Coronavirus – novo desafio para o SUS. Por Ceuci Nunes

O Sistema Único de Saúde já demonstrou ser capaz de dar conta de situações semelhantes desde que não faltem recursos e estrutura. SUS já foi testado na epidemia de Zika vírus e se mostrou competente para identificar os primeiros casos no mundo e garantir uma rede de assistência e reabilitação para casos complexos de microcefalia e Síndrome de Guillain Barré, além de implementar medidas de prevenção.

 

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a epidemia do novo nCoV- 2019 como emergência em saúde pública de interesse internacional. O motivo foi a expansão rápida dos casos de 500 para 8 mil e óbitos de 17 para 170 em uma semana. Outras emergências em saúde pública decretadas na última década foram: H1N1, iniciada no México em 2009; Ebola, na África em 2014 e 2019; Pólio em 2014 e Zika, no Brasil em 2016. Essas emergências ocorrem quando existe um potencial de disseminação global e risco de a epidemia atingir países com sistemas de saúde mais frágeis. O principal ponto positivo é a possibilidade de uma resposta governamental compartilhada em todo o mundo e a principal desvantagem é causar pânico nas populações.

O coronavírus é de uma família de vírus de animais e poucos infectam humanos, incluindo o nCoV- 2019. Duas grandes epidemias de coronavírus já foram registradas no mundo: a SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) – que se propagou na China, em 2002 e MERS (sigla em inglês da Síndrome Respiratória do Oriente Médio), em 2012. Ambas foram contidas e a letalidade foi em torno de 10%, superior a observada agora que é de 2%. Os casos mais graves de nCoV- 2019 ocorrem em idosos e pessoas com outras doenças como diabetes e imunodeficiências. A China mostra ao mundo uma resposta rápida elogiada pela OMS. Cidades com milhões de habitantes são colocadas em quarentena e a construção de hospitais em poucos dias são algumas dessas ações.

A expansão das áreas urbanas para o habitat de animais e as péssimas condições de vida de grande parte destas populações estão colocando cada vez mais os humanos em contato com animais e não é à toa que a maioria das novas doenças descritas são zoonoses. Os microrganismos que infectam animais são transmitidos para o homem que não tem nenhuma imunidade para estes novos patógenos.

As infecções pelos coronavírus e os vírus Influenza (A, incluindo H1N1 e B) apresentam semelhanças no quadro clínico e transmissão. O quadro é de febre, tosse e dores no corpo e podem ser leves ou graves quando pneumonia e insuficiência respiratória se apresentam. A transmissão é por contato direto ou indireto com secreções respiratórias de pessoas doentes. Com o nCoV- 2019 se fala em transmissão mesmo por pessoas ainda assintomáticas. A prevenção se dá com higienização das mãos com água e sabão ou álcool gel, cobertura da boca e nariz ao tossir, evitar aglomerações e contatos com pessoas doentes. Apenas no caso da Influenza existe vacina.

Até o momento nenhum caso foi confirmado no Brasil e graças a sensibilidade do nosso sistema de Vigilância Epidemiológica foram detectados 14 suspeitos ainda em avaliação. Existe uma mobilização nas áreas de vigilância epidemiológica e assistenciais para garantir integração entre ações de prevenção e assistência. Existem hospitais de referência em todo o Brasil e na Bahia o ICOM (Instituto Couto Maia) é a principal referência. São inúmeras reuniões e videoconferências para garantir a construção e divulgação de protocolos atualizados. Isso só é possível porque temos um sistema de saúde universal.

O SUS já foi testado na epidemia de Zika vírus e se mostrou competente para identificar os primeiros casos no mundo e garantir uma rede de assistência e reabilitação para casos complexos de microcefalia e Síndrome de Guillain Barré, além de implementar medidas de prevenção. Essas ações ocorreram mesmo no sertão nordestino. Neste momento o SUS está novamente sendo testado. Esperamos que o crônico déficit de financiamento e o atual contingenciamento de recursos não reduza a possibilidade de respostas a mais este desafio na saúde pública.

* Ceuci Nunes Médica infectologista

Fonte: Vermelho
Publicado em 04/04/2020

Projeto Formação para o Controle Social inicia 2ª Edição

O objetivo do projeto é qualificar e fortalecer a atuação dos conselheiros (as) da saúde e lideranças dos movimentos sociais que atuam na defesa do SUS em todas as unidades federativas do Brasil.

“O projeto é importante porque amplia e qualifica a participação da população na política de saúde, construindo lastro político para a defesa do SUS tanto na gestão participativa (controle social) quanto na agenda política dos diferentes movimentos sociais brasileiros que tem a saúde como pauta importante, mas em função das ações isoladas, possuem limitações em transformar aquela que é a preocupação número um do povo brasileiro em mobilização política mais ampla”, aponta o presidente da Fenafar, Ronald Ferreira dos Santos.

Na avaliação de Ronald, que estava à frente do Conselho Nacional de Saúde quando esse projeto foi desenvolvida, “esse processo de formação foi vital para a mobilização dos 4612 municípios e dos milhões de brasileiros que se envolveram na 16º Conferência Nacional de Saúde “Democracia e Saúde”.

As oficinas ocorrerão de fevereiro de 2020 a julho de 2020. Confira aqui as oficinas já agendadas em cada estado.

Além da elaboração de materiais educativos o projeto prevê a realização de 84 oficinas de formação para o controle social. A duração de cada oficina é de três dias, nos quais serão discutidos seis grandes blocos temáticos (ver oficinas). Cada oficina contará com 30 participantes, sendo 20 vagas para conselheiros (as) de saúde e 10 vagas para movimentos sociais. Nas vagas de conselheiros (as) será respeitada a proporcionalidade de composição dos conselhos com 50% de usuários, 25% de trabalhadores em saúde e 25% de prestadores e gestores. As oficinas foram distribuídas pelos estados segundo sua população, sendo garantida pelo menos uma oficina por estado.

Sobre o Projeto

Em 2017, o Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP) iniciou uma nova experiência formativa para o controle social no SUS, em parceria com o Conselho Nacional da Saúde – CNS, articulada pela Comissão Interinstitucional de Educação Permanente para o Controle Social do SUS (CIEPCSS) e financiada pela Organização Pan-Americana de Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) no Brasil.

Naquela primeira etapa foram realizadas 70 oficinas formativas, à luz da educação popular, com conselheiros (as) e lideranças sociais e populares de saúde em todos os estados brasileiros. Objetivou-se desenvolver ações que buscavam promover a atuação em processos de democratização do Estado, na garantia dos direitos sociais e na participação da população na política de saúde, reafirmando o caráter deliberativo dos conselhos de saúde, tendo em vista o fortalecimento do controle social no Sistema Único de Saúde (SUS).

Em 2019, a parceria entre CNS, CIEPCSS, CEAP e OPAS foi renovada e o Projeto de Formação para o Controle Social no SUS 2ª edição será realizado a partir de fevereiro de 2020.

Como participar

A seleção dos participantes será feita pelas Comissões de Educação Permanente dos Conselhos Estaduais de saúde de cada estado participante e por movimentos sociais.

Nesta edição a organização do evento disponibilizará alimentação (café da manhã e almoço) para todos os participantes e hospedagem aos participantes selecionados e não residentes no local da oficina, em local previamente estabelecido, conforme as possibilidades orçamentárias do projeto e de infraestrutura disponível nas cidades que sediarão as oficinas.

Saiba mais acessando o site do Projeto

Da redação com CNS – Foto – Oficina de Formação para o Controle Social do SUS realizada em Tocantins
Publicado em 03/02/2020

Ofensiva do mercado para implantar EaD em curso de Saúde é combatida por entidades

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) aprovou, em reunião nos dias 23 e 24 de janeiro, em Porto Alegre/RS, Recomendação contrária às Instituições de Ensino Superior de Saúde que apresentaram, em seus Planos de Desenvolvimento Institucional (PDI), cursos ministrados na modalidade de Ensino a Distância na área da saúde. 

A recomendação 03/2020 será encaminhado ao Ministério da Educação (MEC).

A Federação Nacional dos Farmacêuticos tem participado ativamente dos debates sobre o ensino à distância na Comissão Intersetorial de Recursos Humanos e Relações de Trabalho (CIRHRT/CNS), representada pela sua diretora de Educação, Silvana Nair Leite. “Eu tinha assento na Câmara Técnica da CIRHRT. Participei desta discussão e contribui bastante deste tema. Muitas reuniões da Câmara ao longo de 2019 foram dedicadas para aprofundar a discussão sobre EaD. Trouxe minha experiência como professora universitária”.

Silvana explica que a Câmara Técnica também tinha a função de analizar os processos de solicitação para reconhecimento e autorização de abertura para novos cursos. “O que nós buscamos enfatizar é que as atividades dos cursos de graduação estejam alinhados aos princípios do SUS e que a formação desses profissionais de saúde sejam adequada para que, ao término dos cursos, eles estejam preparados para atuar no sistema público de Saúde, na perspectiva do direito à saúde”.

Além disso, destacou Silvana, “quando são submetidas propostas de cursos a distância avaliamos sempre de forma negativa. E, quando há atividades a distância dentro de cursos presenciais, nós avaliamos a qualidade da atividade, quanto porcento do curso será a distância e outras condições para dar uma parecer”.

O papel da Comissão Intersetorial de Recursos Humanos e Relações de Trabalho (CIRHRT/CNS) tem sido importante para impedir a criação de cursos da área de Saúde sem um padrão mínimo de qualidade. E, a Fenafar, ao longo dos últimos anos, têm tido protagonismo nessa Comissão.

Sobre a recomendação de cursos EaD

A recomendação aprovada pelo CNS alerta para a necessidade de alteração do artigo 80 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que dispõe sobre os cursos EaD, a fim de incorporar as propostas ao Projeto de Lei nº 5.414/2016, em tramitação no Congresso. O PL proíbe o incentivo do desenvolvimento e veiculação de programas de ensino à distância em curso da área de saúde.

O presidente da Fenafar, Ronald Ferreira dos Santos, ressalta a importância desse debate e o protagonismo que a entidade teve em todo esse processo. A Fenafar e a Escola Nacional dos Farmacêuticos tem tido uma participação destacada na Comissão, desde o advento da Resolução 515”. Naquela ocasião, o Ronald dos Santos presida o Conselho Nacional de Saúde. “Mesmo com a resolução e todo um movimento que envolveu outras entidades de profissionais da área de Saúde, a ofensiva do mercado não deu trégua. Até o golpe do deputado Caio Narciso (PSDB/MG) que numa sessão vazia e relâmpago, realizada às 22 horas, aprovou um parecer de um projeto que altera da LDB para incluir a Educação a Distância”.

E o mais recente episódio envolvendo a ofensiva para a implementação dos cursos na modalidade em EaD aconteceu em dezembro, quando o Ministério da Educação baixou a Portaria nº 2.117/2019, que autoriza até 40% da matriz curricular dos cursos de graduação na modalidade EAD, excetuando-se apenas a Medicina.

“Historicamente a Fenafar atua contra a mercantilização da Educação. E, desde o inicio dos debates envolvendo cursos a distância em Saúde temos reforçado essa mobilização. Esse processo de mercantilização da Educação acaba fazendo com que o valor dos profissionais de saúde seja cada vez menor, sem falar das consequências para a segurança dos usuários dos serviços de saúde que serão atendidos por profissionais de forma inadequada. Seguiremos acompanhando as medidas legislativas sobre o assunto e os posicionamentos do Conselho Nacional de Saúde”, afirma o presidente da Fenafar.

No início de 2017, a Fenafar lançou a campanha A vida não é virtual: “As graduações em saúde devem ser pautadas em princípios humanos, éticos e científicos. A interação social e as experiências interprofissionais precisam ser desenvolvidas a partir dos anos iniciais e percorrer todo o processo de aprendizagem, preparando os graduandos em atividades curriculares e complementares, sob responsabilidade da IES, dentro e fora da universidade e alcançando seu amadurecimento para os estágios finais, devidamente supervisionados, como já preconizado pela Resolução 350/2005 do Conselho Nacional de Saúde. O contato humano direto e a supervisão próxima e direta é imprescindível para a este processo de aprendizagem, somente assim é possível vivenciar e incorporar práticas inovadoras e de modificação da realidade, lidando com a construção das experiências que o campo traz na vida real”.

CIHRT

A partir de dezembro a Escola Nacional dos Farmacêuticos, representada por sua Coordenadora, Silvana Nair Leite, passou a ter assento como membro titular da Comissão Intersetorial de Recursos Humanos e Relações de Trabalho (CIRHRT/CNS) e a Fenafar mantém seu assento na Câmara Técnica, passando a ser representada pela professora Maria Helena Braga.

