Na avaliação do ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, a saúde gratuita para todos, através de um sistema público, é a melhor forma e com menor custo para o país de cuidar das pessoas. Leia artigo publicado em sua coluna na Revista Fórum.
Após o golpe de 2016, O SUS está em risco. O governo golpista de Temer está sucateando nossa saúde pública. Eles fizeram isso ao aprovarem a PEC da Morte, que congela novos recursos por 20 anos para saúde. Além disso, ainda temos a proposta de flexibilizar as exigências e a revisão da lei de atendimentos para os planos de saúde e, agora, as tratativas nada transparentes da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) de aprovação do pagamento de franquia e coparticipação dos planos.
A ideia é que o cliente contrate um determinado valor no plano com uma determinada lista estabelecida de exames e consultas – estão propondo, por exemplo, quatro consultas por ano com médicos generalistas; um teste de glicemia por ano; exame de mamografia a cada dois anos – e, caso haja um evento em que seja necessário utilizar um serviço que não faça parte dessa lista estabelecida, o cliente paga a mais por isso. Ou seja, na verdade, o usuário não sabe o quanto vai gastar com o convênio. Estão tratando saúde como um carro: para acionar o seguro, só pagando franquia.
Em 2018, completamos 30 anos da nossa Constituição e, com ela, o trigésimo aniversário do SUS, uma das políticas mais importantes e ousadas já aplicadas no país, criado com a concepção de garantir saúde universal e gratuita, sendo um direito das pessoas e dever do Estado.
O SUS, com todos os problemas que tem, significou incluir mais de 60 milhões de brasileiros que não tinham acesso à saúde. Antes dele, a saúde era segmentada e proporcionada pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), no qual os atendimentos eram restritos aos cidadãos que contribuíam com a previdência social, ou seja, só quem tinha direito à saúde era quem possuía carteira assinada.
Nessa época, ocorreram diversos acontecimentos que mostram o risco de quando o dinheiro move a saúde, como, por exemplo, a contaminação generalizada de diversas doenças – HIV, Hepatites, entre outras – através dos bancos de sangue, já que não havia regulação pública na época. Além dos escândalos denunciados, como enriquecimento através de fraudes em internações hospitalares e consultas. E, também, da “teoria” de cuidar de doenças e não da saúde das pessoas.
Nesses 30 anos, o SUS ajudou na forte redução da mortalidade infantil, chegamos a mais de 90% das mulheres que passaram a ter os partos em ambientes hospitalares, redução da incidência da tuberculose, criamos o maior programa de combate à Aids, o programa de transplantes – sendo o maior público e gratuito do mundo -, o atendimento de saúde bucal, o programa Saúde da Família – que teve um grande impulso com o Programa Mais Médicos -, que hoje atende mais de 60% da população brasileira, entre tantos outros avanços.
Tenho orgulho de, ao longo da minha vida, ter lutado por um SUS de mais qualidade. Desde que era estudante de medicina, quando participei da luta da derrubada dos vetos, no governo Collor, da criação da Lei Orgânica do SUS. Já médico residente em infectologia, participei da luta contra a Aids e do acesso universal e gratuito no SUS. Quando coordenei o grupo de medicina tropical da USP, no interior da região amazônica, participei da sua construção junto às comunidades indígenas e ribeirinhas, para os desafios de um sistema de saúde para a dimensão daquela região.
Fui ministro da Saúde e secretário de Saúde da maior cidade do país e pude colaborar com a criação de diversas políticas públicas já citadas.
Apesar disso, ainda há muitos desafios a serem superados. O principal deles é o pouco investimento em saúde pública. Além disso, até hoje, não ficou claro qual é a relação do setor público e os vários interesses privados em cima do SUS, o que faz com que eles ganhem muito dinheiro às custas do sistema.
No fim das contas, é o seguinte: com o SUS sucateado, as pessoas usarão todas as suas economias para pagar por um plano de saúde e, caso haja uma eventualidade que o plano não cobre, a pessoa paga a mais para ter o atendimento.
Os planos de saúde já tentaram lucrar muito com o SUS e isso está vindo à tona meses depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) determinar, por unanimidade, conservar a lei que obriga os planos a ressarcirem o SUS nos atendimentos realizados a seus clientes em toda a rede pública do país.
