Entidades pedem ao Supremo suspensão do teto de gasto para país enfrentar pandemia

Entidades de direitos humanos ingressaram nesta terça-feira (17) no STF (Supremo Tribunal Federal) com petição para suspensão imediata da emenda constitucional que estipulou em 2016 um teto de gastos federais por 20 anos. O pedido afirma que a pandemia de coronavírus pode levar o sistema de saúde e outras políticas sociais ao colapso, com efeitos para depois de 2020.

 

 

A situação exigirá do país a complementação de recursos e, segundo a petição, a emenda do teto é um “entrave à reação à pandemia”.

A iniciativa partiu de organizações como Ação Educativa, Conectas Direitos Humanos e Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

As entidades são qualificadas como parte interessada (amici curiae, que significa amigos da corte, em latim) em três ADIs (ações diretas de inconstitucionalidade) que já tramitam no Supremo contra a emenda.

A peça é assinada pela advogada Eloísa Machado de Almeida, professora de direito da FGV-SP e membro do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, que representa as mais de 25 organizações da sociedade civil.

Especialistas afirmam que a regra que limita o crescimento das despesas federais não impede que o governo gaste mais em ações de combate ao coronavírus, pois o dinheiro para casos de calamidade pública fica fora da restrição.

No entanto, parte deles defende que o mecanismo seja temporariamente suspenso para que a equipe do presidente Jair Bolsonaro adote as medidas necessárias.

A petição levada ao STF nesta terça argumenta que o teto de gastos alterou a lógica constitucional: esforços pautados para manter a necessária melhoria e expansão das políticas de saúde e educação transformaram-se em um cenário de “reivindicações para sua mera existência”.

Agora, diz o texto, uma emergência de saúde pública se sobrepõe por causa do coronavírus.

As entidades ressaltam as preocupações com o financiamento adequado do sistema de saúde, mas apontam para a emergência de manter e ampliar políticas sociais diante da pandemia.

“O resultado do subfinanciamento das políticas de saúde, que já era grave, toma proporções catastróficas em um cenário de crise de saúde, com a pandemia de coronavírus”, diz o texto.

Entretanto, argumenta a petição, não basta olhar somente para as políticas de saúde.

“Toda a estrutura constitucional de proteção social tem de ser e estar fortalecida, já que a desigualdade é também um fator de agravamento do impacto da doença.”

O texto chama a atenção ainda para o “potencial de destruição” com relação à população em situação de rua e em assentamentos precários.

Cita a necessidade de ampliação da testagem e de leitos de terapia intensiva, mas também ações emergenciais na área de assistência social e de segurança alimentar, “com a expansão e fortalecimento urgente dos programas de rendas mínima”, como o Bolsa Família, BPC (benefício assistencial para idosos carentes e deficientes) e de outros como o Bolsa Alimentação Escolar.

Até esta terça, 23 redes estaduais de ensino já haviam suspendido as aulas, segundo balanço do Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação).

“As merendas ocupam função importante no dia a dia de muitos alunos”, diz o texto. “Para essas crianças, períodos sem aulas é equivalente à fome.”

Aprovado pelo Congresso em 2016, na gestão do ex-presidente Michel Temer (MDB), o limite de crescimento das despesas públicas foi incluído na Constituição e impede a expansão dos gastos acima da inflação. Qualquer alteração nessa regra depende de amplo apoio na Câmara e no Senado.

A restrição ao aumento dos gastos tem algumas exceções. Uma delas é o envio de dinheiro para despesas imprevisíveis e urgentes, como em caso de guerra, comoção interna ou calamidade pública.

O governo, portanto, pode usar esse dispositivo para ampliar os recursos em ações de contenção das transmissões do vírus e tratamento de pacientes infectados.

Fonte: Folha de S.Paulo
Publicado em 19/03/2020

Defensores da saúde pública, uni-vos!, por Jandira Feghali*

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi construído a partir de um debate intenso com a sociedade. Houve um tempo em que os que não tinham carteira assinada eram tratados como indigentes e lhes era negado o acesso aos serviços públicos de saúde. Inscrever a saúde como direito de todos e dever do Estado na Constituição, universalizando o acesso, foi uma enorme conquista. Responsavelmente foram garantidas fontes plurais para os objetivos estabelecidos.

 

 

Começou a se travar, a partir daí, uma luta de resistência e avanços, a depender do governo que estava no comando da nação. Desde tentativa de desconstitucionalização do SUS, até profundas asfixias financeiras.

Em um intervalo de três décadas, passamos de um aporte de 30% dos recursos das contribuições sociais para vinculações de recursos mínimos e, hoje, temos o absurdo limite “constitucional” que estabelece um teto de gastos para custeio e investimento, apenas incrementado pela inflação do ano anterior. Nenhuma ampliação de serviços, contratação de profissionais, produção de medicamentos é possível sem retirar recursos de outras políticas essenciais. É a famosa Emenda Constitucional 95, que só não coloca teto para gastos financeiros, ou seja, para a dívida pública. Projeções indicam que a participação dos investimentos em relação ao PIB, com as limitações da emenda do teto, cairão 4 pontos percentuais até 2026. Na saúde, as perdas somarão, apenas em 2020, R$ 14 bilhões.

Mais preocupante, no entanto, é a mais nova investida contra o direito à saúde, na medida em que, depois da reforma da previdência, avançam para o desmonte do serviço público com propostas de reforma administrativa e do Plano Mais Brasil, apresentado por meio de três Propostas de Emendas à Constituição (PECs 186, 187 e 188). Estas tratam de situações de emergência fiscal e alterações em fundos constitucionais e no pacto federativo. Um verdadeiro ataque a conquistas de diversas áreas, que levará a forte redução dos serviços públicos. Caso sejam aprovadas farão com que a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, reduzam despesas obrigatórias quando forem atingidos determinados indicadores. Na prática, se a economia vai mal o corte recai com força em áreas sociais cada vez mais necessárias nesses momentos de crise.

E mais: as PECs promoverão a extinção imediata da vinculação de recursos, uma conquista para a saúde e educação.

Mas, o ataque à saúde pública não para por aí. Ainda se propõe extinguir o fundo social e a vinculação dos royalties à educação e saúde. As perdas serão inestimáveis.