Da redação com agências

Emenda Constitucional 95 fere o núcleo essencial do direito à saúde

Foram impetradas ações diretas de inconstitucionalidade contra a EC 95, de 2016, que congelou os gastos da União com despesas primárias por 20 anos, corrigidos pela inflação medida pelo IPCA, por ferir o núcleo essencial do direito que é a garantia de recursos orçamentários para a sua sustentabilidade. Ouvida a Procuradoria-Geral da República (ADI 5.658), a mesma se manifestou contra a ação por não ver violação de direitos fundamentais, como os da saúde e educação, tendo em vista que estão mantidos seus percentuais mínimos, com correção por 20 anos.

Por Lenir Santos e Francisco Funcia

Os argumentos jurídicos expressos na manifestação da PGE não se fizeram acompanhar de mínima análise de ordem econômico-financeira que comprove tal afirmação. Preliminarmente, sem nenhum esforço prévio, pode-se afirmar que o sistema de saúde brasileiro não funciona a contento pela insuficiência de recursos, tanto que são quase dois milhões de ações judiciais (2018), visando à garantia desse direito[1]. Se o SUS não tem atuação adequada e os percentuais mínimos da saúde foram alterados negativamente, tem-se, de modo insofismável, que haverá perdas financeiras para custear a saúde pública brasileira até 2036, com danos irreparáveis à saúde das pessoas, o que, indubitavelmente, fere o núcleo essencial do direito.

Não é de hoje, mas, sim, de 30 anos que se reverbera sobre a insuficiência dos recursos para o financiamento da saúde. Mesmo que haja desperdícios na gestão, se corrigidos, como devem ser, não serão suficientes para cobrir a crônica e longa falta de recursos financeiros. Por isso, discutir financiamento de direitos fundamentais que têm custos só com argumentos de ordem jurídica, desamparado de fundamentos de ordem econômico-financeira, certamente as suas conclusões estarão contaminadas pela incompletude.

Diferentes cálculos econômicos (considerando diferentes metodologias de projeção) comprovam que serão retirados, no mínimo, R$ 200 bilhões (a preços de 2017), ao longo de 20 anos, de um sistema de saúde comprovadamente subfinanciado e insuficiente há três décadas. Não há matemática nem lógica que dê conta de desmentir a afirmação de que haverá redução de serviços: “congelado” o piso federal no valor de 15% da receita corrente líquida de 2017, atualizado anualmente tão somente pela variação do IPCA/IBGE, a despesa per capita em saúde terá queda em razão da mudança do cálculo do seu piso; a população continuará a crescer e a envelhecer, as tecnologias se renovarão, idem a farmacologia e os materiais e insumos médicos, e certamente haverá disputa entre quem será atendido ou não, como já tem sido frequente nos dias de hoje, onde, diuturnamente, os profissionais de saúde lidam com a questão das escolhas trágicas.

Serviço de saúde em sua dimensão prestacional não pode ser objeto de análise quanto aos seus custos, somente à luz de argumentos jurídicos. É consagrado no cenário internacional os valores financeiros mínimos para a garantia de serviços de saúde. No campo da economia da saúde, há argumentos que sobejamente demonstram a violação do preceito constitucional, não passível de retrocesso, pelo recuo de seu financiamento aos níveis de 2017. Direitos que crescem em relação ao progressivo envelhecimento da população e por outros motivos intrínsecos à natureza do serviço não podem ser congelados sem prejudicar o seu núcleo essencial. Dizer que a garantia do direito não será maculada porque os percentuais mínimos estão mantidos é uma visão míope por não levar em conta os fatores econômico-financeiros, social, demográfico, epidemiológico e outros.

A realidade é que a saúde brasileira é subfinanciada. Gasta-se R$ 3,60 per capita/dia com a saúde do cidadão nas três esferas de governo, que envolve desde a vigilância sanitária de produtos, alimentos, estabelecimentos, cargas perigosas, registro de medicamentos, alvarás de funcionamento de estabelecimentos comerciais (atividade protetiva e regulatória) a um transplante renal (atividade assistencial-prestacional).

Esse valor implica um gasto público consolidado (União, estados e municípios) em saúde de 4% do PIB (em 2017), quase a metade do gasto do Reino Unido (7,9% em 2015, segundo a Organização Mundial de Saúde). Considerando que o gasto consolidado em saúde pública no Brasil foi de R$ 265 bilhões em 2017, essa diferença, em termos internacionais, corresponde a uma insuficiência superior a R$ 210 bilhões/ano, sendo que essa defasagem aumentará ainda mais pelos efeitos negativos da nova regra “congelada” do piso federal do SUS, que deve também ser analisada em conjunto com o teto geral para a disponibilidade financeira das despesas primárias (afinal, não basta empenhar a despesa para que as necessidades de saúde da população sejam atendidas, é preciso liquidar as despesas — fase da despesa pública que atesta que os bens e serviços comprados foram entregues e prestados nos termos contratados — para depois pagar).

Justificar a constitucionalidade da EC 95 sem fazer uso de teorias e projeção de cálculo da economia da saúde é análise rasteira sobre o que a EC projeta para a saúde nos próximos 20 anos, afetando gravemente a dignidade das pessoas que ficarão sem atendimento em suas necessidades (tratamento de câncer, vacina, cirurgia, consulta, exames ambulatoriais).

A definição de valores percentuais de receitas visa permitir variações anuais conforme o crescimento econômico do país. Esse é o espírito da norma que foi a mesma da EC 29, de 2000, que trazia conceito idêntico de oscilação do piso da saúde pela variação nominal do PIB, anualmente. Tornar fixo o valor percentual por 20 anos significa alterar a mens legis que é a da variação do piso em relação ao crescimento da receita; ao se criar uma base fixa para a saúde por duas décadas, a intenção do legislador constitucional foi violada por transformar um percentual sobre receitas variáveis conforme a sua arrecadação, em valor fixo por 20 anos.

O piso mínimo em saúde pela EC 86 é de 15% das receitas correntes líquidas da União, cambiante conforme o crescimento do país. A mens legis é a de manter o piso da saúde móvel em relação ao desenvolvimento econômico da nação. Desse modo, a EC 95 imobilizou o piso da saúde por 20 anos, corrigindo um valor fixo, base 2017, pela inflação de cada ano, que não acresce recursos tampouco os repõe por não ser coerente com a realidade dos custos da saúde no Brasil. O crescimento do país deixou de ser parâmetro para o piso da saúde, e a correção da inflação jamais contemplará o crescimento populacional, os índices de longevidade e sua epidemiologia, os custos dos insumos, matérias, medicamentos, novas (e velhas) tecnologias de saúde, dentre outras.

Isso nos permite afirmar de modo fundamentado que houve alteração na metodologia de cálculo para os próximos 20 anos, uma vez que não mais haverá a incidência do percentual de 15% sobre a arrecadação, passando a vigorar o valor do ano anterior acrescido da correção do IPCA, mudando-se, assim a regra da EC 86. A cada ano isso se repetirá, havendo sempre um piso em decorrência da correção inflacionaria sobre uma base inicial, e não em razão do crescimento da RCL. A EC 95, alterou, sem dizer expressamente, o percentual mínimo da saúde,que matematicamente deixou de ser de 15% sobre o valor RCL para ser o valor da receita corrente líquida de 2017, acrescida da variação do IPCA anual, incorporada no piso a cada ano. Um percentual fixo sobre uma receita móvel deixa de existir nos próximos 20 anos, transformado, matematicamente, num valor fixo, base 2017, sem alteração em razão do crescimento da arrecadação fiscal das necessidades públicas.

Como a correção da inflação não tem o condão de acrescer recursos, tão pouco corrigir seu custo econômico em acordo à realidade do mercado da saúde, as perdas serão cumulativas pelas causas acima apontadas, somadas às necessidades da saúde não atendidas, ainda, pelo SUS, que sempre se mostrou insuficiente às necessidades das pessoas.

No ano de 2018, o valor percentual sobre a RCL foi de 13,9%, diminuindo em R$ 4,2 bilhões (cálculo matemático) seu valor real em relação aos 15% da RCL. Somando a perda de 2018 com a de 2019, são R$ 9,7 bilhões retirados da saúde em dois aos.

2018 R$ 112.361 (EC 95) contra R$ 120.802 (15% RCL)
2019 R$ 117.293 (EC 95) contra R$ 127.005 (15% RCL)

Isso demonstra de modo cabal ser a EC 95, em relação ao piso da saúde, inconstitucional por promover retrocesso na garantia de direito fundamental, tendo alterado o piso mínimo da saúde, que a cada ano será inferior a 15% da RCL, derrotando o argumento da PGR de que não houve alteração no percentual fixado pela EC 86 e que por isso não há perda no piso mínimo da saúde. A EC 95 alterou a mens legis da EC 86, ao custo do desfinanciamento da saúde por duas gerações, ou seja, em larga proporção!

A PGR, ao dizer ainda que a “manutenção de parâmetro para a fixação dos gastos futuros em relação ao total de despesas efetivadas no exercício de 2017, sob correção do IPCA, é suficiente para manter os mesmos níveis de saúde”, e que os “pisos dos gastos com saúde e educação estão mantidos” (piso-teto, diga-se), não atentou minimamente para um simples cálculo matemático, como o acima, que comprova a mudança de parâmetro com perdas de recursos de modo grave.

Além do mais, entender que caberá ao Executivo, respeitado o teto dos gastos públicos, alocar as receitas aos serviços públicos de saúde e de educação, demonstra total desconhecimento da realidade econômico-orçamentária e fiscal da saúde e educação brasileiras. No caso da gestão orçamentária e financeira, em 2017, os valores dos empenhos a pagar em saúde foram recordes (cresceram 81% em relação a 2016), enquanto que os valores pagos totais (referentes aos empenhos de 2017 e aos restos a pagar) cresceram apenas 0,1% (ou seja, bem abaixo da inflação, o que representou uma queda real da disponibilidade financeira para pagamentos). Até as transferências financeiras do Fundo Nacional de Saúde para os fundos estaduais e municipais de saúde ficaram prejudicadas — os empenhos a pagar no final de 2017 (sem terem sido liquidados) foram 165% maiores que no final de 2016.

Argumentar a PGR que a prestação de serviços públicos que contribuem para a promoção desses direitos pode sofrer retração em períodos de escassez é ignorar a escassez real do SUS em relação às necessidades das pessoas por 20 anos e tergiversar sobre o papel do Estado e de as suas escolhas alocativas, como o não congelamento dos gastos com juros e encargos da dívida pública que consomem a metade do orçamento público, ou seja, metade das receitas pagas pela população que não vê o seu retorno aplicado em serviços de primeira necessidade, vinculado à dignidade e que manutenção da vida.

“A atuação do Judiciário deve ater-se, no caso, a verificar se o núcleo dos direitos sociais em questão foi desrespeitado, de modo a não invadir as escolhas políticas realizadas democraticamente pelo poder constituinte reformador”, ressaltou a PGR em seu parecer. Ora, o núcleo do direito já está sendo violado na medida em que sobre o crescimento da receita corrente líquida em 2018 não pode incidir 15% pelo fato de ter sido criado um piso fixo que somente se altera pela correção do IPCA, levando a mudança do parâmetro de cômputo do piso da saúde.

A projeção da perda, que será crescente (se crescente for o crescimento da economia), importará em mais ou menos R$ 200 bilhões em 20 anos. Isso sem contar a projeção das perdas do valor do pré-sal destinado à saúde como um valor adicional ao piso, um plus, um acréscimo, e que a EC 95 alterou de modo permanente, e não por apenas 20 anos, o que também se constitui em retrocesso na garantia do financiamento da saúde, reconhecido pelo ministro Lewandowski em sua medida cautelar na ADI 5.595, com riscos concretos de danos à saúde das pessoas em todas as suas dimensões, a protetiva, a prestacional e a regulatória.

Com a EC 95, a saúde deixará de ser subfinanciada para ser desfinanciada, ou seja, perderá recursos anualmente para enfrentar as demandas da sociedade. Como se financiará a incorporação de novos medicamentos e de novas tecnologias que surgem de modo veloz, pois a biotecnologia e a tecnologia da informação não param de evoluir? Elas serão congeladas? E as necessárias e que ainda nem mesmo foram incorporadas?

O sistema de saúde não está consolidado do ponto de vista de sua sustentabilidade financeira, pois ainda faltam medicamentos, atendimentos, consultas, exames na qualidade e suficiência necessárias para a população brasileira. Os tratamentos de câncer são demorados, impondo ao doente prazos de espera incompatíveis com as suas necessidades, violando-se a lei que exige tratamento a partir de 60 dias da confirmação do diagnóstico. Congela-se um sistema insuficiente, que ainda não cumpriu o mandamento constitucional de garantia do direito, dando origem a um sistema que poderá ser inoperante.

A tabela[2] abaixo ilustra a queda do piso federal do SUS em relação à receita corrente líquida, consequência direta da nova regra estabelecida pela EC 95/2016[3].

