasil. “É a queda mais longa da desigualdade brasileira. E ninguém sabia disso até agora”, diz Medeiros, que enfatiza a importância acadêmica do trabalho conduzido por Souza. “Ele conseguiu montar uma série de 1926 até 2013. Ao montar essa série você pode recontar a história da desigualdade no Brasil, que é mais ou menos o que o Thomas Piketty e o Emanuel Saez fizeram sobre os EUA e a França”.

“Essa queda foi uma surpresa para mim”, diz Souza, que trabalha desde o ano passado na Universidade de Berkeley, na Califórnia, com Saez, parceiro de Piketty. “Acho que dá para dividi-la em duas fases: primeiro, os resultados mostram uma queda ao fim da Segunda Guerra, em 1945. Depois disso, há alguma estabilidade até meados dos anos 50, quando a concentração de renda volta a cair, em uma trajetória mais ou menos constante até o início dos anos 60”, explica Souza. (veja gráfico)

As conclusões da pesquisa também reacendem um debate que, na década de 70, mobilizou nomes da economia nacional. A sequência de dados elaborada por Souza mostra que a longa queda da desigualdade observada até o início dos anos 60 é seguida de um grande salto a partir de 1964, ano do golpe. A partir dali, a fatia da renda do 1% mais rico cresce muito em um curto período de tempo, revertendo a tendência anterior. No início dos anos 70 já havia atingido os mesmos níveis dos anos 50. O trabalho indica que os ciclos políticos  como os períodos de ditadura e democracia  têm influência sobre a desigualdade social. “É razoável concluir que a ditadura realmente promoveu desigualdade maior em seus primeiros anos.”

Outro avanço da pesquisa é a constatação de que, diferentemente do que ocorreu a partir da Segunda Guerra Mundial em países como Reino Unido e França, a queda da desigualdade no Brasil não foi causada por um grande choque externo, como a guerra ou um desastre natural, fenômenos que tornam a sociedade mais igual na pobreza. “O que o Pedro [Souza] achou? Uma coisa que não é explicada por nenhuma dessas teorias, e por isso é importante, porque o Brasil tem um sinal importante a dar”, diz Medeiros.

Souza explica que a metodologia aplicada neste estudo, que analisa a desigualdade social a partir de dados tributários, ganhou visibilidade mundial na última década a partir dos trabalhos do francês Piketty, sobre os altos rendimentos na França em 2001, e projeto similar para os EUA em 2003, que contribuíram para uma proliferação desse tipo de estudo em diversos países.

Esses estudos mostraram que as pesquisas de renda como a Pnad subestimam a renda dos mais ricos. Talvez porque seja mais difícil captar, em um questionário, a riqueza em heranças, patrimônio e juros de capital. Outra justificativa possível é que tais pesquisas de renda são amostrais, e nem sempre a amostra selecionada engloba a casa dos mais ricos.

Mas por que não havia, até agora, um estudo “a la Piketty” sobre o Brasil? “O motivo principal é que até recentemente os dados disponíveis só cobriam o período até o início dos anos 2000. Como a queda da desigualdade nas pesquisas domiciliares foi o grande objeto de interesse nos últimos dez anos, o desejo de todos era conseguir tabulações da Receita Federal para esse período mais recente, algo que só foi possível a partir do ano passado”, diz Souza.

A reunião dos dados envolvia, além de metodologia e análise estatística, algum esforço braçal. Os dados usados na pesquisa já eram públicos, mas espalhados em documentos históricos em prateleiras de bibliotecas, como a da Receita, no Rio, onde Medeiros “se internou” por quatro dias. “Peguei um avião, fui para o Rio, entrei na Biblioteca do Ministério da Fazenda e saí catando todos os livros e abrindo um por um”.

O trabalho usa duas fontes de dados principais para medir a fatia dos mais ricos: a primeira cobre o período entre 2006 e 2012, a partir de dados de pesquisa publicada no ano passado por Souza e Medeiros. A segunda, mais ampla, cobre o período de 1928 a 2012. O cálculo do 1% é feito a partir de um denominador fixo equivalente a 67% do PIB. “A série começa em 1928 e termina em 2012, mas há dados faltando. Temos estimativas para 66 dos 85 anos neste espaço de tempo, o que equivale a 78%, afirma Medeiros.

Embora até agora boa parte desses estudos refira-se a países ricos, já dá para observar tendências. Por exemplo: os resultados sobre desigualdade para a Argentina são muito parecidos com os do Brasil. Nos dois países, observa-se crescimento da desigualdade durante a guerra (1939-1945), com o pico de aumento em 1942, e queda no pós-guerra.

“A diferença é que lá [na Argentina] a maior parte da queda ocorreu no fim dos anos 40”, compara Souza. Nos EUA e em boa parte da Europa Ocidental, a desigualdade caiu justamente durante grandes catástrofes, como a Segunda Guerra. Descobrir a razão pela qual a desigualdade aumentou no Brasil e na Argentina durante esse período ainda é objeto de estudo de Souza.

Medeiros destaca que o estudo pode apontar caminhos diferentes do que se conhecia sobre a desigualdade. “O que o Pedro [Souza] está indicando é que talvez não exista uma regra geral que explique a desigualdade “, diz. “Talvez países da periferia tenham um padrão, e países desenvolvidos tenham outro.”

Para Souza, reduzir a resiliente desigualdade social brasileira não é utopia, mas exigirá que o tema ocupe um espaço maior que o atual no debate político, já que trata-se de tarefa “imensa”. Começará a partir de reformas abrangentes, como a maior progressividade do Imposto de Renda, e políticas públicas que tenham mais foco na redistribuição  em educação, tributação e transferências sociais.

“Como aprová-las?”, questiona Souza. “Se realmente desejarmos viver, digamos, em um país com desigualdade em nível francês ou alemão, vamos ter que inventar um caminho inédito”, afirma o pesquisador. “Não há casos bem estudados na literatura de países que tenham conseguido isso a partir de reduções graduais e prolongadas da desigualdade em tempos de paz e estabilidade”.

Medeiros diz que é difícil prever o futuro da desigualdade, mesmo em cenários de crise. “Eu não arriscaria um palpite. Depende muito de como os ricos vão ser afetados pela crise e como eles vão ser beneficiados pelas medidas de recuperação. Mas uma coisa importante que o estudo de longo prazo mostra é que a desigualdade depende de como o Estado trata as elites”, diz.

 

Fonte: Valor Econômico, via Vermelho.org