E o pano de fundo a justificar o verdadeiro descaso com as políticas públicas atende pelo nome de “emergência fiscal”. Mas, não aceitam que os dados apresentados como base sejam questionados, mesmo que estes indiquem que não estamos em emergência fiscal! O discurso se presta a passar uma imagem de um governo responsável com as contas públicas, mas esconde sua real intenção: minguar os investimentos em políticas públicas para beneficiar o sistema financeiro. Serão R$ 219 bi desviados para pagamento aos bancos. É disso que se trata e isso precisamos combater.

A asfixia financeira do SUS trará de volta não apenas as epidemias e desassistência, como o tempo em que acesso à “saúde pública” era para poucos. Os prejuízos devem ser expostos. A sociedade precisa se mobilizar. Ainda mais quando temos uma pandemia de Coronavírus anunciada a combater.

Saúde não é mercadoria.
Em defesa da vida, uni-vos.

*Jandira Feghali é médica, deputada federal pelo PCdoB/RJ

Fonte: Midia Ninja
Publicado em 12/03/2020

Semana da Saúde 2020: CNS propõe que conselhos intensifiquem ações contra o desmonte do SUS

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) propõe que os conselhos estaduais e municipais intensifiquem as ações contra o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS). A ideia é realizar aulas em praças públicas, debates, audiências, seminários ou rodas de conversa durante a Semana da Saúde 2020, que acontecerá de 2 a 7 de abril. A estimativa é que mais de 100 mil pessoas se mobilizem contra o desfinanciamento do SUS em todo o país.

 

 

A Semana da Saúde 2020, que tem como tema “Saúde é Direito”, pretende mobilizar mais de 100 mil pessoas nas ruas, em todos os estados do país. O objetivo é dialogar com a população sobre os impactos do desfinanciamento do SUS, que tem se agravado a cada dia, em especial pela implementação da Emenda Constitucional (EC) 95/2016, que congelou os investimentos em políticas sociais até 2036.

A mobilização também é contra o Plano Mais Brasil, que tramita no Congresso Nacional com as Propostas de Emendas Constitucionais (PEC) 186, 187 e 188, que podem agravar ainda mais o cenário para as políticas sociais, em especial para a Saúde. Segundo estudo realizado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), as limitações de financiamento impostas só pela EC 95, podem resultar em cerca de 20 mil mortes e 124 mil hospitalizações na infância.

Com a emenda, a Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS estima que o prejuízo à Saúde pública possa chegar a R$ 400 bilhões em duas décadas. Entre as atividades sugeridas pelo CNS para a semana está a coleta de assinaturas do abaixo-assinado pela revogação da EC 95.

Assine o abaixo assinado pela revogação da EC 95

Além do desfinanciamento, é fundamental abordar com os participantes das atividades a importância do SUS, presente no dia a dia de todos os brasileiros e brasileiras, como nas campanhas de vacinação, na fiscalização de alimentos em bares e restaurantes, na qualidade da água, no atendimento do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), na realização de transplantes e diversos outros serviços.

O SUS também é o responsável por diversas ações de promoção e proteção à Saúde, como o controle de doenças e epidemias como o novo Coronavírus (Covid-19), por exemplo. Desde que apareceram os primeiros casos do vírus, foi instalado no país um centro de operações de emergência para monitorar a doença. Além disso, diversas instituições ligadas ao SUS realizaram uma série de ações de referência em nove países das Américas.

Rede em defesa do SUS

Promova e participe das atividades da Semana da Saúde 2020 e ajude a fortalecer a rede em defesa do SUS e da saúde pública como direito a toda a população. O CNS vai divulgar nas redes sociais as imagens da mobilização. Encaminhe para o [email protected] fotos das atividades, com nome da cidade, estado e data de realização.

Dia Mundial da Saúde

O Dia Mundial da Saúde é comemorado em 7 de abril. A data coincide com a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1948. O conceito de Saúde definido pela OMS é amplo e não se restringe apenas a ausência de enfermidades, sendo: “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afeções e enfermidades”.

Fonte: ASCOM CNS
Publicado em 11/03/2020

EC 95 – O vírus que está matando o SUS, por Ronald dos Santos

O teto de gastos, que tirou cerca de 20 bilhões de reais somente em 2019 do Sistema Único de Saúde , está promovendo a maior desestruturação da saúde pública no Brasil.

Por Ronald Ferreira dos Santos*

Num momento de alerta internacional por conta do Coronavírus e de grave crise econômica, onde um enorme contingente de pessoas está desempregada ou trabalhando de forma precária, perdendo o atendimento no sistema de saúde suplementar, as consequência da Emenda Constitucional 95 é o adoecimento e a morte de milhares de pessoas, é a redução drástica da capacidade das estruturas públicas de seguridade social e saúde de desenvolverem ações e políticas de prevenções.

Desde muito antes da aprovação do teto de gastos, as organizações, ativistas e pesquisadores da área da saúde já alertavam para a situação de subfinanciamento do SUS. Apesar de ser o maior programa de saúde pública do mundo, a demanda — desde a atenção básica até procedimentos especializados — cresce em descompasso com a capacidade de se ampliar as estruturas de atendimento.

Medidas importantes foram adotadas para procurar enfrentar essa situação: a política de atenção básica e a estratégia saúde da família, o Programa Mais Médicos, o Farmácia Popular, a Política Nacional de Assistência Farmacêutica, entre outras que somadas buscavam ampliar o acesso aos serviços de saúde para a população brasileira.

Contudo, desde o segundo semestre de 2016, essas políticas todas vem sendo desmontadas e descontinuadas. A aprovação do teto de gastos foi o prego que faltava martelar no caixão dessas políticas.

Ao lado disso, uma desregulamentação das políticas vem sendo construída para dar ainda mais poder ao mercado da vida, ou aos mercadores da morte: tentativas de modificar legislações, como no caso da Lei 13021/2014, para acabar com a obrigatoriedade da presença do farmacêutico nas farmácias e liberar a venda de medicamentos me qualquer tipo de estabelecimento comercial. A redução do papel da Anvisa no processo de autorização da circulação de medicamentos – fator importante para a segurança da saúde da população, políticas de ataque aos laboratórios públicos, etc.