Nenhum centavo de crescimento da receita da União será destinado para o financiamento do SUS e das demais políticas públicas como a educação, transporte, habitação, saneamento, assistência social etc. nesse período de 20 anos de vigência da EC 95/2016, porque será alocado para o pagamento de juros e amortização da dívida pública.

A EC 95, ao congelar o piso da saúde por 20 anos, estará diminuindo gradualmente o percentual que deve incidir sobre as receitas correntes líquidas pelo fato de a mesma não mais corresponder à arrecadação anual das receitas. Nesse sentido, o piso da saúde foi alterado pela EC 95, ainda que sem alteração nominal, na medida em que não irá acompanhar o crescimento anual da receita líquida conforme determina a EC 86, diferentemente do que afirma a decisão da PGR em relação à ADI 5.658.

Por fim, congelar recursos é o mesmo que congelar serviços: todos acham que o SUS pode congelar seus serviços nos níveis de 2017, sem nenhum acréscimo real sem gravíssimos danos ao sistema e à saúde das pessoas? Ou teremos que esperar pelo aumento de doenças e mortes para então comprovar que a EC 95 é inconstitucional e faz mal à saúde?

[1] Justiça em Números. Acessível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/44b7368ec6f888b383f6c3de40c32167.pdf

[2] Fonte: Adaptado de: Ministério da Fazenda/STN (Demonstrativo da Receita Corrente Líquida da União – Série Histórica); Ministério da Saúde/SPO – Relatórios Quadrimestrais de Prestação de Contas – 3º Quadrimestre de 2015 a 2017 e Relatório Anual de Gestão 2014 a 2017; e Câmara dos Deputados (Estudo PLOA 2019); observação: parte do estudo que está sendo desenvolvido em parceria com Carlos Ocké-Reis.

[3] Notas: (1) Calculado pela regra da EC 29 até 2015 e pela regra da EC 95 a partir de 2016; (2) O valor da Receita Corrente Líquida de 2019 consta do PLOA 2019 da União conforme estudo da Câmara dos Deputados; o valor do Piso ASPS foi atualizado pela regra da EC 95 (RCL 2017 x 15% x IPCA jun/2018 de 4,39%; valores do empenho de 2018 estimado pelo autor com base na execução orçamentária antes do encerramento do exercício e de 2019 com base nas planilhas da programação orçamentária de 2019 encaminhadas pela SPO/MS ao CNS no mês de outubro de 2018.

Lenir Santos é advogada, especialista em Direito Sanitário pela USP, doutora em Saúde Pública pela Unicamp e coordenadora dos cursos de especialização do Idisa — Instituto de Direito Sanitário Aplicado.

Francisco Funcia é economista e mestre em Economia Política pela PUC-SP.

Fonte: Conjur
Publicado em 21/01/2020

Congresso reafirma compromisso com políticas que garantam o Uso Racional de Medicamentos

O VII Congresso Brasilieiro para o Uso Racional de Medicamentos (CBURM) reuniu farmacêuticos, outros profissionais da área da saúde, pesquisadores, estudantes e gestores que discutiram em vários paineis e grupos as políticas e o atual cenário sobre o Uso Racional de Medicamentos no país. A tesoureira da Fenafar, Célia Chaves, que integra o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos e outros diretores da Fenafar e de seus sindicatos filiados participaram do evento.

O Comitê foi uma das instâncias de participação social atingidas pelo decreto que suspendou espaços de participação social, mas foi recriado pela Portaria 3.221, publicada no dia 10 de dezembro, data do primeiro dia do Congresso do Uso Racional. A diretora da Fenafar e integrando do CNPURM, Célia Chaves, que representa a Fenafar no Comitê desde sua criação, em 2006, comemorou a publicação da portaria. “O Comitê já realizou 6 congressos e produziu as publicações como a Cartilha Sobre o Uso Racional de Medicamentos e, mais recentemente, “O uso de Medicamentos e Medicalização da Vida. Essa trajetória deixa claro que sua criação foi um acerto e reforça a necessidade de que esse trabalho possa ter cada dia mais utilidade” – comentou.

Para a farmacêutica, a discussão sobre o Uso Racional de Medicamentos na sociedade é tema de grande relevância, em particular num momento em que se multiplicam no Congresso Nacional iniciativas para liberar a venda de medicamentos fora das farmácias e sem a supervisão de um profissional farmacêutico. Na avaliação de Célia Chaves, o CNPURM e os congressos realizados, além de outras iniciativas do Comitê têm contribuído para envolver outros setores para essa pauta que não é apenas da saúde, mas é da economia e da soberania nacional.

Ao final dos debates, o CBURM aprovou a Carta de Brasília, reafirmando diretrizes fundamentais para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos.

VII Congresso Brasileiro sobre o Uso Racional de Medicamentos

CARTA DE BRASÍLIA

A realização do I Congresso Brasileiro sobre o Uso Racional de Medicamentos em Porto Alegre-RS, no ano de 2005, deu início a uma nova estratégia para a promoção do uso racional de medicamentos (URM) no Brasil. A importância desta iniciativa foi reconhecida pelo Ministério da Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária e Organização Pan-Americana de Saúde/OMS no Brasil, promovendo, em 2007, a realização do II Congresso Brasileiro sobre o Uso Racional de Medicamentos, em Florianópolis-SC, como um evento institucional, cujo tema foi “Incorporando o uso racional de medicamentos na agenda da saúde do Brasil”. Seguindo esta lógica e, conforme recomendação da Carta de Florianópolis, o III Congresso Brasileiro sobre o Uso Racional de Medicamentos foi realizado em 2009, em Fortaleza-CE, com o tema “Incorporando o uso racional de medicamentos às práticas profissionais em saúde”. Dando continuidade a estas exitosas experiências, realizamos em Salvador-BA, em 2012, o IV Congresso Brasileiro sobre o Uso Racional de Medicamentos com o tema “Incorporando o Uso Racional de Medicamentos no contexto da atenção à saúde”. Já consagrado como atividade do Comitê Nacional para Promoção do Uso Racional de Medicamentos, realizamos em 2014 o V Congresso Brasileiro sobre o Uso Racional de Medicamentos, na cidade de São Paulo-SP, com o tema “O uso racional de medicamentos e a segurança do paciente”. O VI foi realizado em Foz do Iguaçu-PR, com o tema “Múltiplos olhares para cuidar das pessoas”.

Nesta sétima edição do Congresso, o tema foi “Desafios e perspectivas para o uso racional de medicamentos na prática interprofissional”. Registrou-se a participação de mais de mil congressistas, dentre profissionais de saúde, estudantes, pesquisadores, gestores, prestadores de serviço, operadores do direito, entre outros. A programação abordou os seguintes assuntos:

Mesas redondas: i) Educação e prática interprofissional colaborativa: estratégia para o uso racional de medicamentos; ii) Desafios para mitigar a resistência aos antimicrobianos: ações interdisciplinares e Políticas Públicas; iii) Desafio Global de Segurança do Paciente: cuidado em saúde e utilização de medicamentos; iv) Medicalização da sociedade v) Paradoxo terapêutico global: falta de acesso e uso excessivo de medicamentos, e vi) Cuidado Farmacêutico na Assistência Farmacêutica Hospitalar: Integração Ensino – Pesquisa – Serviço.

Talk shows: i) Estratégias de uso racional de medicamentos na Atenção Primária de Saúde; ii) Comunicação em Saúde. “Autocuidado ou autodescuido”? iii) Uso racional medicamentos em pessoas acima de 60 anos, iv) Ciência, Tecnologia e Inovação: abordagem “One Health” e v) Farmacovigilância Passiva e o novo sistema de notificações de eventos adversos.

Painel – Resultados do projeto piloto de cuidado farmacêutico no âmbito do componente especializado da Assistência Farmacêutica.

Oficinas: i) Papel dos Centros de infusão no uso racional de medicamentos biológicos e biossimilares; ii) Assimetrias entre acesso e uso racional de medicamentos; iii) Uso racional de antimicrobianos na Odontologia; iv) Indicadores para implantação e monitoramento do uso racional de medicamentos em serviços de saúde; v) Ferramentas e instrumentos intersetoriais para práticas desmedicalizantes; vi) Prevenção quaternária no fazer médico: evidências e estratégias; vii) Enfermagem e a segurança do usuário de medicamentos: protocolos e ferramentas de cuidado, e viii) Uso racional de fitoterápicos na Atenção Primária à Saúde.

Cursos: i) Segurança do paciente na utilização de medicamentos; ii) Uso de evidências científicas no uso racional de medicamentos; iii) Desprescrição e descontinuação de medicamentos na Atenção Primária em Saúde, iv) Uso de evidências científicas no uso racional de medicamentos e v) Uso Racional e Judicialização de medicamentos.

Conforme a tradição dos congressos anteriores, e de forma a proporcionar uma maior troca de experiências entre os congressistas, foram submetidos trabalhos abrangendo quatro áreas temáticas: i) Educação e prática interprofissional colaborativa para o uso racional de medicamentos; ii) Uso racional de antimicrobianos; iii) Desprescrição e descontinuação de medicamentos na Atenção Primária à Saúde, e iv) Desmedicalização, que resultaram na inscrição de 296 trabalhos. Após avaliação por especialistas, foram selecionados 78 trabalhos para apresentação oral, além de serem expostos em formato digital durante todo o Congresso.

O Congresso contou ainda com inovações como a i) Mostra de Saúde, Cultura e Arte; ii) Espaço de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, com atendimento ao público do evento, tradução em libras e iii) Relatoria Gráfica/Relatórios Visuais. Os painéis da relatoria gráfica, devido a tamanha relevância artística e de conteúdo, passaram a compor a Mostra de Saúde, Cultura e Arte. Ao final do Congresso, 12 trabalhos do tipo apresentação oral (3 trabalhos para cada tema) e 3 trabalhos da Mostra de Saúde, Cultura e Arte receberam Menção Honrosa.

Considerando o conjunto de participantes do VII Congresso Brasileiro sobre Uso Racional de Medicamentos oriundos de todas regiões do pais, após discussões que abrangeram diversas perspectivas, apresenta-se à sociedade brasileira as recomendações a seguir, na perspectiva de que sejam incorporadas pelas entidades e instituições, públicas ou privadas, e, em particular, pelas diferentes instâncias de governo, de gestão e do controle social do Sistema Único de Saúde:

1. Defender a revogação da Emenda Constitucional no 95/2016, que limita por 20 anos os investimentos públicos em saúde.

2. Ampliar a participação de gestores, representantes dos diferentes segmentos do setor produtivo, da mídia e comunicação, usuários, operadores do direito e trabalhadores em saúde, como atores importantes para a promoção do URM.

3. Estimular iniciativas que visem fortalecer a integralidade nos serviços de saúde.

4. Estimular a comunicação e prática interprofissional.

5. Estimular a criação de plataformas digitais para melhor disseminação das informações científicas e

de qualidade entre os profissionais e gestores de saúde.

6. Promover ações de sensibilização, conscientização e empoderamento dos usuários para a

promoção do URM, desenvolvendo estratégias de comunicação e ferramentas compreensíveis aos

usuários e aos profissionais de saúde, veiculadas em todos os meios de comunicação disponíveis.

7. Incentivar estratégias de educação permanente para os usuários e profissionais de saúde, com

vistas à disseminação de práticas efetivas de desprescrição/desmedicalização.

8. Estimular iniciativas educacionais interprofissionais que abordem conteúdos de URM nos currículos de cursos da área da saúde, em níveis de graduação e pós-graduação lato e strito sensu;

nos programas e cursos de extensão universitária; nos programas de Educação Permanente em

Saúde e nas práticas de Educação Popular em Saúde.

9. Propor a elaboração de sistemas de informação que permitam o acompanhamento das atividades

direcionadas à prevenção quaternária.

10. Estimular a apresentação de resultados de pesquisas científicas relacionadas ao URM em novos

formatos e plataformas digitais.

11. Defender o financiamento e a ampliação dos laboratórios oficiais e dos centros de pesquisa

nacionais, destinando recursos para o desenvolvimento científico, tecnológico, inovações e produção pública de fármacos e medicamentos que sejam de interesse do SUS, priorizando doenças prevalentes.

12. Defender a Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), como ação estratégica para o fortalecimento da capacidade do Estado em garantir o acesso e o uso adequado de medicamentos e tecnologias, envolvendo ações que vão desde a pesquisa até a farmacovigilância.

13.Defender investimentos em pesquisa, desenvolvimento de tecnologias e incorporação de tecnologias adequadas de acordo com o perfil epidemiológico dos territórios.

14. Defender a soberania do país na produção de medicamentos e seus insumos, com regulação e monitoramento do mercado farmacêutico, combatendo preços abusivos e extorsivos de insumos e medicamentos na busca da equidade.

