A Fiocruz diante da covid-19, entrevista com Nísia Trindade

Mal atende o telefone, Nísia Trindade Lima avisa, com delicadeza, que precisará atrasar a entrevista em dez minutos porque recebeu um chamado do Ministério da Saúde. Seus dias têm sido assim desde que os casos da covid-19 passaram a se multiplicar no Brasil. São reuniões virtuais consecutivas, isolamento social até dos filhos e imensas e incontáveis responsabilidades como presidente da Fiocruz. É a primeira mulher no cargo nos 120 anos, completados em maio, da instituição que está no centro do combate à pandemia no país.

 

 

“É duro, é difícil, mas o tempo todo estou trabalhando, e isso nos dá esse sentido de urgência e da importância de estarmos dedicados a esse objetivo”. Comparo-a ao general Patton em meio à Segunda Guerra, mas Nísia discorda: “Fala-se muito de guerra, não gosto dessa metáfora. Para mim, a imagem que expressa essa pandemia é uma crise sanitária e humanitária”. A desigualdade brasileira em meio a esse “desastre” é uma das maiores preocupações da socióloga. “Não há democracia na circulação do vírus. Falam que o vírus é democrático, e ele pode, de fato, atingir a todos, como atinge, mas a capacidade de proteção e de resposta a isso é diferente num país desigual como o nosso”, diz ela, referindo-se aos milhões de brasileiros sem acesso à água e impossibilitados de evitar aglomerações.

Nesta entrevista exclusiva à Ciência Hoje, que reproduzidmos aqui, Nísia fala da importância do Sistema Único de Saúde, de como criar condições para quando uma vacina chegar estar disponível a todos e da iniquidade de gênero dentro da própria Fiocruz.

Quando a Fiocruz foi criada, há 120 anos, as ameaças eram as epidemias de varíola, peste bubônica e febre amarela. Hoje, a instituição segue como referência para combater epidemias e está no centro do enfrentamento da covid-19. Pode falar um pouco dessa trajetória?
NÍSIA TRINDADE LIMA:
 A história do século 20 em relação à saúde pública, e até numa visão mais profunda do Brasil, passa pela Fiocruz. E por quê? O trabalho científico realizado na instituição se volta aos grandes problemas, epidemias urbanas de peste bubônica, varíola e febre amarela, além de outros problemas como as chamadas doenças dos sertões, a Doença de Chagas, marcante na trajetória da instituição. É possível pensar a própria história da sociedade brasileira por esse ângulo da saúde pública, porque a expansão de projetos vistos como modernizadores no território brasileiro sempre colocou questões ambientais, de qualidade de vida, da emergência de doença… E a Fiocruz representa essa história, sempre trazendo aportes científicos dos seus pesquisadores, associando a ciência às necessidades da saúde pública. Neste momento, estamos enfrentando a grande pandemia do século 21, algo que também vai além da saúde. É um grande desafio para uma instituição de ciência e tecnologia vinculada ao Ministério da Saúde (MS) e que, ao longo de sua trajetória, participou do movimento da reforma sanitária na Constituição de 1988, da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e busca unir esse esforço de ciência, tecnologia e inovação com a constituição de um sistema universal em um país continental e extremamente desigual. Se fizermos um paralelo em termos de pandemia, é importante lembrar que cientistas da saúde pública, como Carlos Seidel e Carlos Chagas, foram personagens chave na organização de ações de mitigação da Gripe Espanhola no início do século 20. Então é uma tradição que se atualiza hoje, com uma instituição que se espraia de Manguinhos, onde tudo começou, por todas as regiões brasileiras, com presença de institutos e escritórios em dez estados, e trabalhando toda a cadeia, do conhecimento até a produção.

Quais lições podemos aprender com o combate às epidemias do passado na atual crise?
NTL: Muitos falam que a perspectiva histórica nos ajuda a entender melhor o presente e os desafios que temos. Por outro lado, é difícil tirar lições do passado. Dizem que é como tentar mirar o futuro com um retrovisor. Mas é possível falar de alguns aprendizados e legados. O mais importante é a necessidade de o país ter uma ciência forte e instituições científicas e universitárias onde se possa gerar conhecimento para compreender a dinâmica da doença na relação com a sociedade e o ambiente e também apoiar o desenvolvimento de políticas públicas. O país precisa fortalecer sua base cientifica e tecnológica. Neste momento vemos, de uma maneira muito triste, que muitos insumos de saúde, como equipamento de produção individual (EPI) e respiradores, não estão acessíveis e isso independe do poder de compra, porque dependemos de importações de produtos que agora estão escassos. É importante ter um desenvolvimento industrial que permita ao país sua autonomia e impulsionar o desenvolvimento em outras áreas. Esses são os principais aprendizados: a importância de se investir em ciência e tecnologia e associá-las ao que chamamos de complexo econômico e industrial da saúde. O SUS requer inovação e tecnologia, requer uma base produtiva.

