E se a CPI da Covid-19 no Senado investigasse o caos fiscal do SUS?

A CPI da Covid tem investigado a falta de coordenação nacional, bem como a ausência de racionalidade científico-gerencial no enfrentamento da calamidade sanitária decorrente da Covid-19, entre outras fragilidades. Enquanto isso, o Brasil caminha celeremente para atingir meio milhão de mortes confirmadas ainda neste mês de junho de 2021.

Instalada há praticamente um mês no Senado, a CPI já evidenciou, ao longo dos diversos depoimentos colhidos, que o Executivo federal orientou sua ação em busca da equivocada tese de imunidade coletiva “natural”, a qual seria obtida supostamente por meio da escalada de contaminações. A contratação tardia de vacinas e a rejeição ao isolamento social amplo são consequências desse equívoco. A origem de tal modelo de gestão, por sua vez, reside na priorização maniqueísta da continuidade das atividades econômicas, ainda que isso custasse o acúmulo de centenas de milhares de mortes evitáveis.

Em entrevista à BBC News Brasil, o professor Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas (RS), estima que 20% das mortes por Covid-19 no país poderiam ter sido evitadas, caso as vacinas tivessem sido compradas tão logo foram oferecidas pela Pfizer/BioNTech e pelo Instituto Butantan.

Além do dano mensurável em número de mortes evitáveis, carta de centenas de economistas veiculada em março deste ano estimou o prejuízo econômico e fiscal em, no mínimo, seis vezes o custo das vacinas, diante da sua aquisição atrasada e insuficiente:

“A falta de vacinas é o principal gargalo. (…) A redução do nível da atividade nos custou uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em 2 trimestres.

Nesta perspectiva, a relação benefício custo da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na sua aquisição e aplicação. A insuficiente oferta de vacinas no país não se deve ao seu elevado custo, nem à falta de recursos orçamentários, mas à falta de prioridade atribuída à vacinação”

Cabe, pois, demandar reparação diante de tais danos já quantificados ao erário e à sociedade, até porque tentar manter a economia em plena atividade mesmo diante da calamidade sanitária e negar custeio à compra tempestiva e suficiente das vacinas foram opções que agravaram o comportamento da epidemia da Covid-19 no Brasil.

Se esse diagnóstico parece absolutamente claro agora em meados de 2021, por que os Secretários Municipais e Estaduais e Saúde ainda precisaram vir a público clamar por mais recursos e denunciar uma controversa agenda de austeridade na gestão do SUS, durante a última reunião da Comissão Intergestores Tripartite, realizada na quinta-feira passada?

Em ofício entregue ao Ministério da Saúde, os gestores subnacionais do SUS pediram R$40 bilhões adicionais para o enfrentamento da iminente terceira onda da epidemia ao longo de 2021. Segundo o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), “o subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde agravou-se ainda mais com a crise sanitária, assim como a redução do orçamento da saúde para 2021, quando comparado ao ano anterior”.

Eis o contexto em que nos indagamos acerca das razões pelas quais a CPI da epidemia ainda não se ocupou de investigar a execução orçamentária no âmbito do SUS? Não se trata apenas da compra tardia de vacinas, mas de uma série de ações e omissões na gestão federativa da política pública de saúde que contribuíram para o quadro caótico em que nos encontramos.

Há décadas, o Brasil vivencia uma severa e sistemática instabilidade de custeio promovida pela União na política pública de saúde. Dão prova disso os diversos redesenhos normativos no dever federal de gasto mínimo em ações e serviços públicos de saúde, em face do parâmetro original inscrito no artigo 55 do ADCT.

Tal proporção nunca foi cumprida de fato no ciclo orçamentário federal. À luz do artigo 2º, II, da Lei 14.144, de 22/4/2021, que estima a receita e fixa a despesa da União para o exercício financeiro corrente, o comando do artigo 55 do ADCT — se estivesse em vigor — praticamente dobraria o dever de gasto mínimo federal em saúde (cerca de R$ 261,2 bilhões, ao invés de R$ 123,8 bilhões).

As alterações empreendidas ao longo das Emendas 29/2020, 86/2015 e 95/2016 impuseram uma trajetória proporcionalmente regressiva para a participação da União no volume global de recursos destinados ao SUS pelos três níveis da federação.