15.Propor a manutenção, a atualização permanente e a revisão da Rename e do Formulário Terapêutico Nacional como estimuladores da promoção do URM.

16.Elaborar Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para a prescrição de antibioticoterapia profilática em procedimentos odontológicos.

17. Estimular nas escolas a prática de terapias não farmacológicas, tais como xadrez, musicoterapia, meditação, entre outras, para o tratamento de hiperatividade e déficit de atenção (TDAH) nas crianças e adolescentes.

18.Incentivar a prática de desprescrição responsável com base em recomendações nacionais, incentivando o trabalho em equipe.

19. Propor a implantação do Projeto de Cuidado Farmacêutico do Ministério da Saúde em todo território nacional.

20. Incentivar programas de gerenciamento no cuidado farmacêutico.

21. Realizar estudos farmacoepidemiológicos longitudinais para identificação dos riscos e a criar

indicadores a fim de monitorar os polimedicados e fortalecer o URM.

22.Desenvolver mecanismos de engajamento dos prescritores quanto à cultura de segurança,

estimulando formação de profissionais de saúde comprometidos com a segurança do paciente em

todo o país.

23. Incentivar as notificações de erros de medicação dentro dos estabelecimentos de saúde, de modo a

possibilitar seu registro e acompanhamento, a interface entre estes serviços e os centros de farmacovigilância, mas implantando a cultura de segurança nas organizações, de modo não punitivo.

24. Aumentar a oferta de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) nos serviços de saúde e construir estratégias para envolver os usuários.

25. Estimular residências multiprofissionais e/ou estratégias formativas na área de PICS.

26. Criar programas, vídeos e informativos visando esclarecer a população sobre o uso de Plantas Medicinais e Fitoterápicos.

27.Sugerir a adequação das embalagens e rotulagens, de modo a reduzir semelhanças entre medicamentos distintos e a proibição de nomes comerciais semelhantes de medicamentos com princípio ativo distinto, de modo a reduzir possíveis erros de medicação.

28. Estimular a criação de novos centros de infusão de medicamentos com capacitação profissional e integração das unidades dispensadoras, com compartilhamento de doses de medicamentos.

29. Elaborar plano de ação e de monitoramento do descarte de antimicrobianos em todos os setores da sociedade, incluindo os serviços de saúde, a população, bem como os de uso veterinário.

Aponta-se a necessidade de que, na próxima edição do Congresso Brasileiro sobre Uso Racional de Medicamentos, sejam envidados esforços institucionais para a ampliação da participação de outros atores importantes para a promoção do URM.

Brasília, 12 de dezembro de 2019, 130o ano da República; 42o ano da publicação da 1a Lista de Medicamentos Essenciais; 41o ano da Conferência de Alma-Ata; 34o ano da Conferência de Nairobi sobre Uso Racional de Medicamentos e 15o ano da Política Nacional de Assistência Farmacêutica.

Carta aprovada por aclamação no Ato de Encerramento do VII Congresso Brasileiro sobre Uso Racional de Medicamentos.

Da redação com informações do CBURM
Publicado em 16/01/2020

À deriva social com ODS fora do PPA, fusão de pisos e extinção do Fundeb

A imagem de nau à deriva em um mar revolto de interesses contraditórios explica grosseiramente a crise de identidade constitucional em que vivemos. Quase na iminência de um naufrágio coletivo, a irracionalidade se alastra para a (des)ordenação de prioridades no ciclo orçamentário e coloca em risco a própria continuidade dos serviços públicos essenciais.

Por Élida Graziane Pinto

Grupos de pressão político-econômica e agendas controversas nos costumes disputam a desconstrução da Constituição de 1988. Querem desobrigar, desindexar e desvincular nosso ordenamento dos compromissos orçamentário-financeiros para com os direitos fundamentais. Enquanto isso há quem advogue que, ao invés da Constituição, deveríamos nos guiar primordialmente por crenças religiosas[1], as quais, por seu turno, buscam ampliar subsídios para templos[2]. Noutro influxo de pressões, o país se nega ao propósito de perseguir prioritariamente os objetivos do desenvolvimento sustentável em seu plano plurianual relativo ao quadriênio 2020-2023[3], o que não há de gerar maior constrangimento nos agentes econômicos, desde que seja assegurada o quanto antes uma pouco transparente e fiscalmente temerária autonomia do Banco Central[4].

Não há rumo compartilhado amplamente entre nós. Estamos socialmente à deriva em meio a tantas tentativas de destruição da bússola constitucional que orienta nosso norte comum. Ondas e ruídos de interesses patrimonialistas se superpõem em meio ao diversionismo religioso e ao autismo econômico, a exemplo do projeto vetado[5] que pretendia tornar ontologicamente inexigível toda e qualquer contratação de advogado e contador pela Administração Pública.

Não sabemos o quanto custam as pretensões de (i) resguardar o subsídio da tarifa de energia elétrica em favor dos templos religiosos; (ii) contratar sem licitação quase 2 milhões de advogados e contadores presumidamente “notórios especializados” em serviços abstrata e alegadamente singulares, bem como (iii) dar ao Banco Central uma autonomia opaca, a despeito de extremamente onerosa e arriscada… Tão somente sabemos que, quando todos querem passar adiante uns dos outros, isso só faz acelerar o risco de naufrágio civilizatório.

Interessante resgatar, nesse contexto, o pessimista alerta de Zeina Latif[6] sobre sermos complacentes com o baixo crescimento econômico, por não enfrentarmos a desigualdade e o risco da mediocridade educacional:

“Temos uma agenda lenta para crescimento robusto e também não temos um projeto de como endereçar a desigualdade no país. Não é só uma questão moral. Ela [desigualdade] enfraquece a economia e também não ajuda no fortalecimento da própria democracia.”

Mas aludida falta de projeto para a desigualdade não se trata de mero esquecimento da agenda social. O que está em curso, diferentemente disso, parece ser uma deliberada tentativa de quebrar o mastro fiscal da nossa embarcação constitucional, ao qual nossa sociedade se prendeu – em 1988 – para proibir retrocessos ou mesmo a insuficiente proteção orçamentária de determinados direitos fundamentais nucleares.

A mirada para este 2020 apresenta um horizonte adicional de turbulências no mar revolto da democracia brasileira, sobretudo, no que se refere à proposta de fusão dos pisos em saúde e educação trazida pela PEC 188/2019 e ao risco de extinção do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB.

A unificação dos pisos em saúde e educação é promessa falsa de aprimorar sua gestão orçamentária. O que se almeja é deduzir no cômputo de um o que se gasta excedentemente no outro. No limite, a tese admite até mesmo que o gestor possa vir a zerar o gasto educacional para aplicar de forma supostamente prioritária na saúde da população cada vez mais idosa.

Esse jogo de soma zero é inconstitucional e ilusório. Os pisos não só são individuais, como também há a garantia de que sejam concursados os professores, o que estabiliza a despesa obrigatória com pessoal ativo da educação, à luz do art. 206, V da CF.

Por outro lado, é inadmissível reduzir proporcionalmente carga horária e salário dos servidores da educação e saúde nos Estados e Municípios em crise fiscal. São serviços públicos essenciais, que não devem ser descontinuados, nem restringidos com o cômputo de inativos nos pisos. Fraudes contábeis não podem acobertar crimes de responsabilidade de alguns prefeitos e governadores.

Mesmo os argumentos de transição demográfica e envelhecimento populacional não se sustentam, diante do déficit de quase 7 milhões de vagas em creches e da pífia oferta de ensino em horário integral. Tampouco há valorização remuneratória docente efetiva, na forma do art. 206, VIII da CF. É mesquinho, portanto, falar que há dinheiro sobrando na educação básica obrigatória brasileira, quando chegamos ao sexto ano da vigência do Plano Nacional de Educação com descumprimento[7] de 70% das suas metas e estratégias.

Faltam equipes de saúde da família, mas políticos querem liberdade para gastar mais com hospitais de pequeno porte, por meio de emendas parlamentares desatentas ao planejamento sanitário. O quadro é agravado com demandas judiciais de caráter individual alheias à pactuação federativa que ordena o SUS.

Saúde e educação são subfinanciadas pela União, além de terem seus gastos falseados pela maioria dos Estados e Municípios, de modo que impera uma guerra fiscal de despesas na federação. Ao invés de esvaziar os pisos, é preciso fortalecer o planejamento setorial de cada área, bem como resguardar que os recursos do fundo social do pré-sal sejam, de fato, fontes adicionais de custeio, diferentemente do que pretende a PEC 188/2019.

Por outro lado, é igualmente desastrosa a hipótese de chegarmos a dezembro deste ano sem que tenha sido promulgada uma proposta de emenda constitucional que renove o FUNDEB (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).

Aludido fundo busca equalizar o rateio de parte dos recursos vinculados à educação, na forma do art. 212, para mitigar as distorções arrecadatórias existentes entre os entes da federação. O foco é o aluno matriculado nas redes públicas de ensino, cujo direito subjetivo à educação passa a estar lastreado em um valor anual mínimo de referência. O problema é que a vigência do FUNDEB fora definida tão somente até o final de 2020 no art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Em última instância, o que sempre se buscou amparar, com fulcro nos arts. 206, VII e 211, §1º da CF, foi a noção de que deveria ser fixado equitativamente piso de custeio correspondente ao custo identificável por cada aluno para assegurar os insumos mínimos capazes de indicar a qualidade da educação básica obrigatória (ou seja, custo aluno qualidade inicial – CAQi e custo aluno qualidade – CAQ, na forma das estratégias 7.21 e 20.6 a 20.8 do PNE).

A sistemática de 27 fundos estaduais de equalização federativa dos gastos educacionais trata-se de arranjo normativo criado pela Emenda 14/1996 (extinto FUNDEF), que não só foi renovado, como foi também aperfeiçoado pela Emenda 53/2006 (FUNDEB). A garantia apenas do ensino fundamental dos 7 aos 14 anos foi ampliada para a oferta também do ensino infantil pré-escolar e do ensino médio no conceito ampliado de educação básica obrigatória para todos os brasileiros dos 4 aos 17 anos de idade.

Antes da Emenda 14/1996 e da Emenda 53/2006, o gasto mínimo em educação em valores per capita era profundamente variável, na medida em que oscilava abruptamente conforme a capacidade arrecadatória de cada município ou estado. Tampouco a União exercia efetivamente qualquer esforço objetivo e coordenado de complementação em favor das redes públicas de ensino mais pobres. Na redação originária do art. 60 do ADCT na Constituição de 1988, havia tão somente a previsão genérica de que cinquenta por cento dos recursos educacionais referidos no art. 212 da Constituição fossem aplicados na eliminação do analfabetismo e na universalização do ensino fundamental.

Com o FUNDEF/FUNDEB, o desiderato da equidade do gasto educacional se tornou mais plausível, muito embora ainda haja distorções consideráveis na federação brasileira. Para ampliar sua metodologia e corrigir tais falhas distributivas, é que o Congresso tem se ocupado, há quase cinco anos, de debater a renovação do FUNDEB na PEC 15/2015[8], sobretudo no que se refere à expansão da participação federal no custeio da educação básica obrigatória.

Mas eis que chegamos a 2020, na premência do termo final dado pelo art. 60 do ADCT, com a falaciosa tese do Ministério da Economia, encampada pelo Ministério da Educação, de que supostamente não haveria margem fiscal[9] para ampliar a complementação federal ao FUNDEB.

Parecemos estar envoltos em uma repetição do debate sobre a insuficiente complementação federal ao FUNDEF, já duramente refutada pelo Supremo Tribunal Federal nas Ações Cíveis Originárias n.º 648, 660, 669 e 700 (julgadas conjuntamente procedentes). A omissão da União quanto à regulamentação do custo aluno qualidade inicial e, por conseguinte, sua insuficiente complementação ao FUNDEB também foi diagnosticada reiteradas vezes pelo Tribunal de Contas da União nos Acórdãos n.º 618/2014, 906/2015, 1897/2017, 717/2019 e 1656/2019.

Ao longo deste ano, o risco de extinção do fundo se faz presente, sobretudo, por força da estratégia meramente protelatória[10] e reducionista adotada pelos Ministérios da Economia e da Educação, de apresentação intempestiva de proposta alternativa, sem dialogar com o esforço que tem sido empreendido há cinco anos no Congresso no âmbito da PEC 15/2015. Segundo a Deputada Professora Dorinha[11], relatora da aludida PEC: “Imaginar que será possível criar, em um passe de mágica, uma contraproposta à altura, é subestimar o brasileiro e brincar com coisa séria. O Parlamento não vai pagar essa conta e, certamente, não se responsabilizará pelo desmonte da educação básica”.