A alternativa que o Estado oferece à população diante de tamanho desmonte é o plano de saúde popular, é pagar para ter acesso a um serviço precário. Contudo, tal alternativa não cabe no orçamento do cidadão, uma vez que explode o número de trabalhadores informais — sem registro e sem qualquer benefício incorporado ao seu trabalho. Isso para não falar no desemprego que está na ordem de 13% da população brasileira.

O resultado disso é o retorno de uma epidemia de Sarampo, o aumento dos números de casos da Dengue e de doenças negligenciadas no Brasil. Também a falta de medicamentos básicos em postos de saúde, queda na cobertura de vacinação, aumento da mortalidade materna e a ausência de médicos em muitas regiões do país.

O modelo econômico do atual governo é totalmente incompatível com uma política de caráter democrático, universal e integral como o SUS. Por isso, a sociedade brasileira precisa se mobilizar para exigir que se reestabeleça uma política que coloque a saúde como prioridade. O momento é mais que oportuno: vivemos o contexto de uma pandemia que pode ter consequências trágicas.

Dia 07 de abril é o Dia Mundial da Saúde. Temos que mostrar de forma inequívoca que é preciso revogar a Emenda Constitucional 95, é urgente recompor os recursos do SUS.

*Ronald Ferreira dos Santos é farmacêutico, presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos e ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde.

Publicado em 11/03/2020

Orçamento da Saúde perdeu R$ 20 bilhões em 2019

A receita da União cresceu 27% desde que a Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos) entrou em vigor, mas não houve aumento compatível no orçamento da Saúde. Só em 2019,o orçamento da Saúde perdeu R$ 20 bilhões.

 

 

A Emenda Constitucional (EC) 95 implementada durante o governo de Michel Temer (MDB) e mantida pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido) prometeu congelar os recursos do orçamento da união para despesas básicas. Entretanto, como previsto por uma grande parte da sociedade civil, a promessa caiu por terra e, na verdade, os recursos da Saúde estão caindo cada vez mais.

A denúncia é do pesquisador de economia da saúde e consultor do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Francisco Funcia, que analisou dados do orçamento da União aos quais o CNS teve acesso.

Funcia atesta: a receita da Saúde vem em “queda livre” desde a implementação da emenda.

A EC 95 – do Teto de Gastos – representou, na prática, a desvinculação do gasto mínimo 15% da receita da União com a Saúde. Isso ocorre porque os gastos do governo foram limitados ao valor utilizado ano anterior, reajustado somente pela inflação acumulada.

Por conta disso, aponta o pesquisador, mesmo que a receita da União tenha crescido, em 2019, cerca de 27% em relação a 2016, não houve um crescimento compatível na Saúde. Com a EC 95, o recurso destinado à pasta será sempre aquele valor de 2017 somado à inflação.

“Quando eu comparo o quanto da receita está sendo alocada para a saúde eu percebo que cada ano que passa está alocando menos. Eu estou, inclusive, voltando aos percentuais do fim da década passada”, explica Funcia.

Enquanto em 2017, quando a emenda passou a vigorar, os gastos com os serviços públicos de saúde representavam 15,77% da arrecadação da União, em 2019, os recursos destinados à área representaram 13,54%.

R$ 20 bilhões perdidos

Se em 2019, o governo tivesse aplicado o mesmo patamar que aplicou em 2017, 15% da receita corrente líquida de cada ano, a Saúde teria um orçamento de cerca de R$ 142,8 bilhões em 2019 – e não R$ 122,6 bilhões aplicados. Ou seja, um encolhimento de R$ 20,19 bilhões nos recursos saúde da população.

Segundo Funcia, a projeção permite afirmar que a Emenda Constitucional 95 não preserva os recursos da saúde, como o argumento utilizado pelo governo Temer à época. Ele explica que e medida não leva “em consideração que as necessidades de saúde da população crescem e significa não realocar a célula do crescimento da receita para atender estas necessidades crescentes de saúde da população”.

Emenda da Morte

O economista e vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres), Carlos Ocke, endossa a análise de que o gasto público está diminuindo e explica que desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), pela Constituição de 1988, há um “subfinanciamento” ao orçamento da pasta.

Ele alerta para a redução progressiva da chamada renda per capita da saúde, o valor aplicado em um ano pelo Estado na saúde da população dividido pelo número de cidadãos.  O valor investido por pessoa, que chegou a R$ 595 em 2014, passou a ser de R$ 555, em 2020. “Em vez de crescer o gasto público federal per capita em saúde, tem-se retirado investimentos, considerando que a população está crescendo e que a população está envelhecendo e, portanto, existe uma curva crescente dos custos de saúde associados ao envelhecimento.”

Segundo Ocke a Emenda Constitucional 95 representou uma descontinuidade desse padrão para pior e está provocando o “estrangulamento e sucateamento do SUS”, além de impactar diretamente a distribuição de renda.

“Nessa perspectiva de redução gastos públicos e de retirada do Estado na economia e na redistribuição de renda, que é disso que se trata as políticas sociais universais cumprem esse papel. Você aumenta o gasto privado das famílias e acelera o movimento de privatização simultaneamente a uma queda do gasto público e simultaneamente a uma piora do quadro epidemiológico. Então você vê claramente que o bem-estar social das famílias e dos trabalhadores piorou, você pode verificar isso quando você olha o aumento da pobreza e o próprio aumento da desigualdade.”

O economista ressalta que, na prática, essa política aumentou a desigualdade do acesso à saúde, piorou as condições de oferta e qualidade do SUS. “A gente vê isso nos dados do aumento de quadro de dengue e no próprio retorno do sarampo talvez, no aumento da mortalidade infantil e materna, na mortalidade precoce em doenças crônicas em especial no câncer, no retorno de doenças preveníveis e a queda do nível de vacinação”, avalia.

Sem perspectivas

Ocke avisa que a tendência para 2020 é a situação da saúde e da população brasileira piorar ainda mais, dado que tramitam no Congresso Nacional novas Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que alteram a regulação dos gastos públicos da União, estados e municípios de diferentes maneiras.