Significando que quando uma pessoa que tem plano de saúde é atendida no setor público, a ANS deve notificar as operadoras para que elas realizem os pagamentos dos procedimentos médicos em até 15 dias. A Lei nº 9.656/1998, dessa obrigatoriedade, era contestada pelos planos.
Há um jogo combinado no governo Temer que garante o favorecimento do setor privado, do mercado financeiro, e é triste ver o mesmo congresso que criou o SUS, com os atuais deputados e senadores, permitir essa tragédia. A impressão que tenho é que não temos mais parlamentares que defendam a saúde pública.
Nenhum país no mundo, com a dimensão do nosso, assumiu como desafio fazer com que a saúde seja um direito das pessoas, que é fruto de um movimento da Reforma Sanitária, um projeto ousado e uma conquista da classe trabalhadora.
A saúde gratuita para todos, através de um sistema público, é a melhor forma e com menor custo para o país de cuidar das pessoas, para reduzir as desigualdades e também gerar uma atividade econômica desenvolvimentista.
Fonte: Revista Fórum
Publicado em 10/05/2018
Reforma Trabalhista já afeta gravemente saúde de trabalhadores, avalia CNS
As mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovadas pelo Congresso Nacional em 2017, já estão em vigor há seis meses. As consequências para a saúde de trabalhadores e trabalhadoras diante da reforma foram debatidas na tarde desta quarta (09/05), em Brasília, durante a 305ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Na avaliação de conselheiros e conselheiras, a população trabalhadora vem sendo afetada gravemente com a precarização do regime de trabalho.
Os proponentes das mudanças alegavam, diante da crise econômica, que a reforma faria com que os patrões contratassem mais, gerando mais empregos. Porém, a taxa de desemprego e a informalidade só aumentaram nos últimos meses. Entre dezembro de 2017 e fevereiro de 2018, o país registrou 12,6% no índice de desemprego, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É o pior nível desde 2012. Ao todo, são cerca de 13,1 milhões de brasileiros desocupados. “Há pessoas cumprindo jornadas de doze horas, é inconstitucional”, disse Jorge Alves Venâncio, da Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB).
Dentre as mudanças, a reforma flexibilizou inclusive o trabalho em condições insalubres para grávidas e lactantes. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a cada dez acidentes de trabalho, oito são de terceirizados. Maria das Graças Costa, representante da Central Única dos
Trabalhadores (CUT), alertou que o controle social continuar agindo contra os retrocessos. “Não podemos baixar a cabeça, o CNS tem força para atuação política. O
impacto na nossa vida é grande, está afetando a saúde e a segurança no trabalho”, disse.
O conselheiro Cláudio Ferreira do Nascimento, da Federação Interestadual dos
Odontologista (FIO), também criticou as mudanças na lei. “Quem aprovou essa reforma é contra o aborto, mas não é contra colocar mulheres grávidas em condições insalubres”, criticou. A conselheira Maria Laura, diante da alegação de inconstitucionalidade de alguns pontos da reforma, frisou a necessidade de colocar o debate novamente na rua para pressionar os presidenciáveis. “Se não barrarmos a
reforma, vamos ter reflexos negativos na vida das pessoas”, destacou.
Outro ponto criticado é que os trabalhadores agora tiram férias fragmentadas durante o ano, impossibilitando repouso de trinta dias seguidos. “Muitos trabalhadores estão inseguros, trabalhando para conseguir usar o salário para comer enquanto estão em serviço. É uma situação praticamente de trabalho escravo. Gera stress, tensão e adoecimento”, disse Elgiane Lago, representante da Central dos Trabalhadores e
Trabalhadoras do Brasil (CTB).
Guilherme Guimarães, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), destacou os riscos químicos, biológicos, ergonômicos e
psicossociais para os trabalhadores diante da precarização do trabalho. ”Foram só quatro meses de tramitação de um projeto aprovado às pressas. Merece muitas críticas pela falta de discussão com a sociedade”.