É preciso aprimorar a eficiência e a equidade dos recursos educacionais, tanto quanto é necessário aportar mais recursos para o custeio da educação básica obrigatória, até para que não caiamos no “risco da mediocridade” suscitado por Zeina Latif, precisamente porque, no Brasil, somente em 2016 foi efetivamente universalizado o dever de oferta da educação básica dos 4 aos 17 anos e porque – ainda em 2019 – quase 53% da população adulta não havia concluído o ensino médio[12].

Com a curta série histórica de vigência do FUNDEB (2006-2020), ainda somos mediocremente um país de analfabetos funcionais clamando por alguma escolarização adicional, ainda que precária e de péssima qualidade. Sem ele, a tendência é de que mantenhamos a irrefletida prioridade para, por exemplo, subsídios religiosos, contratações inexigíveis e opaca autonomia da autoridade monetária, haja vista a restrição igualmente mantida de nossa capacidade analítica do quanto cada qual dessas escolhas custa ao conjunto da sociedade e como poderiam tais custos serem devidamente controlados/mitigados.

Se se consumarem os riscos de fusão dos pisos em saúde e educação e de extinção do FUNDEB, quebraremos os parcos instrumentos civilizatórios que nos mantiveram minimamente atrelados ao nosso compromisso constitucional de prioridade de custeio dos direitos fundamentais. Nossa democracia tende a ver acirrada a desigualdade e, com isso, ver-se ela própria naufragando em meio ao caos orçamentário das pressões fisiológicas de curto prazo eleitoral.

Para que escaparmos dessa deriva social, seria preciso que fossemos um país aderente ao nosso pacto constitucional e que houvesse consenso mínimo sobre nossas prioridades civilizatórias. Nossa bússola constitucional reclama de nós que busquemos empreender estruturalmente duas ações coordenadas:

  • aprimorar o planejamento estatal que identifica legitimamente problemas como demandas prioritárias, para – a partir desse diagnóstico nuclear – avaliar prognósticos em termos de consistência técnica e economicidade. Tal concepção planejada do papel do Estado tem por compromisso finalístico a atividade dinâmica e plural de resguardar cumprimento progressivo aos direitos fundamentais. A clareza dos problemas e o teste das possíveis alternativas que se lhe apresentam como solução são medidas basilares que deveriam lastrear todas as escolhas governamentais, para que se passasse racionalmente a executar as metas físicas e financeiras do planejamento setorial e orçamentário de modo coerente e consistente ao longo do tempo, sem reinvenções da roda e descontinuidades patrimonialistas[13];
  • qualificar as vinculações orçamentárias para associá-las substantivamente ao alcance de metas objetivas definidas nos seus respectivos instrumentos de planejamento setorial, com foco integrado na promoção do desenvolvimento sustentável. Tal medida se justifica, na medida em que resguardar a continuidade dos repasses para educação e seguridade social (dentro da qual se insere a saúde) é escolha constitucional inalienável que não só estabiliza seu custeio, como também impõe seu aperfeiçoamento intertemporal em torno de resultados socialmente definidos a cada ciclo de planejamento setorial e orçamentário.

Se, como bem provocara Zeina Latif, há de haver ousadia para superarmos o risco da mediocridade, então que sejamos ousados no debate da renovação do FUNDEB e na manutenção da higidez constitucional dos pisos em saúde e educação, qualificando-os conforme o respectivo planejamento setorial de cada área.

Ora, falta-nos projeto comum ou falta-nos compromisso com nossas prioridades civilizatórias já eleitas na Constituição de 1988? Em meio à deriva social na qual nos encontramos, falar em desenvolvimento sustentável e em vinculações orçamentárias é lutar para sobreviver ao naufrágio civilizatório que se avizinha.

[1] O slogan “Bíblia sim, Constituição não” tem sido usado como lema para pichações em muros e edificações, como se pode ler em https://piaui.folha.uol.com.br/nao-votaras/ e https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/porcalhoes-picham-tuneis-no-rio-com-biblia-sim-constituicao-nao.html

[2] O subsídio pretendido incidiria sobre o consumo de energia elétrica dos templos religiosos e seria arcado pelos demais consumidores, como debatido em https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-da-economia-confirma-que-estuda-subsidio-a-conta-de-luz-de-igrejas,70003152522 e https://veja.abril.com.br/brasil/subsidio-de-energia-para-templos-religiosos-custaria-30-mi-por-ano/

[3] Conforme veto noticiado em https://www.camara.leg.br/noticias/629391-bolsonaro-sanciona-ppa-com-veto-a-metas-de-desenvolvimento-sustentavel-da-onu/

[4] Como suscitado em https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/01/09/presidente-do-banco-central-preve-aprovar-autonomia-da-instituicao-no-1o-trimestre-de-2020.ghtmlhttps://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/12/banco-central-deveria-surfar-a-onda-da-maior-transparencia.shtml e https://blogdoibre.fgv.br/posts/mercado-todo-pensa-isso-mas-ninguem-tem-coragem-de-dizer

[5] Como se pode ler em https://www.conjur.com.br/2020-jan-08/bolsonaro-veta-dispensa-licitacao-contratar-advogados

[6] Em entrevista disponível em https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2020/01/08/de-saida-da-xp-zeina-latif-teme-risco-de-brasil-se-acomodar-com-pibinho.ghtml

[7] Como noticiado em https://portal.tcu.gov.br/imprensa-1/noticias/plano-nacional-de-educacao-corre-risco-de-nao-alcancar-70-das-metas.htm

[8] Como se pode ler em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultoria-legislativa/areas-da-conle/tema11/a-pec-no-15-2015-e-o-novo-fundeb-paulo-de-sena e https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/PEC-FUNDEB_Analise-e-Proposi%C3%A7oes-CAMPANHA.pdf

[9] Em um cálculo metodologicamente controvertido, o governo chegou a contrapor o custo do Fundeb ao da aprovação da reforma da previdência, como se pode ler em https://oglobo.globo.com/sociedade/governo-calcula-gasto-de-855-bilhoes-com-proposta-sobre-fundeb-23957112

[10] Como suscitado em https://congressoemfoco.uol.com.br/economia/congresso-nao-aceitara-proposta-de-weintraub-para-o-fundeb-diz-relatora/

[11] Em nota divulgada em https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/01/09/relatora-da-pec-do-fundeb-critica-ministro-da-educacao.ghtml

[12] Como noticiado em https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/06/19/mais-da-metade-dos-brasileiros-de-25-anos-ou-mais-ainda-nao-concluiu-a-educacao-basica-aponta-ibge.ghtml

[13] Como suscitado por Bruno Carazza em https://valor.globo.com/politica/coluna/des-continuidades.ghtml

Élida Graziane Pinto é Promotora do Ministério Público de Contas de SP
Fonte: Conjur, Imagem – Sinasefe
Publicado em 15/01/2020

Entrevista Carlos Ocké: ‘A Adaps pode reforçar a tendência de privatização da gestão’

Em entrevista para a revista Poli, o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Carlos Ocké, que estuda há anos a saúde suplementar e o seu financiamento, alerta que as políticas do governo para a saúde aprofundam o modelo privatista e alerta: “A tendência é de arrocho.”

O ano de 2019 foi movimentado em muitas frentes, e com o SUS não foi diferente. Ao longo dos meses, vimos o desenrolar da crise de provimento provocada pelo fim da parceria entre Brasil e Cuba no Mais Médicos, o surgimento da resposta do governo federal – o programa Médicos pelo Brasil – que, apresentado via medida provisória, foi aprovado no último momento pelo Congresso Nacional criando a controversa Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps) nos moldes de um serviço social autônomo. Assistimos também à aprovação de um novo modelo de financiamento federal para a atenção básica, que está sendo contestado pelo Conselho Nacional de Saúde e substitui o repasse por habitante por uma fórmula que leva em conta apenas o usuário cadastrado na equipe de saúde. E, ainda, à demonstração de força dos parlamentares ao estabelecerem que as emendas apresentadas por bancadas também terão execução obrigatória por parte do governo federal. Tudo isso, num cenário em que os recursos da União destinados ao SUS mínguam, ano a ano. Em 2020, todas essas novidades entram em cena. E há mais mudanças aguardando na ‘coxia’, como a proposta da equipe econômica de unificar os gastos com saúde e educação nos três níveis de governo apresentada na PEC do Pacto Federativo. No pano de fundo, persistem problemas antigos, como o baque provocado na arrecadação pelos subsídios fiscais destinados ao setor saúde.

Do ponto de vista financeiro, como o SUS chegou a 2019?

Para entender o retrato de 2019 proponho que, primeiro, a gente assista ao filme – ou seja, analise como o financiamento federal vem se comportando nos últimos anos. Em 2014, a União destinou R$ 595 para cada habitante do país [em valores corrigidos pelo IPCA de 2019]. Foi o ápice desse investimento. Mas justamente no último trimestre de 2014 começou a recessão econômica e 2015 marcou o início da trajetória de queda desse valor per capita, que foi para R$ 581. Se não bastasse a conjuntura recessiva, surgiu um segundo e grave fator que deprimiu o piso mínimo. Eu falo da Emenda Constitucional 95, a EC do Teto dos Gastos, que começou a vigorar em 2018 para a saúde. E, com isso, o SUS passou de um padrão de subfinanciamento, que é histórico, para um cenário de estrangulamento financeiro, um desfinanciamento que inaugura um processo de sucateamento mais intenso do Sistema. No primeiro ano de vigência da EC 95 para a saúde, o gasto por habitante ficou em R$ 559. E, em 2019, esse valor desceu mais um pouquinho, indo para R$ 558. Então, a resposta mais curta para a sua pergunta é que o SUS chega mal a 2019. Desde a vigência da Emenda, o financiamento per capita caiu R$ 4. E nós já temos uma projeção para 2020 que mostra o filme: entre 2014 e 2020 o financiamento per capita terá diminuído nada menos do que R$ 40. E essa queda afeta a saúde dos indivíduos com a redução da oferta – seja de profissionais, insumos, remédios – e a perda de qualidade do SUS, com aumento do tempo de espera e agravamento da desigualdade de acesso.

Do ponto de vista de estados e municípios, existe a informação de quanto foi o orçamento da saúde em 2019?

Esses dados são apurados pelo SIOPS [Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde, do Ministério da Saúde]. Há informações para o ano 2018, mas eu, no momento, só tenho acesso aos dados até 2017. E o que posso dizer é que temos visto a seguinte tendência: o gasto público com ações e serviços de saúde cresceu mais nos municípios e nos estados. Em 2002, o governo federal foi responsável por um gasto correspondente a 1,66% do PIB [Produto Interno Bruto]. Em 2017, esse número chegou a 1,76%. Já o gasto dos municípios no período passou de 0,81% do PIB para 1,26%. E, o dos estados, de 0,70% para 1,04%. Então, no total, o gasto público em saúde no Brasil passou de 3,17% em 2002 para 4,06% em 2017 – quando, no mínimo, deveria atingir o patamar de 6% do PIB, de acordo até com as agências internacionais que postulam o mix público-privado. E o ente federativo que mais extrapola esse gasto em relação ao mínimo estabelecido na Constituição é o município. As cidades, em média, gastam 27% quando são obrigadas a destinar 15% das suas receitas. Os estados, em geral, ficam na média obrigatória de 12% – embora haja contenda jurídica em relação ao mínimo aplicado no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.

E quais são as tendências para 2020? Sabemos, por exemplo, que o Congresso vai começar a discutir a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Pacto Federativo, enviada pela equipe econômica, que pretende unificar os gastos com saúde e educação nos três níveis de governo…

A ideia de que recursos da saúde e da educação façam parte de um único fundo tem razão de ser no contexto do aprofundamento da política de austeridade fiscal, nesse quadro que retirou do orçamento federal qualquer vinculação com o crescimento econômico do país e com a capacidade de arrecadação tributária do Estado. Fazer com que saúde e educação fiquem no mesmo fundo significa inaugurar uma disputa entre essas duas áreas sociais. Porque, formalmente, as alíquotas das vinculações estão mantidas na saúde e na educação. Mas, na prática, você acaba tirando de um setor e alocando em outro – então alguém vai perder o mínimo. E a educação provavelmente vai sair mais penalizada, o que também é muito problemático do ponto de vista sanitário porque o nível educacional está altamente relacionado com melhores indicadores de saúde. Também não podemos esquecer que toda a discussão da lei complementar 141, de 2012, para definir o que são ações e serviços públicos de saúde aconteceu para fazer com que o dinheiro do SUS não vazasse para outras ações como, por exemplo, merenda escolar. Não desconhecemos que a nutrição seja um fator importante para as condições de vida e saúde da população, mas houve um longo debate sobre o que efetivamente definiria um serviço público de saúde, de modo que corremos o risco de perder esse núcleo de ações e programas que é essencial para o funcionamento do SUS. Então, essa PEC é extremamente perversa. E também é bom lembrar que a proposta original do governo federal era a desvinculação por completo dos pisos mínimos da saúde e da educação. Em suma, existe um conjunto de forças que tem por objetivo flexibilizar esse gasto mínimo, seja pela desvinculação direta – ou seja, não ter mais o piso –, seja por juntar saúde e educação, seja pela pressão crescente da política de austeridade fiscal. A tendência é de arrocho.