A ciência tem ocupado um lugar central no combate à pandemia, no momento em que muitos movimentos anticientíficos buscam diminuir sua relevância. De que maneira a relação ciência e sociedade vai se estruturar após a atual situação?
Podemos ter esperança, mas não convicção absoluta de que o valor social da ciência venha a ser mais respeitado e fortalecido nesse processo. Cabe à ciência – nesse sentido amplo, em todas as áreas do conhecimento – dar as respostas e informar políticas públicas para proteger a sociedade. Essa é a aposta muito importante que nós temos, mas nada disso é dado. E aí entra a política com ‘P’ maiúsculo. Não podemos apenas fazer esse enunciado da importância da ciência e não trabalharmos cotidianamente para essa construção coletiva. Precisaremos de um pacto pela vida, como bem coloca a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência na Marcha Virtual pela Ciência.

Você é autora do livro Louis Pasteur e Oswaldo Cruz: tradição e inovação em saúde. Por que se valoriza tanto a figura de Oswaldo Cruz, mas não se tem a mesma visão dos cientistas no Brasil contemporâneo?
São várias razões. Oswaldo Cruz se tornou um símbolo, assim como o castelo de Manguinhos simboliza a possibilidade de fazer pesquisa científica de alto nível num país de periferia e, sobretudo, uma ciência cujos resultados são mais visíveis à população. Talvez menos visível, mas quem sabe até mais importante, foi o fato de ele ter formado uma escola. Ou seja: sua memória, seu trabalho foi sendo atualizado por gerações de pesquisadores, entre os quais me incluo. Assim essa matriz histórica é permanentemente atualizada e tem o Oswaldo Cruz como pioneiro e referência maior. Outro fator é que a ciência era feita de uma forma diferente. Hoje em dia, cada vez mais, coletivos e grandes equipes são importantes, e, ainda que as lideranças continuem a pesar, essa figura individualizada do cientista já não existe da mesma forma. E um terceiro aspecto não menos importante é que a ciência no Brasil se democratizou, eram pouquíssimos cientistas no Brasil no início do século 20. Hoje temos muito mais pesquisadores e em todas as regiões do Brasil. Temos também a ideia de ciência cidadã, com a participação ativa da população na construção do conhecimento científico. A base científica se ampliou, e é essa base que precisa ser preservada neste momento. A figura de Oswaldo Cruz permanece na medida em que essa ciência vai se reproduzindo. Se não, ele vai virar um símbolo de um passado longínquo, e isso nós não podemos admitir.

E o hospital de campanha? Além de tratamento dos pacientes, auxiliará nas pesquisas em andamento?
Não estamos chamando nosso centro hospitalar de hospital de campanha porque ele terá uma permanência, como uma ampliação das ações do nosso Instituto Nacional de Infectologia, que já carecia de melhor estrutura para o atendimento de pacientes graves. O hospital é um dos que vão fazer parte desse grande estudo clínico Solidariedade, da Organização Mundial da Saúde (OMS), que está analisando medicamentos já conhecidos para avaliar sua eficácia e sua segurança quando administrados a pacientes da covid-19. Ele vai permitir também, como vai ser um complexo com um grande número de leitos, uma revisão de protocolos, um conhecimento mais amplo das características da doença em sua forma grave no Brasil. Será também um grande laboratório de estudo do comportamento dessa doença nas pessoas com a manifestação mais grave.

Por que a Fiocruz foi considerada referência para a covid-19 nas Américas pela OMS?
Esse é um reconhecimento ao Laboratório de Vírus Respiratórios e Sarampo, que tem mais de 60 anos de atividade e a história marcada pela resposta à epidemia de meningite na década de 1970. Esse reconhecimento da OMS significa que o diagnóstico do vírus, e também o estudo de suas mutações – e aí o Brasil é um grande laboratório –, será feito em todas as Américas tendo como referência o nosso laboratório.

Um dos compromissos de seu programa de gestão é defender o direito à saúde universal e o SUS. Como o sistema está enfrentando a covid-19?
A pandemia, pela velocidade de transmissão e pelos casos graves que requererem longos períodos internação e atenção especializada de alto custo, é um problema para todos os sistemas do mundo, até mesmo no inglês, que é robusto. Por outro lado, vemos os Estados Unidos, uma nação rica, mas que enfrenta com dificuldade a pandemia por não ter um sistema público. Então é importante acentuar que o SUS, neste momento, é uma fortaleza, mas também adoece, porque há outros problemas a serem enfrentados. Teríamos problemas em qualquer situação como o mundo todo, mas soma-se a isso um subfinanciamento histórico. O legado dessa pandemia é que esse sistema precisa ser fortalecido. E a estratégia da saúde da família e da atenção básica, que cresceu no início do século 21, também requer um olhar especial, porque tem proximidade nos territórios. Outro ponto no enfrentamento da pandemia é a extrema desigualdade no Brasil, que implica condições de vida sem saneamento, sem água, o que torna as medidas de higienização muito difíceis de serem implementadas. O mesmo se diz em relação ao isolamento. Além das medidas de saúde e fortalecimento da assistência, tem que se trabalhar medidas de proteção social. As pessoas não podem, ao escapar da covid-19, morrerem de fome.