As PECs foram encaminhadas pelo governo Bolsonaro em novembro do ano passado e são englobadas no que a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, chama de “Plano Mais Brasil”: PEC Emergencial, PEC dos Fundos Públicos e PEC do Pacto Federativo.

A primeira é a PEC 186/2019, trata da possibilidade de redução compulsória de salários dos servidores públicos em até 25%, acompanhada da redução equivalente da jornada de trabalho. A segunda, PEC 187/2019, autoriza o governo a extinguir um conjunto de fundos públicos atualmente existentes e permite a utilização dos saldos bilionários existentes em tais fundos pelo comando econômico. E a terceira PEC é a 188/2019, a principal das três, prevê, entre outras medidas, a unificação dos gastos mínimos obrigatórios para saúde e educação.

“Esse quadro de austeridade fiscal que já era grave e já era de sucateamento, caso as PECs sejam aprovadas caracterizando, sem exagero do prefixo, uma política de hiper austeridade fiscal, você piora ainda mais esse quadro. É muito grave”, prevê o economista.

Fonte: Brasil de Fato
Publicado em 02/03/2020

Um protesto tímido pela progressividade do Fundeb e do Bolsa Família

Fundeb e Bolsa Família são eixos civilizatórios em políticas públicas essenciais (educação e assistência social) que não podem ser amesquinhados, revogados, descontinuados ou simplesmente asfixiados fiscalmente. Sua evolução normativa reclama sempre progressividade, o que, por óbvio, passa por custeio suficiente ao atendimento das obrigações legais já definidas.

 

 

Por Élida Graziane Pinto*

O poema “Consolo na Praia”[1], de Carlos Drummond de Andrade, tem me reavivado alguma esperança sempre que a realidade dura soa como iniquidade intransponível. Particularmente me ampara a seguinte estrofe:

“A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.”

Nesta terça-feira de Carnaval, acumulamos o som e as imagens dos “protestos [nada] tímidos” contra a desigualdade brasileira, que foram feitos nos desfiles de diversas escolas de samba[2]. Ainda neste fevereiro tão poético que já caminha para o fim, vale lembrar a premiação do Oscar 2020[3], que também denunciara a perda da promessa de bem-estar social como nosso maior conflito contemporâneo (a repetir tensões dignas do final do século XIX)…

O poeta nos avisa que “a injustiça não se resolve” sozinha, até porque o “mundo errado” se reproduz em meio a novas tramas juridicamente naturalizadas de extrema desigualdade político-econômica. Descobrir quem são os parasitas[4] (para além da propaganda oficial) é um desafio colossal e diuturno diante do severo bombardeio do nosso ordenamento constitucional.

A distribuição de direitos e deveres de custeio guarda severo conflito, sobretudo em tempos de ajuste fiscal seletivo e iníquo[5] que nega a efetiva aplicação do princípio da função social da propriedade. Cinismo e fisiologismo fiscal não são fantasias de carnaval, muito pelo contrário: são a contundente face real das escolhas orçamentárias brasileiras. Que outro nome dar à escolha de constranger a fila de acesso ao Programa Bolsa Família (PBF)[6] ou à estratégia de colocar em risco a renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb)[7]? Rodrigo Zeidan bem definiu como sordidez[8]… Francisco Menezes vai mais longe e grita seu protesto contra essa “fábrica de fazer pobres”[9]:

“A assistência do Estado àqueles mais necessitados vai se reduzindo. Não só o Bolsa Família, mas outros programas que formavam o chamado “colchão de proteção social” vão sendo esvaziados ou extintos. […]

Então, que se assuma sem subterfúgios. Não se trata apenas da crise, mas das escolhas feitas para enfrentá-la. E essas escolhas, como os dados também mostram, aprofundaram as diversas desigualdades no país e, por conseqüência, o empobrecimento de parte de nossa população. Enquanto não for revisto o caminho adotado, os indicadores não irão alterar sua rota, e a fábrica que produz pobreza e extrema pobreza continuará a funcionar celeremente.”

Enquanto isso persistem impasses consideráveis na esfera tributária (matriz regressiva agravada pelas renúncias fiscais), na concentração bancária[10], na ausência de limites para a dívida pública federal (a despeito dos arts. 48, XIV e 52, VI da CF, do art. 30 da LRF e do Acórdão TCU 1084/2018), nos reajustes salariais e benefícios previdenciários privativos dos militares[11], no caríssimo “overnight das operações compromissadas”[12], entre outros.

Nosso orçamento de castas reproduz e amplifica a desigualdade. Os que não conseguem se defender como as crianças e jovens da educação básica obrigatória e as famílias em condições de pobreza e extrema pobreza são constrangidos pela tese falaciosa de que não há como ampliar o custeio do Fundeb e do Bolsa Família.

Eis aqui o ponto de onde timidamente ergo minha voz e registro um protesto adicional: não cabe a qualquer governante de ocasião constranger o custeio de ambos, negando-lhes progressividade e até colocando em risco sua continuidade, sob pena de afronta aos princípios do mínimo existencial, vedação de retrocesso e vedação de proteção insuficiente.

A estatura jurídica do Fundeb e do Bolsa Família, na forma do Anexo III da LDO federal vigente (Lei 13.898/2019)[13], é a de despesa amparada do contingenciamento, por envolverem, ambos fundo e programa, um plexo de obrigações constitucionais e legais de fazer inadiáveis e incomprimíveis.

A esse respeito, basta clara é a redação do §2º do art. 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal: “Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias.”

Fundeb e Bolsa Família são eixos civilizatórios em políticas públicas essenciais (educação e assistência social) que não podem ser amesquinhados, revogados, descontinuados ou simplesmente asfixiados fiscalmente. Sua evolução normativa reclama sempre progressividade, o que, por óbvio, passa por custeio suficiente ao atendimento das obrigações legais já definidas.