E, ao mesmo tempo, veremos um aumento da importância das emendas parlamentares na composição do orçamento do SUS, já que em 2019 o Congresso Nacional decidiu que as emendas apresentadas por bancadas também são impositivas, ou seja, obrigatórias a partir de 2020 – o que já era verdade para as emendas individuais desde 2016.

E essa situação é, portanto, inédita no SUS?

É um fato novo, que se fortalece depois da aprovação da Emenda Constitucional 95. O gasto com emendas parlamentares estava em R$ 1 bilhão em 2013 e foi para R$ 8 bilhões em 2019. Os parlamentares se fortalecem no processo decisório em torno do orçamento. O próprio Ministério da Saúde  terá que estabelecer uma relação política ‘orgânica’ com o Congresso, pois precisa dos recursos de emendas para cumprir o gasto mínimo em saúde.

Passando para a ponta da arrecadação, outro problema são os subsídios fiscais que existem no setor da saúde no Brasil. Você e Artur Fernandes, da Receita Federal, demonstraram num estudo publicado em 2018 que esse conjunto de isenções, deduções, reduções de base de cálculo e alíquota sangraram, entre 2003 e 2015, R$ 331,5 bilhões dos cofres públicos. Qual é a história por trás desses mecanismos? E quais são as situações mais críticas?

Os subsídios destinados à saúde foram disseminados no Brasil a partir de 1968 e ajudaram a criar o mercado de planos de saúde no país. Para começo de conversa, é preciso distinguir o gasto direto – aquele aplicado no SUS – dos subsídios, que são gastos indiretos que se destinam ao consumo das famílias, dos trabalhadores e dos empregadores. De saída, esses gastos indiretos têm dois problemas. Número um: o gasto público per capita fica distorcido, desigual porque todos usam o SUS, todo mundo usa vigilância em saúde e vacinação, por exemplo. E se eu tenho plano de saúde e você não tem, na média estou ganhando mais do que você já que nós dois ganhamos o gasto direto, mas eu também ganho o gasto indireto. Além disso, em tese, os subsídios retiram recursos do SUS porque o Estado patrocina o consumo de serviços privados de saúde em detrimento do fortalecimento do Sistema Único, indo de encontro aos preceitos constitucionais. Então os subsídios existem para favorecer esse mercado e para reduzir o gasto dessas famílias e empregadores com plano de saúde, consultas particulares e hospitalização. Antes da Constituição de 1988 também era possível abater medicamentos. Então, na ponta da demanda, os subsídios são dados por meio de abatimentos no imposto de renda de pessoa física ou jurídica. E, na ponta da oferta, são destinados aos hospitais filantrópicos e à própria indústria farmacêutica, cuja desoneração do pagamento de impostos deveria implicar em redução nos preços dos remédios – o que não acontece. E a situação fica ainda mais crítica porque em um momento de crise, como o atual, ao fazer essa escolha na composição do orçamento, o Estado estimula empresas de planos de saúde e farmacêuticas que vão muito bem, obrigado. Por outro lado, esse subsídio dado às famílias é, digamos assim, justificável porque as classes médias também estão sendo penalizadas pela crise econômica. Mas é importante sublinhar que se trata de um subsídio inequitativo porque quando você olha para a distribuição de renda na sociedade brasileira percebe que quem recebe esse gasto público indireto é o estrato mais rico da população. Dito isso, nesse momento, talvez seja melhor atacar o problema de forma ampla com uma reforma tributária que mude a composição da carga, retirando a ênfase da tributação sobre produção e consumo e se deslocando para mais impostos sobre patrimônio e lucros financeiros. E, em outro momento, contando com o crescimento da economia, a ampliação dos recursos aplicados no SUS e o fortalecimento da regulação sobre o mercado de planos, poderíamos retirar paulatinamente esses subsídios e converter o gasto indireto em direto. Porque também é importante entender que o governo pode tirar os subsídios, mas destinar os recursos não para políticas sociais ou para o SUS, mas para outras coisas, como a redução do déficit primário.

No Brasil, tem se tornado comum o discurso de que mais gente com plano de saúde ajuda o SUS, desafoga o Sistema. A batalha pela implementação do SUS passa hoje também pela desconstrução dessa ideia?

É uma falácia dizer que plano de saúde desafoga o SUS. Pelo contrário, a experiência internacional ensina que o fortalecimento da saúde suplementar fragiliza politicamente a capacidade que o setor público tem de construir consenso na sociedade para ampliar os recursos destinados à saúde. No capitalismo, a força do Estado de Bem-Estar Social decorre também da presença da classe média [como usuária dos serviços públicos] e da legitimidade [desses serviços]junto às classes populares. Um mercado forte significa um Estado frágil, sem capacidade de financiamento e sem sustentabilidade para garantir os recursos que a população precisa. Além do mais, é outra falácia dizer que o SUS não atende todo mundo. Urgência, emergência, hemodiálise, remédios de alto custo, transfusão de sangue, vigilância sanitária e epidemiológica, vacinação; são todos exemplos que provam isso. O gargalo que existe é no que se refere a consultas com especialistas, cirurgias eletivas e exames de média e alta complexidade. Esse braço, subsidiado, é a cereja do bolo do mercado de planos de saúde. Esse mercado não quer dividir com o Estado os procedimentos de alto custo, as enfermidades de alto risco. Nessa seara, ele quer socializar os custos, haja vista a figura emblemática do ressarcimento [das operadoras ao SUS, motivo de disputa durante muito tempo]. Em terceiro lugar, isso desorganiza completamente o sistema, cria duplicidade, ineficiência e aumenta os custos administrativos. Não acredito nessa tese da sinergia entre o setor público e o setor privado. Não existe sistema privado de saúde. Na verdade, o que existe é uma disputa ferrenha não só pelos subsídios, mas pelos recursos públicos em geral. A luta é por abocanhar cada vez mais recursos públicos porque isso faz parte da dinâmica desse setor na busca por aumentar sua escala e reduzir sua ineficiência.

Voltando para 2019: vimos o desenrolar do problema do provimento de médicos. No fim de novembro, perto de perder a validade, uma medida provisória do governo federal foi aprovada pelo Congresso criando o programa Médicos pelo Brasil que traz uma novidade que é objeto de muita preocupação entre os sanitaristas: a criação da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps) nos moldes de um serviço social autônomo. Qual é o sentido dessa proposta?

O sentido declarado dessa proposta é criar uma organização que contrate médicos, por meio da CLT, para atuar nos vazios assistenciais. Só que existe uma zona cinzenta porque essa agência tem um conjunto de atribuições. E esse desenho pode diminuir as atribuições dos municípios, uma vez que  a agência contratará diretamente as equipes – não os gestores locais. E há a possibilidade de o governo federal passar a estimular relações contratuais com o setor privado. A Adaps pode reforçar a tendência de privatização da gestão. A meu ver, a proposta da agência tem como perspectiva a contratação de pessoal por meio de OSs [organizações sociais] ou cooperativas de PJs [pessoas jurídicas]. Mas, para entender isso, é preciso falar de outro assunto, que é o novo modelo de financiamento federal da atenção primária à saúde.

Esse novo modelo foi aprovado pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT) que, além do Ministério, é composta pelos representantes de secretários estaduais e municipais de saúde. Batizado de programa Previne Brasil, o modelo abandona a fórmula de financiamento que leva em consideração o total de habitantes das cidades e aposta em outra, mais complexa, que leva em conta a quantidade de pessoas cadastradas. É isso?

Acabou o repasse vinculado à base populacional do município. As cidades vão receber transferência federal via quatro eixos: indicadores de desempenho; recursos destinados a alguns programas estratégicos para essa gestão – o ‘Saúde na Hora’, as residências multiprofissionais e a informatização –; provimento de médicos e agentes comunitários de saúde; e por captação. Em resumo, o modelo de captação se baseia no repasse de um valor por habitante cadastrado pela equipe de saúde, calculado segundo um fator que está ponderado pela posição geográfica do município, pelo número de cadastrados no Bolsa Família, no BPC [Benefício de Prestação Continuada], etc. e por faixa etária. Circulou nas redes sociais uma mensagem instando as pessoas a irem ‘se cadastrar’ no SUS, mas é um pouco mais complicado do que isso. Cada equipe de saúde tem um número máximo de pessoas a ela vinculadas. Então, esse cadastro potencial é relacionado à capacidade de cobertura do número de equipes de saúde e não ao total da população do município. Isso é bem importante. Para cadastrar é preciso ter equipe nova. E não tem dinheiro novo. O tal dinheiro novo para a atenção básica que o Ministério da Saúde anunciou é uma comparação em termos nominais – ou seja, o governo compara sem levar em consideração a inflação – da despesa empenhada em 2018 com o PLOA 2020. Dizem que há R$ 2 bilhões a mais, quando, na verdade, se você corrige pela inflação o ganho é de R$ 200 milhões. A nossa perspectiva é que, a partir de maio, mesmo com incentivo financeiro, os municípios sofrerão um baque, sobretudo as regiões metropolitanas e as grandes cidades e capitais porque são elas que têm um custo maior para cadastrar. E, de novo, quero reforçar que para cadastrar é preciso ter equipe nova. E de onde vem o dinheiro para contratar equipe nova? Terá que vir dos próprios municípios, que já estão estrangulados. Quando você olha para o total dos gastos do município com atenção básica, 70% são bancados pelos gestores locais e apenas 30% pelo governo federal. Então é como se tivesse que expandir esses 70% para contratar médicos, por exemplo. O que pode acontecer, por estratégia de sobrevivência, é as prefeituras substituírem as equipes de Saúde da Família por equipes de atenção básica, que além de menos profissionais, têm cargas horárias e dedicação diferente. O grande efeito colateral desse modelo é a desconstrução da Estratégia Saúde da Família. E além do custo para contratar a equipe que vai aumentar o seu cadastro potencial, o fato é que efetivar esse cadastro também tem custo de transação para o município. Tem que realocar profissional para cadastrar em um momento em que a pressão assistencial sobre o SUS está aumentando.

E como a Adaps e o novo modelo convergem?

É importante, enquanto analistas de políticas de saúde, que façamos um esforço para entender a convergência entre o desenho da Adaps e a nova proposta de financiamento. Trabalhamos com a hipótese de que estamos vendo acontecer no Brasil o mesmo movimento de contrarreformas que aconteceu no NHS [Serviço Nacional de Saúde] inglês. Lá, as primeiras mudanças aconteceram em 1989, no governo de Margaret Thatcher, com a introdução do mercado interno no NHS. Aqui, a primeira onda seria formada pelas mudanças aprovadas na atenção primária em 2019. Essa hipótese foi reforçada com o anúncio feito pelo ministro [da Saúde Luiz Henrique Mandetta] de que, em 2020, sua prioridade será mexer na atenção especializada. Existem vozes, inclusive do Banco Mundial, que defendem que o SUS precisa mudar: o dinheiro deve seguir o paciente – em nosso caso, o dinheiro deve seguir o cadastro [proposto pelo novo modelo de financiamento da atenção primária]. Isso é inspirado na contrarreforma do NHS. Então, a pergunta é: em que medida a Adaps vai ser um instrumento para fortalecer as bases institucionais para criação à brasileira do mercado interno inglês como foi operado no início da década de 1990 pelos liberais sob o governo Thatcher?

O temor é que a Adaps ao invés de fazer contratação direta de médicos via CLT opte por contratar empresas, como a Unimed, e OSs?

O Médicos pelo Brasil fala em vazio assistencial, mas pode-se formalmente contratar OSs e cooperativas de PJs, como eu já mencionei. Essa agência tem atribuições que vão lhe permitir fazer contratação direta de profissional de saúde nos municípios. E aí abro um parêntese aqui para fazer a ligação com o novo modelo de financiamento federal. O Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde] disponibilizou em seu site uma plataforma em que os gestores podem fazer uma simulação se vão ganhar ou perder com a mudança no financiamento. E, curiosamente, o repasse federal para o provimento do médico não consta na simulação. O que isso significa? E tudo se complica ainda mais  à luz da portaria 233 da Secretaria do Tesouro Nacional que coloca, a partir de 2020, as OSs no cômputo dos limites de contratação de pessoal estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal [LRF]. Você mencionou as Unimeds. Para efeito da LRF, o gasto com as Unimeds vão estar no cômputo? As Unimeds, que são cooperativas regidas pelo Ministério da Agricultura, vão atender aos preceitos constitucionais do SUS?