Enquanto os pisos em saúde dos Estados e Municípios seguem exatamente os mesmos parâmetros desde a sua fixação pela EC 29/2020 (respectivamente 12% e 15% da receita de impostos e transferências de impostos), o piso federal no setor já foi alterado por 6 (seis) vezes, conforme se depreende da sequência abaixo:

1) Artigo 55 do ADCT — parâmetro de 30% do Orçamento da Seguridade Social teoricamente vigente de 1988 a 1999, mas infelizmente nunca aplicado na prática;

2) Artigo 77, I, alínea “a” do ADCT (Emenda 29/2000) — parâmetro do gasto empenhado no ano anterior acrescido de, no mínimo, cinco por cento (gasto de 1999 + 5%), parâmetro vigente apenas durante o ano de 2000;

3) Artigo 77, I, alínea “b” e §4º do ADCT (Emenda 29/2000) — parâmetro do gasto do ano anterior corrigido pela variação nominal do produto interno bruto — PIB. Tal regra vigorou de 2001 a 2012;

4) Artigo 5º da LC 141/2012 (regulamentando a EC 29/2000) — parâmetro do ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB, com garantia de que não houvesse redução nominal do piso de um exercício para o outro, em caso de variação negativa do PIB. Foi mantida a sistemática da regra anterior e vigorou de 2013 a 2015;

5) Artigo 2º, I da EC 86/2015 — subpiso de 13,2% da receita corrente líquida federal, que vigorou apenas em 2016, a despeito de haver sido suspenso pela cautelar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski na ADI 5595;

6) Artigo 110, I do ADCT (Emenda 95/2016) — 15% da receita corrente líquida, com a revogação do artigo 2º da EC 86/2015. Tal parâmetro vigorou apenas para o exercício financeiro de 2017;

7) Artigo 110, II do ADCT (Emenda 95/2016) — garantia de correção apenas pela inflação (IPCA) do gasto aplicado no ano anterior, durante os exercícios de 2018 a 2036, por força do regime do teto de despesas primárias da União.

A tantas e tão regressivas alterações se somam ações e omissões orçamentário-financeiras (sobretudo nos decretos de contingenciamento e no manejo desproporcionalmente alto de restos a pagar) que reduziram a participação do piso federal em saúde no montante global de recursos vertidos pelos três níveis da federação ao setor, bem como trouxeram um sistemático descumprimento das pactuações federativas celebradas no âmbito do SUS.

A consequência prática de tamanhos redesenhos no piso federal em saúde está evidenciada na sobrecarga de custeio suportada por Estados e Municípios, cuja capacidade arrecadatória é significativamente inferior à da União. A participação federal retraiu de cerca de 60% no volume global de recursos públicos vertidos ao SUS em 2000 para aproximadamente 42% em 2019, ou seja, uma queda inequívoca de quase 1/3.

As ações e omissões que impuseram essa regressividade à participação federal no custeio do SUS revelam um “estado de coisas inconstitucional” [1], nos moldes da decisão da ADPF 347, que precariza a política pública de saúde brasileira, com mitigação de suas duas maiores garantias estabelecidas na CF/1988: financiamento fiscalmente progressivo e arranjo orgânico-federativo.

Com a epidemia da Covid-19 e o estado de emergência de saúde pública de importância internacional (reconhecido na Lei 13.979, de 6/2/2020), essa histórica fragilidade orçamentário-financeira do SUS foi desnudada e restou factualmente inquestionável para a sociedade.

Para mitigar tal erosão, seria preciso fixar o alcance do princípio da vedação de retrocesso e também do princípio da vedação de proteção insuficiente diante de ações e omissões orçamentário-financeiras que afetam, por via oblíqua, a eficácia do direito à saúde.

Dito de forma ainda mais direta, é preciso refutar o paulatino esvaziamento do arranjo orgânico-federativo e a desconstrução da garantia de piso de custeio da política pública de saúde que têm sido causados pela União, mediante imposição de restrição orçamentária que nega cumprimento às pactuações celebradas no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite a que se refere o artigo 14-A da Lei Orgânica do SUS.

Antes mesmo da epidemia da Covid-19, a fragilização da capacidade operacional do nosso sistema público de saúde vinha ocorrendo paulatinamente, como comprova notícia [2] de que, entre 2009 a 2020, foram extintos cerca de 34,5 mil leitos de internação no Brasil.

Nesse contexto de demanda urgente e incontornável de atendimento à epidemia da Covid-19, a crise do SUS emerge como realidade ainda mais dramática, que explica, direta ou indiretamente, significativo contingente de centenas de milhares de mortes acumuladas em 2020 e em 2021 decorrentes da Covid-19.

Ora, o SUS chegou operacional e fiscalmente combalido diante da epidemia, por força das sucessivas restrições interpretativas, emendas constitucionais e operações contábeis que, historicamente, causaram retrocesso ao direito à saúde e mitigaram suas garantias de financiamento e de arranjo federativo-orgânico no âmbito do SUS.

A compra tardia de vacinas e a opção pela imunidade natural de rebanho são, nesse sentido, apenas evidências contemporâneas dessa antiga lógica enviesada que reduzia a participação federal no financiamento federativo do SUS, ao custo da sobrecarga fiscal dos entes subnacionais e do acúmulo de mortes evitáveis ao longo de décadas a fio.

A acomodação histórica das mortes acumuladas a pretexto de ajuste fiscal reducionista do SUS foi desnudada e se tornou socialmente insustentável com a epidemia da Covid-19. A realidade atual tem exigido dos sistemas de saúde de todas as nações um esforço hercúleo para prevenção e redução do contágio, bem como para mitigação dos danos ocasionados à saúde daqueles acometidos com os problemas respiratórios decorrentes.