No âmbito do Fundeb, há evidente fraude interpretativa na omissão em regulamentar o custo-aluno qualidade inicial (CAQi) e o custo-aluno qualidade (CAQ), a que se referem as estratégias 7.21 e 20.6 a 20.8 da Lei 13.005/2014 (Plano Nacional de Educação), como já denunciado pelo TCU desde seu Acórdão 618/2014. Todo o debate sobre a insuficiente complementação federal ao Fundeb — reavivado na tramitação da PEC 15/2015 — tem como pano de fundo a pura e simples omissão da União em cumprir o artigo 206, VII e o artigo 214 da Constituição de 1988, bem como as citadas estratégias do PNE. A fraude fiscal em curso repercute na péssima qualidade da educação básica obrigatória ofertada às crianças e aos jovens brasileiros e merecia ser tratada na seara do dano moral coletivo, na forma do artigo 37, §6º da CF.

Por outro lado, a fila de acesso ao Bolsa Família configura, ao meu sentir, lesão a direito subjetivo equiparável ao benefício de prestação continuada (BPC). A concessão do Bolsa Família aos cidadãos que cumprem os requisitos de elegibilidade definidos na Lei 10.836/2004 não pode ser considerada uma escolha discricionária do gestor, mas sim ato vinculado de natureza jurídica equivalente ao benefício assistencial de que trata a Lei 8.742/1992 (LOAS).

Negar assistência a quem faz jus — na forma do que a lei já houver regulamentado — é ferir não só os princípios da dignidade da pessoal humana e do mínimo existencial, mas literalmente lesar direitos que podem ser demandados, na forma do artigo 5º, XXXV da Constituição brasileira. Deixar morrer na pobreza e extrema pobreza os cidadãos que têm direito ao PBF é também ato punível, no mínimo, na esfera do artigo 37, §6º da nossa Constituição.

Quando o artigo 9º, §2º da LRF fala em não serem objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, o comando fiscal ali embutido é ainda mais forte do que o Executivo normalmente lhe atribui. Não se trata apenas de não poder contingenciar a dotação correspondente, como também significa que não é possível deixar de suplementá-la, se necessário for.

Diante das injustiças desse mundo errado na seara fiscal, hoje ergo meu protesto tímido e grito rouca e angustiadamente: custeio progressivo do Fundeb e do Bolsa Família são obrigações constitucionais e legais!

Não lhes imponham uma inexistente limitação fiscal para frustrar sua eficácia e para ampliar sórdida e cinicamente a fábrica de fazer pobres e ignorantes em que nosso país vive desde sempre… Carlos Drummond de Andrade nos dá o consolo de que os protestos não devem parar diante das sombras. As injustiças precisam ser combatidas, por mais que o mundo siga sendo conduzido em trilhas erradas. Nossa obstinada poesia reside em denunciar a injustiça e exigir cumprimento resiliente do pacto constitucional de 1988.

[1]Disponível em https://www.letras.mus.br/carlos-drummond-de-andrade/460646/

[2] Como se pode ler em https://revistaforum.com.br/cultura/carnavalescos-colocam-carnaval-como-contraponto-a-forcas-reacionarias/ e https://oglobo.globo.com/rio/critica-politica-marca-safra-do-carnaval-2020-ouca-os-sambas-enredo-ja-escolhidos-24015914

[3] Como bem suscitado em https://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-desigualdade-no-oscar-24264628 e https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/opiniao/2020/02/13/internas_opiniao,827703/artigo-o-oscar-da-desigualdade.shtml

[4] Sobre o filme vencedor da premiação de melhor filme e outras no Oscar 2020, uma boa análise pode ser lida aqui “https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-parasita-de-quem/”. Sobre a comparação feita pelo Ministro da Economia, uma outra provocação digna de registro é a disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/marco-aurelio-nogueira/o-parasita-de-bong-joon-ho-e-o-de-paulo-guedes/

[5] Francisco Tavares e eu escrevemos a respeito em https://valor.globo.com/opiniao/coluna/em-busca-da-equidade-fiscal.ghtml

[6] Noticiado em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/02/bolsonaro-trava-bolsa-familia-em-cidades-pobres-e-fila-chega-a-1-milhao.shtml

[7] Como se pode ler em https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/12/18/plano-do-mec-para-fundeb-e-irresponsavel-diz-relatora.ghtml

[8] Em sua coluna publicada em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/rodrigo-zeidan/2020/02/sordidez-de-vilao-de-james-bond.shtml

[9] Em artigo publicado em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/02/a-fabrica-de-fazer-pobres.shtml

[10] Como se pode ler em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,grandes-demais-para-existir,70003201126 e https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/02/18/Como-a-concentra%C3%A7%C3%A3o-banc%C3%A1ria-afeta-o-PIB-brasileiro-segundo-este-estudo

[11] Algo noticiado em https://www.camara.leg.br/noticias/602197-reforma-da-aposentadoria-preve-reajuste-acima-de-40-para-alguns-militares/ e https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,com-apoio-politico-policiais-ja-pressionam-12-estados-por-reajuste-salarial,70003205177

[12] Como denunciado em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,e-preciso-acabar-com-o-overnight-do-bc-imp-,1632618

[13] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/Anexos/Anl13898-3.pdf

*Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Fonte: Conjur
Publicado em 26/02/2020

Emenda do teto de gastos faz SUS perder R$ 13,5 bilhões em 2019

A redução do orçamento se dá num contexto em que há piora recente da mortalidade infantil, aumento de quase 500% nos casos de dengue em 2019, retorno dos casos de sarampo e emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, para citar algumas questões urgentes.

por Bruno Moretti* e Ana Paula Sóter**

Nos últimos anos, mais de 3 milhões de usuários deixaram os planos de saúde, aumentando a demanda pelo SUS. Há estimativas de que a inflação do setor, em 2019, foi de 17%. O envelhecimento populacional e a incorporação tecnológica levam mais pressão ao orçamento de saúde. Segundo pesquisa Datafolha em 2019, a saúde era o principal problema do país.

Como responder ao quadro acima esboçado, que combina aumento de custos e demanda da população por serviços de saúde? Aperfeiçoamento do funcionamento do SUS e ampliação do financiamento seriam os caminhos naturais. No entanto, o SUS vem sofrendo o impacto negativo da Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que limita o gasto federal primário à variação da inflação. Em outros termos, se o PIB tiver algum crescimento acima da inflação, a regra implica a redução das despesas em relação ao PIB. Estima-se que tal queda será de 4 p.p. de PIB até 2026.

