Um manifesto pela saúde da população negra

Em ano eleitoral, é urgente retomar o debate sobre políticas públicas direcionadas à saúde das pessoas negras. Hilton Silva, médico e bioantropólogo, membro da Coordenação do GT Racismo e Saúde da Abrasco detalha seu rumo de ação e convoca todos a assinar manifesto pela igualdade racial, em defesa do SUS.

A Política Nacional de Saúde Integrada da População Negra (PNSIPN) existe para reduzir a desigualdade racial sofrida pela população negra no âmbito da saúde e do SUS. Fruto de longa luta dos movimentos negros por direitos, foi promulgada em 2009 – a primeira vez em que o Estado brasileiro reconheceu oficialmente o racismo estrutural. Mas a política não está sendo implementada como deveria, alerta a Aliança Pró-Saúde da População Negra.

O Manifesto em Atenção à Saúde da População Negra no Brasil expõe à população a urgência da implementação das ações que já são garantidas por lei. Também exige que a PNSIPN entre com prioridade na pauta dos políticos que vão disputar as eleições deste ano. A Aliança busca assinaturas para reforçar suas reivindicações.

Hilton Silva enumera as particularidades da saúde para a população negra: “Maiores taxas de mortalidade entre os homens, a maior taxa de violência em geral entre homens e mulheres, as maiores taxas de mortalidade infantil e materna, maiores taxas de mortalidade por causas evitáveis em geral”.

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Hilton também trata dos quilombolas que, por viverem em regiões rurais, têm menos acesso à saúde – e reflete sobre a criação de políticas específicas para eles. Ele faz, ainda, uma linha do tempo histórica das políticas antirracistas, que começaram a ser impulsionadas pelo movimento negro já nos anos 1980. Abaixo, trechos da entrevista concedida pelo pesquisador ao site Outras Palavras.

Como a PNSIPN pode garantir o direito à saúde para a população negra?
A política vem exatamente como uma forma de chamar a atenção do SUS, dos servidores, dos serviços em geral, para a necessidade de trabalhar ativamente contra todas as formas de racismo e discriminação – em particular, nesse caso, sobre a população negra. Ela também se volta para prevenção, promoção, tratamento e reabilitação, prevendo que todas considerem as disparidades étnico-raciais já amplamente documentadas pela epidemiologia. Isso ficou bastante evidente durante a pandemia de covid. Todos esses fatores são amplamente documentados por todos os estados da federação e deixam clara a necessidade dessa política.

Porque apesar de ela ter mais de dez anos, levantamentos recentes demonstram que o grau de implementação efetiva da política ainda é muito baixo, na casa dos 10% a 15%. Pesquisas recentes mostram que a maioria dos municípios brasileiros, por exemplo, não têm dentro do seu planejamento de saúde nenhuma ação voltada especificamente para a saúde da população negra.

E quais seriam essas ações?
As ações envolvem a formação dos profissionais para o combate a todas as formas de racismo e discriminação; a sensibilização dos profissionais e servidores em relação às diferenças culturais específicas da população negra, da população quilombola, dos povos de terreiro, que envolvem questões religiosas, alimentícias, de regionalidades que precisam ser levadas em consideração quando se está desenvolvendo qualquer tipo de atividade – de promoção, prevenção ou tratamento. Envolve a melhoria da acessibilidade dessa população, uma vez que grande parte dela mora em quilombos, são populações rurais que precisam que seja garantida a acessibilidade de acordo com suas necessidades.

Por exemplo no caso da vacinação, um dos desafios foi que a imunização da população negra rural precisava ser administrada nos territórios quilombolas – assim como acontece com populações indígenas, era fundamental que os serviços de saúde fossem até as comunidades para prestar o atendimento.

Um outro elemento importante desse processo é o reconhecimento dessa diversidade étnico-racial e cultural dentro dos municípios. Nós temos ainda hoje muitos municípios onde existem populações quilombolas, que não reconhecem a existência dessas populações e de suas especificidades. O próprio governo federal desconhece quantas comunidades quilombolas existem no Brasil, porque elas nunca foram recenseadas.

Há a necessidade de que qualquer atuação política leve em conta as suas especificidades do ponto de vista epidemiológico. A população negra tem determinados tipos de doenças que se manifestam com maior frequência, como por exemplo a doença falciforme, a hipertensão arterial, obesidade e a  pré-eclâmpsia. Então é preciso que se desenvolva um conjunto de políticas especificamente voltadas para essas populações, quer elas sejam urbanas ou rurais.

A PNSIPN trata desse leque de ações que os serviços de saúde devem fazer no sentido de incluir a população negra e reduzir as disparidades de saúde.

Seria necessário criar políticas específicas a essas comunidades, como a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas?
Olha, esse é um debate em andamento. A Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) está fazendo esse debate. O que ficou evidente durante a pandemia é que as comunidades quilombolas são extremamente deficientes de serviços de saúde, praticamente tanto quanto populações indígenas. Se você olhar do ponto de vista epidemiológico, as taxas das populações quilombolas só são um pouquinho melhores do que as das indígenas, e são piores do que todo o resto da população brasileira. Então, isso indica a necessidade de se pensar uma política potencialmente mais específica para as populações quilombolas. E foi pensando nisso que a Conaq deu andamento à ADPF 742, que é uma uma ação de descumprimento de preceito fundamental junto ao Supremo Tribunal Federal para que garantisse, durante a pandemia, esse atendimento especial às comunidades quilombolas em função da sua fragilidade. Essa ADPF é que tem possibilitado a melhoria do acesso aos serviços de saúde, de atendimento, de vacinação, de EPIs para as comunidades quilombolas.

Então a questão ainda está sendo debatida, há pessoas que defendem a necessidade de um serviço de saúde específico para as populações quilombolas. Mas isso ainda não é consenso entre os envolvidos na discussão.

Além disso, a população negra é quem mais sofre com as mudanças climáticas…

Naturalmente, já que a população negra é a maioria daqueles que vivem em áreas periféricas, favelas, áreas de risco, áreas rurais. Então, são populações que estão diretamente vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas, mais rapidamente do que outras populações que dispõem, inclusive, de melhor serviço de saneamento, transporte e urbanização em geral. As populações negras no Brasil estão alijadas de grande parte dos serviços de infraestrutura: de saneamento, de asfaltamento, de esgotamento sanitário, de coleta de lixo. São situações que se agravam com o efeito das mudanças climáticas globais. Esse é o racismo ambiental, que é um dos elementos mencionados no manifesto.

E o que dizer da violência policial, que foi mais uma vez escancarada, essa semana, com o massacre na Vila Cruzeiro?
No caso da violência, soma-se o racismo à condição de exclusão social. É por isso que a população negra é desproporcionalmente afetada pela violência policial, porque além de ela viver em condição de maiores vulnerabilidades – onde, sim, permeiam o tráfico, a violência social, as milícias – ela também sofre a discriminação de cor. Há uma somatória de efeitos que são mais nocivos a um determinado segmento da população. Os seguidos massacres que têm acontecido no Brasil demonstram muito claramente o racismo, se você olhar o perfil dessas pessoas. Também são pessoas negras a maior parte da população carcerária. Há um conjunto de elementos que explicitam esse racismo sistêmico no Brasil.

Assine o Manifesto em Atenção à Saúde da População Negra no Brasil e assista aos vídeos da campanha.