Segundo o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), no seu estudo denominado “O Brasil com baixa imunidade: Balanço do Orçamento Geral da União 2019“, o gasto federal em saúde de 2019 corresponde ao patamar de 2014, tamanha a sua estagnação fiscal.

Mesmo com 7 milhões a mais de habitantes no Brasil em 2019 em face de 2014, a União ter aplicado em 2019 patamar equivalente a 2014 em ações e serviços públicos de saúde é uma constatação dramaticamente reveladora da regressividade federal de custeio no SUS.

O problema é que nem mesmo a calamidade pública decorrente da Covid-19 alterou o padrão de atuação omisso, insuficiente e errático do Ministério da Saúde, como se depreende do voto do ministro Benjamin Zymler constante dos autos do TC 014.575/2020-5 que tramita no Tribunal de Contas da União. A seguir arrolamos alguns dos seus principais apontamentos:

1) A despeito de ter tido uma dotação autorizada de R$69,88 bilhões no âmbito da ação 21C0, dos quais R$63,74 bilhões foram destinados ao Ministério da Saúde para o enfrentamento especificamente sanitário da epidemia, o SUS efetivamente só contou com R$41,75 bilhões, porque o Governo Federal deixou de executar praticamente o expressivo saldo de R$22 bilhões em relação aos créditos extraordinários abertos no Orçamento de Guerra (Emenda 106/2020) no ano passado;

2) A escolha em negar plena e adequada execução orçamentária ao SUS agravou a capacidade de resposta do Ministério da Saúde na transição de 2020 para 2021. Isso porque, dos R$21,75 bilhões transpostos de 2020 para 2021, R$19,9 bilhões se referem a vacinas e a margem restante (R$1,65 bilhão) é insuficiente para as demais demandas a cargo da pasta no enfrentamento da Covid-19 no presente exercício financeiro;

3) O Governo Federal simplesmente não previu qualquer centavo para a ação 21C0 (relativa ao enfrentamento sanitário da epidemia) no projeto de lei orçamentária de 2021. Vale lembrar que tal ação recebera em 2020 R$63,74 bilhões e que o PLOA-2021 teve sua aprovação no Congresso apenas em 25 de março deste ano, o que permitiria que o Executivo federal tivesse enviado mensagem modificativa do projeto para corrigir a omissão diante do agravamento da calamidade sanitária em país se encontra desde dezembro de 2020;

4) A unidade técnica do Tribunal de Contas da União, responsável pela fiscalização da política pública de saúde federal, não teve acesso a planos e documentos afins que atestassem a existência formal de estratégia de enfrentamento da Covid-19 pelo Ministério da Saúde;

5) Foi retomada a conclusão do Acórdão TCU 2817/2020 — Plenário de que falta uma estratégia nacional de enfrentamento da epidemia no país.

Em suma, o diagnóstico do TCU é contundente em apontar que, mais uma vez, mesmo diante da maior crise sanitária mundial das últimas décadas, a União se eximiu do seu papel nuclear de coordenar uma resposta sanitária federativamente equilibrada e fiscalmente suficiente em busca do fortalecimento do SUS.

O acúmulo de centenas de milhares de mortes majoritariamente evitáveis nada mais é do que uma consequência diretamente imputável a esse histórico estado de coisas inconstitucional na política pública de saúde do país.

Há décadas o Brasil convive com o caos fiscal do SUS, acatando silenciosa e opacamente o acúmulo de mortes evitáveis, a pretexto de falsas restrições orçamentário-financeiras apostas ao custeio da nossa maior conquista civilizatória de 1988.

Tantos redesenhos no piso federal em saúde e tamanhas manobras na execução orçamentária do Ministério da Saúde mesmo durante a gestão da crise da Covid-19 deveriam ser investigados pela CPI da epidemia como faces da mesma moeda.

Se a CPI trouxer a demanda, direta ou indiretamente, de que o Congresso se comprometa com a correção das disparidades federativas no âmbito do SUS, esse certamente seria o seu maior legado, até mesmo em busca de alguma reparação normativa em relação às vidas perdidas de quase meio milhão de brasileiros nesta epidemia.

[1] Como suscitado em Pinto EG. Estado de Coisas Inconstitucional na política pública de saúde brasileira [artigo na Internet]. Rio de Janeiro: CEE-Fiocruz; 2017 (Futuros do Brasil: Ideias para ação). Disponível em: http://www.cee.fiocruz.br/sites/default/files/Artigo_Elida_Graziane.pdf

[2] Como se pode ler em https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-perdeu-34-5-mil-leitos-de-internacao-entre-2009-e-2020,70003243158

*Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas de SP.
Fonte: Conjur

Foto: Marcelo Camargo, Agência Brasil