Para assegurar a redução do gasto, o teto requer “paredes”, sobretudo para diminuir despesas obrigatórias, já que as discricionárias estão em um patamar que se aproxima da paralisia (shutdown) da máquina pública em 2021. Os benefícios represados pelo INSS estão aí para demonstrar. Agora mesmo, o Senado discute a PEC da Emergência Fiscal, que permite reduzir em até 25% a despesa de pessoal e a jornada de trabalho, afetando serviços públicos, proíbe a expansão do Bolsa Família e a valorização real do salário mínimo. Não se trata de emergência fiscal, e sim de ajuste ao teto de gastos por meio da redução de gastos obrigatórios[1].

Mas a EC 95 já trazia um instrumento para reduzir despesas: o congelamento do mínimo obrigatório de saúde. Curiosamente, os defensores da EC afirmavam que o teto de gastos é global e a saúde não seria afetada. No entanto, a EC 95 dispõe que o piso da saúde fica, a partir de 2018, congelado no valor de 2017 (15% da RCL, nos termos da EC nº 86, de 2015[2]), passando a ser atualizado apenas pela inflação do período. A partir de então, para cada exercício, a diferença entre o valor aplicado e o piso anteriormente vigente (EC 86) corresponde ao valor retirado do SUS em razão do congelamento do piso do setor. Em 2019, a perda para o SUS foi de R$ 13,5 bilhões. Em 2020, deve girar em torno de R$ 10 bilhões.

A redução do orçamento se dá num contexto em que há piora recente da mortalidade infantil, aumento de quase 500% nos casos de dengue em 2019, retorno dos casos de sarampo e emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, para citar algumas questões urgentes.

A estimativa das perdas orçamentárias acumuladas entre 2018 e 2020 é de R$ 27,5 bilhões. Pode-se objetar que, em 2019, a arrecadação foi extraordinariamente impactada pelo megaleilão dos excedentes da cessão onerosa, que rendeu R$ 70 bilhões para a União, dos quais R$ 11,7 bilhões foram destinados aos entes subnacionais. Contudo, a indexação do piso de saúde à receita, extinta pela EC 95, era justamente uma maneira de repassar ao setor ganhos de arrecadação, mesmo que em função de fatores atípicos, tendo em vista a demanda por mais recursos pelas razões já expostas.

Na prática, a EC 95 permite que, havendo aumento da receita (como em 2019), este ganho não reverta para o financiamento do SUS. Não por outra razão, de 2017 a 2019, a despesa federal de saúde já caiu mais de 2 p.p da RCL, conforme o gráfico abaixo. Isto é, mesmo diante de demandas e custos crescentes, o Novo Regime Fiscal (EC 95) permite a retirada bilionária de recursos do SUS, que passa a representar uma fatia cada vez menor da RCL.

O Novo Regime Fiscal está na contramão do interesse popular. Se a crise econômica piora a qualidade de vida da população, o reforço da rede de proteção social é parte da solução. Mas por aqui vigora uma espécie de terraplanismo fiscal, em que tudo se resume a demonstrar aos donos do dinheiro que o teto de gastos (sem paralelo no mundo) é crível, alegando-se que o sacrifício (corte de gastos) será recompensado com prosperidade material no futuro (recuperação da economia).

Curiosamente, à direita e à esquerda, houve gritas em relação aos R$ 10 bilhões utilizados fora do teto para capitalizar empresas estatais em 2019. Até entre os críticos do Novo Regime Fiscal, houve quem tenha assinalado que a despesa primária em relação ao PIB cresceu em razão dos gastos não computados nos limites da EC 95. É claro que seria fundamental discutir outras possibilidades de alocação dos recursos, tendo em vista o seu efeito sobre a renda, o PIB, a desigualdade, entre outros.

No entanto, o mais grave, e que passou praticamente despercebido em 2019, é que o governo mira um subteto de gastos, já que a despesa ficou R$ 34 bilhões abaixo do limite da EC 95. Entre as razões para o feito está um erro de avaliação de R$ 12 bilhões no gasto de pessoal. Programa-se a despesa no teto, mas a execução fica abaixo dele, aumentando o resultado primário. Ao mesmo tempo em que se discute o possível estouro do teto e as “inevitáveis” restrições fiscais por ele impostas, há mais de R$ 30 bilhões de sobra em relação ao limite estabelecido.

Entre os terraplanistas fiscais, já se levantou o argumento de que a restrição do teto (que virou subteto) magicamente produziria alocação mais justa de recursos. O problema não seria o volume do gasto, mas a sua alocação. Num país desigual como o Brasil, é claro que a voz dos que dependem exclusivamente dos serviços públicos seria mero “ruído”, para usar a expressão de Rancière. O orçamento mais apertado em função das regras fiscais restritivas (teto, meta de primário e regra de ouro) é beliscado por reajustes salariais de corporações, emendas impositivas e subsídios a setores econômicos (como o diesel, em 2018). Enquanto isso, políticas sociais são desfinanciadas.

No caso da saúde, a perda em 2019, conforme exposto, foi de R$ 13,5 bilhões. Dentro dos valores executados pelo setor (R$ 122,3 bilhões), 10% já são controlados pelos parlamentares sob a forma de emendas impositivas e recursos de custeio dirigidos às suas bases eleitorais. O Parlamento retira recursos da saúde nas leis orçamentárias e por meio da aprovação de novas regras fiscais, ao mesmo tempo em que comanda parcela crescente do orçamento do setor.

Vale lembrar que o Brasil é caso único no mundo de sistema universal em que os gastos públicos representam menos da metade dos gastos totais de saúde. A exigência de redução das despesas nos próximos anos para ajuste ao teto seguirá convertendo subfinanciamento crônico em desfinanciamento do SUS, com impactos sobre a saúde da população. O sacrifício aumentará, mas o terraplanismo fiscal declarará que ainda não é o suficiente para redimir o Brasil.

*Bruno Moretti – É economista pela UFF, mestre em economia pela UFRJ, doutor e pós-doutor em sociologia pela UnB
**Ana Paula Sóter – É médica, doutoranda em Saúde Coletiva pela Unifesp.