Até agora, no debate sobre o Médicos pelo Brasil, a leitura mais corrente sobre o significado da Adaps é que a agência seria um novo Inamps. Você tem pontuado que essa comparação não faz muito sentido. Por quê?

À primeira vista essa comparação não ajuda muito a entender os pressupostos da Adaps – porque não é o desenho de um novo Inamps. Tem características do Inamps, mas não acho que possam ser transfigurados. Primeiro porque o Inamps era um modelo de seguro social que estava se expandindo, inclusive. Estava se universalizando. É verdade que, quando pensamos na relação de compra e venda, se trata de estabelecer contrato com instâncias privadas, mas a diferença para o momento atual é que são essas instâncias privadas que acabam tendo a capacidade de planejamento sobre as ações e serviços públicos de saúde – e este é um efeito colateral grave. A questão vai além do repasse [de recursos públicos para o setor privado] porque as OSs é que estão definindo o que fazer. Então, no limite, para que acabar com a Emenda Constitucional 95 e ampliar os recursos para o SUS se a gestão do Sistema está privatizada? Se a gestão está particularizada? São interesses econômicos distintos dos interesses públicos do Estado que vão alocar recursos públicos dentro do Sistema para, por exemplo, comprar equipamento, etc. O Inamps tinha um perfil de oferta hospitalocêntrico. Nesse sentido, talvez caiba a comparação porque o programa ‘Saúde na Hora’, que vai receber incentivos financeiros no bojo do novo modelo de financiamento federal da atenção primária, tem o potencial de colocar as equipes de Saúde da Família para desafogar unidades de urgência e emergência e os hospitais. Mas isso não é uma característica da Adaps. Quando a gente fala no Inamps, e esse debate é importante, esquecemos que houve uma privatização do seguro social no Brasil sem precisar do Banco Mundial, como foi o caso na América Latina. Aqui, transformamos o seguro social em seguro privado – algo que parasita muito mais o setor público.

Fonte: Poli, Maíra Mathias – EPSJV/Fiocruz
Publicado em 08/01/2020

Opinião: Sobre o Controle de Preços de Medicamentos

Os gastos com saúde crescem em quase todo o mundo, em particular nos países desenvolvidos, com os Estados Unidos da América na liderança[i]. A maioria das análises mostra que dentre as inúmeras causas desse crescimento está a intensificação da dinâmica tecnológica em saúde, especialmente a alta de preços dos medicamentos[ii].

 

 

Os países que possuem sistemas de saúde universais há muito desenvolveram mecanismos regulatórios para controlar esse aumento de preços que, com o recrudescimento da tendência de alta, em muitos casos estão sendo aperfeiçoados no sentido de controles mais rígidos (p. ex., Reino Unido em 2014[iii] e Canadá em 2020[iv]). Mesmo países sem sistemas universais o controle vem aumentando. Nos Estados Unidos, está para entrar em vigor em 2020 uma Lei que reforça a regulação de preços (Prescription Drug Pricing Reduction Act)[v].  Nos países em desenvolvimento, merecem destaque os esforços da China em controlar os preços dos medicamentos[vi]. No Brasil, o controle de preços teve início em 1999/2000 com a CPI dos medicamentos seguida pela promulgação da Lei dos Genéricos e pela criação da primeira câmara de regulação de preços (CAMED), ambas em 2000 e com a criação da CMED em 2003, que até hoje cumpre essa missão. Essas iniciativas, às quais devem ser adicionadas as farmácias populares (2004, 2007 e 2011 em suas três versões) e a política de desenvolvimento produtivo (2008), foram capazes de reduzir o preço médio dos medicamentos entre 2000 e 2017 em cerca de 20%[vii], com um crescimento significativo do acesso aos mesmos pela população. Essa foi uma trajetória nitidamente anticíclica em relação ao resto do mundo.

Um argumento abundantemente utilizado pelo mundo afora contra a regulação de preços de medicamentos é que as empresas sofrem com ele. No Brasil, pelo contrário. Neste século, com as políticas de controle brevemente mencionadas acima, adicionadas a inclusão social e a expansão da economia em boa parte do período, a indústria farmacêutica esteve entre os segmentos da indústria de transformação que mais cresceram, até hoje resistindo ao desastre observado em outros segmentos a partir de 2014.

As iniciativas de controle de preços dos medicamentos vêm tendo uma trajetória recente acidentada, com a extinção do componente público da Farmácia Popular em 2019, com o congelamento da expansão de seus outros dois componentes (Aqui Tem Farmácia Popular e Saúde Não Tem Preço) e com uma paralisia da política de desenvolvimento produtivo desde 2017. E, para completar a reversão dos mecanismos de controle de preços, avança celeremente uma proposta de eliminar a regulação de preços pela CMED de uma grande parte do mercado de medicamentos no país.

Nas palavras do representante do Grupo Farmabrasil, Reginaldo Arcuri: “Estamos propondo que medicamentos que têm inovação incremental tenham seu preço definido pela própria empresa”. Essa proposta foi objeto de estudo por uma comissão coordenada pela ANVISA com a participação dos Ministérios da Saúde, da Economia e da Justiça e deverá ser objeto de consulta pública em breve. Segundo matéria do Valor Econômico (10/9/2019), o argumento é: ‘“Na [CMED], a análise [para a fixação de preço] não levará em conta o risco assumido pelo laboratório e vai comparar um produto aperfeiçoado a outros que já estão no mercado, resultando em remuneração inadequada, afirma Arcuri. “O que estamos querendo é um jogo de mercado, e não privilégios. Queremos concorrer e ter flutuação de preços’”. Em outra matéria, agora na Folha de São Paulo (18/12/2019), o mesmo executivo afirma: “’O aumento dos preços desses medicamentos não é descartado (grifo meu). No entanto, segundo Arcuri, se a indústria aumentar os valores, terá baixa demanda nas farmácias, já que o consumidor recorrerá ao remédio no formato sem inovação incremental, mas com resultado igual. “O Brasil tem uma inércia de achar que preço de medicamento tem que ser controlado pela vida toda”’.

O conceito mais disseminado de “inovação incremental” foi elaborado pela OCDE e expresso em 1990 no Manual de Oslo. Uma das características da utilização desse conceito são as grandes indeterminação e elasticidade de suas fronteiras. Podem ser focadas em produtos, processos, marketing, design, mudanças organizacionais, etc. Por exemplo, a compra de novo maquinário para um produto é, sim, considerada uma inovação incremental. Aliás, de acordo com a Pesquisa de Inovação Tecnológica do IBGE, esta é mais frequente inovação relatada pela indústria de transformação no Brasil. Mudanças de embalagem são também consideradas inovações incrementais, nesse caso uma inovação de marketing. E por aí vai. Nada sabemos ainda sobre a delimitação que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) vai estabelecer. E, provavelmente, existindo um contraditório entre a interpretação da Anvisa e do fabricante sobre se um produto apresenta ou não uma inovação incremental, abre-se um amplo espaço para novos contenciosos judicializáveis.

Outro aspecto diz respeito a essa suposição (neoclássica) de que o mercado vai regular os preços relativos quando uma empresa lançar um produto “incrementado” já tendo outro(s) “velho(s)” e regulado(s) no mercado. Ora, todo o marketing sobre os prescritores nas farmácias e nos consultórios médicos será, naturalmente, focado no “incrementado” mais caro e a tendência será o fim-de-carreira do “velho”. Tendencialmente, teremos um mercado só com produtos sem regulação de preço. No limite, apenas os produtos protegidos por patentes estarão submetidos ao controle de preços.

Por fim, um comentário lateral, na verdade uma conjectura. Internacionalmente, o tema das inovações incrementais passou a ser exaltado pela Big Pharma como uma justificação da possibilidade de medicamentos resultantes dessas inovações poderem ser patenteados. Essa exaltação alimenta uma das principais estratégias de extensão exagerada do período de proteção patentária (evergreening) pelas multinacionais e tem contra si uma oposição feroz e justificada dos produtores locais. É bem verdade que os temas de patentes e controle de preços são distintos. Mas, não parecerá politicamente contraditório argumentar que produtos oriundos de inovações incrementais sejam não-patenteáveis ao mesmo tempo em que é proposta uma liberalidade para os mesmos quanto ao controle de preços? Em outros termos, ser contra o evergreening de patentes e a favor de uma espécie de “evergreening” de preços?

*Reinaldo Guimarães é médico, vice-presidente da Abrasco e pesquisador do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ

Referências:
[i] https://www.economist.com/business/2019/05/21/the-global-battle-over-high-drug-prices

[ii] https://www.ntu.org/publications/detail/health-care-technology-and-spending

[iii] https://en.wikipedia.org/wiki/Pharmaceutical_Price_Regulation_Scheme

[iv] https://www.theguardian.com/world/2019/aug/09/canada-prescription-drugs-cut-cost

[v] https://www.forbes.com/sites/joshuacohen/2019/10/15/drug-price-controls-gaining-traction-at-federal-and-state-levels/#5ad04d952049

[vi] https://www.asiatimes.com/2019/08/article/china-increases-drug-price-control-measures/

[vii] https://sindusfarma.org.br/arquivos/APRESENTACAO_MARCELA.pdf

Fonte: Abrasco
Publicado em 08/01/2020

Patentes para quê e para quem? A proposta de extinção do INPI e o monopólio ao setor privado

Em artigo, Jorge Bermudez* e Saulo da Costa** discutem as assimetrias e injustiças gerados pelo atual sistema de propriedade intelectual. “Contrapondo saúde e comércio, as patentes de medicamentos e de outras tecnologias podem se constituir em barreiras ao acesso a produtos de saúde. A regulação, tanto sanitária (Anvisa) como de propriedade intelectual e industrial (INPI), tem como finalidade fundamental o respeito a direitos assegurados em nossa Constituição e deve ter lastro na proteção de nossas populações”.

Muitas iniciativas do atual governo não mais espantam, mas certamente causam indignação. A atividade de regulação é própria do Estado e não pode ser entregue ao setor privado, eivado de conflitos de interesses. Contrapondo saúde e comércio, as patentes de medicamentos e de outras tecnologias podem se constituir em barreiras ao acesso a produtos de saúde. A regulação, tanto sanitária (Anvisa) como de propriedade intelectual e industrial (INPI), tem como finalidade fundamental o respeito a direitos assegurados em nossa Constituição e deve ter lastro na proteção de nossas populações.

O atual sistema de propriedade intelectual e nossa Lei de Propriedade Industrial encontram respaldo numa série de compromissos e acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, – podemos destacar a Constituição da Organização Mundial da Saúde, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, resoluções do Conselho de Direitos Humanos da ONU e o Acordo Trips da OMC (Acordo Sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), este último tomado como base para se alterarem as premissas do sistema de propriedade industrial no Brasil, aprovando a Lei 9.279, em 1996, e passando o Brasil a reconhecer patentes de processos e produtos e, consequentemente, ao gerar monopólios, podendo impactar negativamente o acesso a medicamentos sob proteção patentária.

O acesso a medicamentos vem sendo um tema amplamente discutido em foros mundiais, conceituado como o equilíbrio entre a oferta e a demanda de produtos, mas essencialmente contrapondo interesses comerciais a interesses sociais. Esse assunto foi exaustivamente debatido durantes as diversas reuniões do Painel de Alto Nível do Secretário-Geral das Nações Unidas, cujo relatório foi tornado público em setembro de 2016. Com a constatação de que o acesso a medicamentos hoje não é mais um problema restrito a países de renda baixa ou média, o relatório recomenda claramente que os Estados-membros da OMC devem se comprometer em seus níveis políticos mais altos a respeitar a letra e o espírito da Declaração de Doha sobre o Acordo Trips e Saúde Pública, se abstendo de qualquer medida que restrinja sua implementação e uso, com o fim de promover o acesso a tecnologias em saúde.

Fica evidente que as recomendações do Painel de Alto Nível das Nações Unidas implicam fortalecimento das capacidades nacionais da regulação patentária, no caso do Brasil, o INPI. Fica, entretanto, também evidente que nossas autoridades trilham outros caminhos

Concretamente, e mencionando o artigo 27 do Acordo Trips, devem ser adotadas e aplicadas definições rigorosas de invenção e patenteabilidade, assegurando que as patentes somente sejam concedidas quando se produz uma verdadeira invenção. O mandato do Painel de Alto Nível consistia na busca de soluções para as incoerências políticas entre os direitos dos inventores, as prioridades em Saúde Pública, as leis e regulação de direitos humanos e as regras do comércio.