Como é ser a primeira mulher presidente da Fiocruz em 120 anos e estar no centro do enfrentamento dessa crise só comparável à Gripe Espanhola?
Essa é uma crise planetária, que coloca em xeque o modelo civilizatório, expõe a vulnerabilidade do mundo todo. É um desafio impensável para a minha geração, que participou da construção do SUS, da retomada do processo democrático no país. Meu papel é coordenar esforços da potência que é a Fiocruz, a principal instituição de Ciência e Tecnologia em Saúde da América Latina, fazendo com que atue como um sistema de forma sinérgica. Lidamos com essa pandemia como uma grande crise sanitária e humanitária multidimensional, que requer conhecimento de todas as áreas da ciência. Salvar vidas, fortalecer o nosso SUS e ter uma agenda para um processo que vai se alongar, lutar por uma vacina e garantir o acesso de toda a população à vacina e a outros meios para proteger sua saúde, esses são os grandes desafios.

Como primeira mulher a presidir a Fiocruz, enfrento esse desafio com sentimento ambíguo. Tenho me esforçado para reforçar o nosso Comitê de Equidade e Gênero em torno de uma série de questões, mas destaco uma: mulheres são maioria entre nossos trabalhadores e pesquisadores, mas minoria nos cargos diretivos. Que a minha posição na presidência não sirva só como um exemplo, mas como um motor de reduzir essa iniquidade. E eu falo de um sentimento ambíguo porque, neste momento da pandemia, eu vejo várias colegas na linha de frente. Isso dá orgulho. Por outro lado, essa pandemia revela uma sociedade muito desigual, e essa desigualdade também se expressa entre os trabalhadores da saúde. Temos visto adoecimento dos profissionais e incidindo de uma maneira muito intensa sobre a enfermagem, e, nesta categoria profissional, a maioria é de mulheres. Vemos também aumentar a violência contra as mulheres, num momento que era para estarmos defendendo, como parte do pacto pela vida, um pacto pela paz e por relações sociais de respeito a direitos humanos, dignidade e respeito às diferenças.

As ciências sociais têm sido deixadas em segundo plano nos investimentos do atual governo. Como socióloga, qual a importância das ciências sociais nessa pandemia?
As ciências sociais são importantes em várias áreas, mas, falando especificamente das emergências sanitárias, são fundamentais para pensarmos a dinâmica da circulação de um vírus e seu impacto na sociedade. Além disso, as ciências sociais trabalham com a percepção sobre risco, com as políticas públicas. É impossível enfrentar uma pandemia sem esses recursos. As ciências sociais é que vão permitir que entendamos, por exemplo, que medidas e que comunicação vão ser, de fato, eficientes numa sociedade tão desigual como a nossa. Como mostrou o sociólogo Norbert Elias em O processo civilizador, muitos hábitos que desenvolvemos têm a ver com diferenciação de classe, e esse trabalho foi uma referência importante para estudos sobre as epidemias. Há uma dimensão social muito importante quando falamos que todos podem pegar a doença, mas, ao mesmo tempo, são proteções diferentes de acordo com relações sociais e de poder desiguais. Se ainda tivéssemos entre nós um historiador como Eric Hobsbawn, ele talvez dissesse que o século 21 está começando agora, porque a pandemia vai botar em xeque essa circulação de pessoas e de mercadorias do mundo dito globalizado. Vai evidenciar também as diferenças entre os países com mais e menos condições de proteção e que a proteção depende também de um forte arranjo de política pública do Estado e de uma forte solidariedade social. Tudo isso é sociologia.

Cientistas ligados a Fiocruz de Manaus, entre outros, foram ameaçados por conta das pesquisas que conduzem. Como vê essa situação de coerção da pesquisa e busca de cerceamento do livre pensar por certos grupos sociais?
A ciência só pode existir com liberdade e ética, são dois princípios básicos. Não quer dizer que os cientistas podem fazer tudo o que querem, por isso, temos comitês de ética que se fortaleceram muito no Brasil. No caso específico que você cita, a minha posição é a que está na nota do nosso conselho deliberativo.

Fonte: Ciência Hoje
Publicado em 18/05/2020