[1] Para maiores detalhes, ver: https://jornalggn.com.br/noticia/socorro-nao-estamos-em-emergencia-fiscal-por-bruno-moretti/.

[2] A EC 86 previu o escalonamento dos valores mínimos de aplicação de saúde, partindo de 13,2% da RCL e alcançando, em 2020, 15% da RCL. O Ministro Lewandowski deferiu liminar na ADI 5595, suspendendo o escalonamento, de modo que, sob a vigência da EC 86, o piso seria 15% da RCL.

Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil

Sobre fé, santas e remédios: história de crianças com a Síndrome Congênita do Vírus Zika

Histórias marcantes e intensas como as que seguem no artigo de Ana Cláudia Knihs de Camargo falam de mulheres vivendo a maternidade de crianças com a Síndrome Congênita do Vírus Zika. Este é um dos textos produzidos no âmbito do projeto de pesquisa: “Zika e microcefalia: Um estudo antropológico sobre os impactos dos diagnósticos e prognósticos das malformações fetais no cotidiano de mulheres e suas famílias no estado de Pernambuco”.

O projeto de pesquisa vem acontecendo desde 2016, com visitas semestrais à capital pernambucana, e é coordenado pela professora Soraya Fleischer do Departamento de Antropologia/Universidade de Brasília e conta com o apoio do DAN, FINATEC, Pro-IC e do CNPq.

Sobre fé, santas e remédios

por Ana Claudia Knihs de Camargo
Graduanda em Antropologia pela Universidade de Brasília

Em cima do rack da sala de estar, à direita da TV e ao lado da santinha que protegia a casa, estava a tupperware transparente, tão importante quanto à imagem de Nossa Senhora de Fátima. Para Carla, essa pequena caixa também continha objetos de proteção, que cuidavam da saúde de Mila, sua caçula nascida com a Síndrome Congênita do vírus Zika em 2015 ali na cidade de Recife, Pernambuco.  As dezenas de medicamentos ali guardados eram sagrados e esmerados por diversos motivos: o alto custo, receitas de difícil acesso, toda a burocracia envolvida na hora de consegui-los. A complexidade do acesso aos medicamentos fazia com que, muitas vezes, precisassem ser perfeitamente calculados para não faltarem no fim do mês.

A mão fechada, a baba escorrendo pela boca de Mila, os tremores intensos e os olhares perdidos eram sinais que alertavam Carla para o fato de que, tratando-se de convulsões, a sua Santa Padroeira era a dos Remédios. Aos poucos, o compromisso que tinha com as receitas médicas prescritas à filha passou a ser tão importante quanto o de sua Igreja aos domingos. Os sinais que indicavam uma crise convulsiva eram sutis, e, por este motivo, precisava ficar atenta a tudo que Mila expressava com seu corpo, adiantando qualquer possibilidade de mal estar, em uma intensa arte de divinação.

Os medicamentos significavam muito para Carla: eram pílulas revestidas de promessas, com toda autoridade médica que lhe assegurava que funcionariam, e das bulas que não deixavam dúvidas de sua eficácia. Em certo momento, há cerca de dois anos, Carla afirmou com convicção: “Minha fé é na ciência”. Não só tinha esperança nos exames que Mila fazia, mas também participava, ela mesma, de diversas pesquisas. A cada novo arranjo medicamentoso prescrito à filha, Carla renovava uma esperança de melhora. Diagnósticos infortunados nunca lhe foram suficientes.

Mesmo assim, era comum que os medicamentos consumidos por Mila precisassem ser alterados constantemente. “Depois de algum tempo, o organismo se acostuma”, explicava Carla. Com isso, a mãe sugeria que, no que diz respeito à eficácia, os medicamentos tinham um prazo de validade no organismo da filha. Os mesmos fármacos que outrora controlavam suas crises convulsivas poderiam, sem aviso, parar de agir em seu corpo. Por esse motivo, Mila já tinha passado por mais de oito arranjos medicamentosos diferentes. Aos poucos, os medicamentos tornavam-se cada vez mais ambíguos. Eram motivo de preocupação para Carla quando faltavam, mas também se preocupava quando a filha os consumia em excesso.

Certa vez, Mila sofreu uma forte crise convulsiva intensa e precisou ser levada com urgência ao hospital mais próximo. Lá, administraram Berotec, remédio que lhe deu uma grave reação alérgica. Passou 15 dias internada na UTI até poder levar alta e, felizmente, voltar para casa sem consequências além da preocupação que assolou toda a família. Paulatinamente, Carla ia ganhando uma postura cada vez mais crítica, entendida de que a biomedicina não era uma fábrica de milagres.

Atualmente, o tamanho da tupperware diminuiu. As crises convulsivas, que ainda acontecem, agora se manifestam com certa sazonalidade. Por este motivo, Mila pôde reduzir o consumo de medicamentos, embora a mãe não possa suspendê-los permanentemente. Essa redução deu um alívio ao orçamento doméstico, inclusive. “Nosso estresse é só o leite, porque o remédio eu pego no posto”, explicou Carla. Os remédios eram conseguidos no posto de saúde perto de sua casa, só a Melatonina era mais difícil de conseguir, pois custava cerca de R$80 e precisava ser comprada. A Melatonina é um hormônio muito receitado para regular o sono das crianças, e Carla vinha sofrendo com a insônia de Mila. Os horários da criança estavam desajustados: dormia mais de dia do que de noite, atrapalhando a rotina das terapias reabilitadoras e também qualquer possibilidade de descanso da mãe.

Ainda que conseguisse a maior parte dos medicamentos de forma gratuita, Carla ainda ficava ressabiada: “Mas eu não gosto muito de dar remédio, sabe. Para mim, um remédio é uma droga, é fazer a criança ficar dopada. Eu sempre diminuo a dose dos remédios que passam para ela. Tem muita gente que dá muito remédio para essas crianças, elas ficam dormindo o tempo todo, o tempo todo. Não quero isso, não. Quero ver a minha filha ativa”.