Fica evidente que as recomendações do Painel de Alto Nível implicam fortalecimento das capacidades nacionais da regulação patentária, no caso do Brasil, o INPI. Fica, entretanto, também evidente que nossas autoridades trilham outros caminhos. Em dezembro de 2017, a Comissão Mista de Desburocratização do Congresso Nacional incluiu em seu relatório “agilizar o exame da proposta de alteração legislativa que tem por finalidade instituir um processo simplificado para apreciação da patente sem exame, a critério da parte interessada ou de eventual concorrente, atualmente em estudo na Casa Civil da Presidência da República”. É de estarrecer uma proposta desse tipo e, na ocasião, nos referimos à mesma como crime de lesa-Pátria (ver aqui). Aparentemente, mesmo sendo apoiada por setores do governo, essa proposta não conseguiu o eco necessário, e a discussão não prosperou.

Devem ser adotadas e aplicadas definições rigorosas de invenção e patenteabilidade, assegurando que as patentes somente sejam concedidas quando se produz uma verdadeira invenção

Nestes últimos dias, circulou amplamente a notícia de que o Ministério da Economia estaria propondo a extinção do INPI e a transformação da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial em Agência Brasileira de Desenvolvimento e Propriedade Industrial (ABDPI), incorporando as competências do INPI no formato de Serviço Social Autônomo (ver aqui a nota técnica com proposta de Medida Provisória nesse sentido). Tal proposta, na verdade, vem sendo gestada sem alarde há algum tempo, pois a Nota Técnica é datada de 4/11/2019 e discute Medida Provisória e Lei Ordinária, que remontam a outubro e propõem implementação a partir do primeiro dia do exercício de 2020, para o qual uma série de medidas anteriores se fariam necessárias tempestivamente.

A circulação dessa proposta, a nosso ver, incluída no desmonte que vem sendo implementado nos setores públicos, levou à reação imediata de funcionários do INPI. Põe em risco a excelência do Instituto, reconhecida por instituições congêneres em diversos países, comprometendo a imparcialidade e transferindo as responsabilidades de uma autarquia do Estado para uma entidade com interesses privados. Houve, ainda, notas públicas da Associação dos Juízes Federais do Brasil e Associação dos Juízes Federais do Rio de Janeiro e Espírito Santo, bem como de diversos sindicatos nacionais, lembrando do caráter superavitário do INPI, do seu papel relevante na transferência de tecnologia de outros países e estratégico, no desenvolvimento nacional e relações de comércio exterior.

Para além das questões corporativas, da excelência dos quadros de examinadores de patentes no INPI, a proposta em questão [de extinção] fere interesses nacionais; fere a soberania ao submeter interesses nacionais ao capital internacional; fere direitos humanos ao possibilitar atender a interesses privados e gerar mais monopólios e preços elevados; nega a relevância da regulação como ação estratégica de Estado

Louvamos com destaque a nota pública de repúdio à proposta de extinção do INPI elaborada e divulgada pelo Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), coletivo que congrega diversas organizações da sociedade civil, movimentos sociais e especialistas ligados ao tema da propriedade intelectual e acesso à saúde no Brasil. O GTPI, mais uma vez, posiciona-se oportuna e corretamente em defesa da saúde e contra o desmonte de instituições estratégicas de Estado.

Para além das questões corporativas, da excelência dos quadros de examinadores de patentes no INPI, da necessidade de fortalecer, e não de extinguir, a proposta em questão fere interesses nacionais; fere a soberania ao submeter interesses nacionais ao capital internacional; fere direitos humanos ao possibilitar atender a interesses privados e gerar mais monopólios e preços elevados; nega a relevância da regulação como ação estratégica de Estado.

Cada vez mais, fica evidente a necessidade de reagir com indignação, de argumentar com convicção e lutar contra a precarização de atividades essenciais e estratégicas. A insegurança jurídica que emana desse tipo de proposta compromete ainda mais a respeitabilidade do Brasil no exterior e está muito clara na questão de acesso a medicamentos. O papel do INPI, de qualquer forma, é relevante para muitas outras áreas, como Agricultura, Ciência e Tecnologia, pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação, direitos autorais, entre outros. O retrocesso que uma inciativa dessas vai acarretar não será superado em curto ou médio prazo, mostrando-se mais um desmonte, na contramão do mundo civilizado!

* Jorge Bermudez é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-geral das Nações Unidas

** Saulo da Costa Carvalho é tecnologista do INPI, presidente da Associação dos Funcionários do INPI.

Fonte: Fiocruz
Publicado em 18/12/2019

O que muda (para pior) no financiamento do SUS

Ministério da Saúde ameaça tirar mais de 50% dos recursos de alguns municípios. Unidades Básicas serão financiadas por quantidade de pessoas cadastradas e por “produtividade”. Princípio da universalidade, essencial ao sistema, é ameaçado.

 

 

Primeiro, o que é atenção básica?

A atenção básica à Saúde (ABS) ou atenção primária é conhecida como a porta de entrada dos sistemas de saúde. Ou seja, é o atendimento inicial, o primeiro nível de atenção. Ela oferece desde a promoção da saúde (por exemplo, orientações para uma melhor alimentação) e prevenção (como vacinação e planejamento familiar) até o tratamento de doenças agudas e infecciosas, bem como controle de doenças crônicas, cuidados paliativos e reabilitação. A ABS organiza o fluxo dos serviços nas redes de atenção à saúde, dos mais simples aos mais complexos.

Na sua essência, a atenção básica cuida das pessoas, em vez de apenas tratar doenças ou condições específicas. Ela é baseada na comunidade, ou seja, considera outros determinantes da saúde, como o território e as condições de moradia e trabalho. É o famoso postinho de saúde do bairro, a Unidade Básica de Saúde (UBS). Ela pode atender mais de 80% das necessidades de saúde de um indivíduo ao longo de sua vida.

Como ela era financiada?

O financiamento era composto por um valor fixo (PAB Fixo), corrigido por alguns parâmetros (PIB per capita, percentual da população com plano de saúde, percentual da população com Bolsa Família, percentual da população em extrema pobreza e densidade demográfica), multiplicado por toda a população do município. Além dele, era pago um valor variável (PAB Variável) para estimular a implementação e expansão da Estratégia de Saúde da Família e outros programas, por exemplo, as Equipes de Saúde da Família, Saúde Bucal e Consultório na Rua, Agentes Comunitários de Saúde, dentre outros.

O que muda com a nova portaria?

O novo modelo publicado na portaria 2.979/19, que começa a valer a partir de 2020, busca estimular o alcance de resultados e é composto por capitação ponderada, pagamento por desempenho e incentivo para ações estratégicas. Ou seja, o financiamento será feito a partir do número de usuários cadastrados nas equipes de saúde, com foco nas pessoas em situação de vulnerabilidade social (ao exemplo das que recebem auxílio financeiro do Programa Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada ou benefício previdenciário no valor máximo de dois salários mínimos), pagamento baseado no alcance de indicadores e adesão a projetos do governo federal, como Saúde na Hora, de informatização, dentre outros.

Quais os problemas do novo modelo?

Considerar o conjunto da população é importante para se planejar e implementar estratégias que beneficiam a todas as pessoas. Limitar o financiamento às pessoas cadastradas pode na verdade diminuir a ação do SUS e sufocar ainda mais um sistema que já conta com menos recursos que o necessário, o chamado subfinanciamento crônico.

A restrição de recursos pode prejudicar a ação comunitária, o planejamento territorial e a vigilância em saúde, ações que valem para a população como um todo e vão muito além só das pessoas cadastradas. Como a maior parte das pessoas que usa o SUS é de baixa renda, a proposta é de um SUS para os pobres, ao invés de um SUS para todos.

Com a nova portaria, algumas cidades vão ficar sem mais da metade dos recursos, uma soma que ultrapassa R$ 400 mil. Elas irão perder a única transferência governamental em saúde de base populacional atualmente existente e que pode ser aplicada com autonomia – e isso certamente é um risco para a sustentabilidade financeira do SUS municipal.

E isto é ruim, pois em vez de priorizar estas pessoas, na verdade o que está sendo feito, pouco a pouco, é o desmonte do sistema, considerando que existem diversas medidas em curso que vem asfixiando o SUS. Por exemplo, a Emenda Constitucional 95 de 2016, conhecida como Teto dos Gatos, estabeleceu um limite nas despesas do governo federal, inclusive com saúde. Agora está em discussão no Congresso a Proposta de Emenda Constitucional do Pacto Federativo que prevê a junção dos mínimos a serem aplicados em saúde e educação pelos municípios, gerando uma queda de braços entre estes dois direitos, ao invés de ampliar o recurso para ambos.

Além de outras mudanças na atenção básica: a Medida Provisória 890 ( 2019), aprovada na última semana, que cria o Médicos pelo Brasil, institui uma agência de direito privado, a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), para realizar serviços de responsabilidade do Estado com orçamento público e pode realizar parcerias com a iniciativa privada. Ela teria em seu conselho deliberativo um representante das empresas privadas da saúde, e não do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que conta com a participação dos usuários e dos trabalhadores do setor. É o governo implementando cada vez mais uma lógica de privatização, ao invés do fortalecimento do serviço público. Quer dizer, é dinheiro indo para empresários e não para população, sem a comprovação de que o serviço privado tem melhor desempenho que o público.

O programa Médicos pelo Brasil, substituto do Mais Médicos, prevê ainda contratar médicos em regime CLT, abrindo mão da exigência de residência médica, e focando a estratégia apenas neste profissional e não em uma equipe multidisciplinar. Tampouco prevê a melhoria e construção de UBS. Ainda, o Ministério lançou uma consulta pública para estipular uma carteira de serviços da atenção primária, que, apesar de poder padronizar os serviços entre as diferentes UBS e aumentar a transparência para população, neste cenário de corte de recursos, pode na verdade restringir o serviço, ao invés de ampliá-lo.

Adotar a lógica do desempenho e produtividade, também importada da iniciativa privada, é complicado, pois a saúde não é – ou não deveria ser – mercadoria. Por exemplo, um maior número de atendimentos, mas feitos às pressas, não significa um melhor cuidado aos pacientes. Da mesma forma, cadastrar um número grande de pessoas sem se preocupar com suas reais necessidades em saúde pode comprometer a efetividade da estratégia adotada para aquele território.

Outro problema é a falta de transparência e de participação popular. A apresentação do novo modelo foi feita por slides, sem um documento robusto de embasamento, ou sem detalhar pontos importantes, como quais indicadores serão considerados. Além disto, apesar de ter sido aprovado na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), composta por representantes do Ministério da Saúde e de secretários de saúde estaduais e municipais, não passou pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). A proposta foi apresentada em julho, a portaria publicada em novembro e passa a valer em janeiro de 2020.

Em suma, os princípios do SUS, em especial a universalidade e a participação popular, e sua própria existência enquanto sistema público, são colocados em risco nesse novo modelo.

E por que defender o SUS e seus princípios é importante?

O SUS tem vários problemas, pois não é tarefa fácil criar um sistema gratuito e para todos em um país grande e diverso como é o Brasil. Mas nenhum provedor privado de saúde fornece tantos serviços quanto o SUS, que vai desde a vigilância sanitária, para garantir que a comida do restaurante seja feita com higiene, até cirurgias complexas, como transplantes cardíacos, passando pela produção de medicamentos, gestão de hospitais e unidades de pronto atendimento (UPAs) e oferta de tratamentos de alto custo.

Certamente, há muito a ser melhorado, mas mesmo com uma histórica falta de recursos, o SUS conseguiu resultados importantes, como redução da mortalidade infantil ou o controle e a eliminação de doenças por meio da vacinação. Além disso, por mais que tenha problemas como filas ou demora no atendimento ou marcação de exames e consultas, ele é um sistema ao qual todos os brasileiros podem recorrer, sejam eles pobres ou não, ao contrário do que acontece em outros países, em que os gastos com saúde levam famílias a falência.

O melhor caminho, então, seria aprimorar o SUS – e não limitar ainda mais seu financiamento. A ideia de uma cesta mínima de serviços apenas para populações mais vulneráveis é o que prega a Cobertura Universal de Saúde. Essa corrente é apoiada por organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde e o Banco Mundial. Mas, para nós brasileiros, na prática, essa cobertura restrita significa um retrocesso em relação ao sistema público universal, e em relação ao pacto social na saúde que acordamos na Constituição Federal de 1988.

Usa-se mais uma vez o argumento da escassez de recursos e a lógica da privatização, em vez de se promover o uso máximo de recursos e a realização progressiva de direitos bem como a participação popular, pilares importantes para o uso do orçamento público, registrados na metodologia Orçamento & Direitos do Inesc.

Essa lógica levanta soluções como os planos de saúde acessíveis ou populares. Eles podem até seduzir pela marcação de consulta imediata ou seu preço baixo. Mas se o paciente precisar de respostas mais complexas, por exemplo, uma cirurgia ou um exame mais elaborado, ele fica sem assistência. E com um SUS pequeno e limitado, no fundo, quem não tiver dinheiro não terá para onde correr.

Fonte: Inesc, por Luiza Pinheiro – extraído do Outra Saúde
Publicado em 06/12/2019