Os medicamentos não eram mais estáticos, dignos de uma fé inabalável. Eram, com certeza, tecnologias importantes para o bem-estar de Mila e Carla, mas perderam o posto de autoridade inquestionável às vistas desta mãe. Podiam falhar, perder a eficácia, causar efeitos colaterais inesperados. Nem por isso, Carla tornou-se menos otimista quanto ao destino de Mila: ela comemorava todas as pequenas vitórias da filha e jamais deixou de conceber belos planos para o seu futuro. A tupperware dos medicamentos diminuiu, mas a imagem de Nossa Senhora de Fátima continuava de pé, no centro de sua sala de estar.

Publicado em 20/02/2020
Fonte https://microhistorias.wixsite.com/microhistorias
*Foto ilustrativa.

#EuNãoSouDespesa: CNS lança campanha contra discriminação às pessoas que vivem com HIV/Aids

Representantes do Movimento de Luta Contra a Aids no Brasil repudiam declarações que associam tratamento à despesa para o país. A campanha #EuNãoSouDespesa, promovida pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), reúne depoimentos de ativistas, estudantes, aposentados(as), jornalistas, assistentes sociais, advogados(as), médicos(as), atores e diversos outros cidadãos e cidadãs que defendem o Sistema Único de Saúde (SUS), contra o estigma, o preconceito e a discriminação.

 

 

“Ninguém é despesa. Nós pagamos impostos e esse dinheiro é revertido para a Saúde. Há várias décadas lutamos contra os estigmas, preconceitos e discriminação e não aceitamos mais rótulos”. Heliana Moura, assistente social da Rede Mulheres Vivendo com HIV/Aids.

“Somos todos pagantes de impostos caros. Somos contribuintes e não somos tratados de maneira digna pelo governo. Precisamos do SUS a todo vapor, porque pessoas são salvas por esse sistema. Estamos falando de vidas. Vamos repensar o que é despesa”. Alexandre Telles, defensor do SUS.

“Sou brasileiro como todos os outros e nada que recebo do Estado recebo de graça. Tudo é pago pelos impostos que recolho todos os dias em qualquer coisa que compro neste país”. Carlos Alberto Duarte, representante do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (Gapa/RS).

“É meu direito e seu dever me respeitar”. Elsom Santana, representante da Rede Jovem Rio.

“Nosso tratamento de HIV/Aids no Brasil é referência mundial e não pode acabar. Muitas pessoas como eu, que vivem com HIV/Aids, têm uma vida normal e não geram despesas. Eu trabalho, pago meus impostos, gero trabalho e ajudo o outro. Vamos dizer não ao preconceito e à discriminação”. Lysmaria Pinheiro, representante da Associação Brasileira de Redução de Danos (Aborda) e da Articulação Nacional de Saúde e Direitos Humanos (ANSDH).

“Eu não sou despesa. Eu sou receita. Sou receita humana, social, física, política, econômica. Eu produzo, eu faço a diferença. Esse planeta é meu, essa sociedade é minha, como é sua e como é de todos”. Marco Aurélio Tavares Bastos, jornalista e conselheiro gestor do Centro de Treinamento e Referência DST/Aids – SP.

Confira a playlist de vídeos 

Quer fazer parte da campanha?

Veja a playlist com todos os vídeos no Youtube. Publique seu apoio nas suas redes sociais com a hashtag #EuNãoSouDespesa, independentemente da sua sorologia. O SUS não pode ser um espaço de discriminação. Você também pode enviar seu vídeo para [email protected]. Não esqueça de dizer seu nome e sobrenome, entidade ou movimento social que representa e a maneira como deseja ser intitulado: “estudante, pedagogo(a), artista, empresário(a), enfermeiro(a), etc”.

Saiba mais sobre HIV/Aids no site do Ministério da Saúde

Fonte: CNS
Publicado em 10/02/2020

Entidades repudiam declaração de Bolsonaro afirmando que as pessoas com HIV/Aids são uma “despesa” à sociedade

O Movimento de Luta Contra a Aids, aqui representado pela ANAIDS, RNP+Brasil, MNCP e RNTTHP, REPUDIA as declarações do presidente da República, na manhã de hoje, afirmando que as pessoas com HIV/Aids são uma “despesa” à sociedade.

 

 

Destacamos que a resposta brasileira à epidemia de Aids é uma política de Estado, não uma política de governos ou partidos, ancorada nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e na garantia dos direitos humanos, com reconhecimento e destaque internacional.

Expressamos nossa repulsa para a abordagem desrespeitosa, superficial e preconceituosa dispensada às pessoas que vivem com HIV/Aids. As declarações ofendem e rotulam quase um milhão de cidadãos e cidadãs nesta situação, além de seus familiares, amigos e entorno social. Não podemos tolerar que depois de décadas de conquistas e de luta contra a discriminação, discursos ancorados em preceitos equivocados e preconceituosos, potencializem estigmas e processos de exclusão sociais ainda presentes no cotidiano das pessoas que vivem com HIV/Aids no Brasil. Acreditamos que estas manifestações, panfletárias, são estratégias adotadas pelo governo para desviar a atenção da população de questões e problemas emergentes que o país vive.

Além disto, o exemplo ilustrativo apresentado pelo presidente, evidência a falta de programas/políticas públicas de educação sexual, voltadas a adolescentes e jovens, articuladas com ações de prevenção e que considerem os contextos de vulnerabilidade social dos adolescentes e jovens brasileiros. Mas isto se contradiz nas ações do governo brasileiro, que investe em ações com mera valoração moral, sem evidência científica.

Ampliaremos nossa mobilização pela garantia de direitos e de políticas públicas inclusivas, plurais, fundamentadas em evidências científicas e construídas com participação social.

Somente com engajamento social conseguiremos impedir que que o obscurantismo e ideias fundamentalistas predominem.

A saúde é direito de todos e dever do Estado.

As pessoas que vivem com HIV/Aids exigem respeito!

ANAIDS – Articulação Nacional de Luta contra a Aids;

RNP+ Brasil – Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids;

MNCP – Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas;

RNTTHP – Rede Nacional de Mulheres Travestis e Transexuais e Homens Trans vivendo e convivendo com HIV/ Aids.

Fonte: CTB
Publicado em 07/07/2020