Guilherme mencionou a votação que está ocorrendo hoje no Supremo Tribunal Federal (STF). O debate pode barrar o item da lei referente ao acesso à justiça, que é
Fonte: Susconecta dificultado para os trabalhadores. “O rigor com o trabalhador é maior que num processo civil, é inconstitucional”, disse. Conselheiros e conselheiras decidiram, por unanimidade, que o CNS deve publicar recomendação ao STF para que o órgão acate vinte e uma ações de inconstitucionalidades que já tramitam na casa contra a reforma.Publicado em 10/05/2018
Temer quer liberar a venda de remédios em supermercados
Nesta segunda-feira (07), Michel Temer disse que estuda a possibilidade de liberar a venda de medicamentos sem prescrição em supermercados. Para o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Ronald Ferreira dos Santos, esse anúncio reafirma que Temer trata a questão da saúde como um negócio. Problemas como o incentivo da automedicação e transformação de medicamentos em um produto como qualquer outro são apontados como impasses para essa mudança na comercialização.
A pedido do presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), João Sanzovo Neto, o presidente Michel Temer afirmou que vai avaliar uma proposta para autorizar supermercados a venderem medicamentos isentos de prescrição médica. O anúncio aconteceu nesta segunda durante evento da Associação Paulista de Supermercados, o Apas Show. “Levarei em conta essa proposta de tentar vender aqueles medicamentos que não exigem prescrição médica, vou examinar esse assunto”, disse Temer a uma plateia de empresários do setor.
Para o farmacêutico, presidente da Fenafar e do Conselho Nacional de Saúde, Ronald Ferreira dos Santos, essa proposta é “um verdadeiro absurdo”. Para ele, a questão central, independente do remédio ter ou não prescrição, e de que ele não é isento de efeitos colaterais e para sua utilização é necessário respeitar minimamente alguns critérios de segurança, os quais cabe ao estabelecimento vinculado à saúde, ou seja, a farmácia nesse caso. Ele ressalta, ainda, que o aumento da automedicação e o não acompanhamento de um profissional adequado para a venda dos medicamentos são as consequências dessa medida. Dados mostram que o uso inadequado de medicamentos figura entre os principais casos de intoxicação registrados no país.
“Essa medida vai justamente na direção contrária a tudo que estava se construindo ao longo dos últimos anos na sociedade brasileira, ou seja, de desconstruir a lógica de que o medicamento é um insumo garantidor da saúde da pessoa e mostrar que ele é um componente do direito e acesso à saúde. O principal ataque dessa proposta é ir colocando medicamentos como um produto qualquer e, ao cabo, pode ter como consequência um conjunto de outras políticas de restrição e diminuição no acesso porque substitui a lógica do direito pela lógica do mercado pela lógica do produto, do mercado. “Temer não está com a saúde, está com o negócio”, explicou em entrevista.
Já o professor de saúde pública da Unesp de Araraquara, Rodolpho Telarolli Junior, acredita que não haverá grandes mudanças se a essa venda for limitada apenas aos medicamentos estão dentro da categoria OTCs (over-the-counter que significa sobre o balcão em inglês), como medicamentos para dor de cabeça, sais de fruta e alguns antialérgicos, ou seja, que já são vendidos sem prescrição nas farmácias.
Pelo lado econômico, Rodolpho Telarolli avaliou que isso impactaria mais na competição entre dois ramos do comércio, as redes de farmácia e as redes de supermercados. De toda forma, ele apontou que a possibilidade de automedicação deve ser um fator de preocupação na área da saúde. “É evidente que se você deixar o medicamento para o cliente se servir sem a intervenção do farmacêutico você estimula a automedicação, mas são produtos de baixa periculosidade”, afirmou o professor.
Já Ronald Ferreira dos Santos discorda. Para ele, “é importante destacar que o fato de não ser um medicamento prescrito não é isento de efeitos colaterais, de danos à saúde, porque é a clássica frase: ‘A diferença entre o remédio e o veneno está na dose’, tendo ou não prescrição”.
Não é a primeira vez que varejo e a indústria farmacêutica tentam, através de forte lobby junto ao governo e ao Congresso, comercializar medicamentos isentos de prescrição em supermercados. No governo Fernando Henrique Cardoso houve essa tentativa. Em 2012, a então presidente Dilma Rousseff vetou a venda de medicamentos em supermercados pelo grande risco de estimular a automedicação e uso indiscriminado. Além da dificuldade do controle sobre a comercialização dos produtos. Sempre atenta, a Fenafar atuou em conjunto com outras entidades para garantir que tais propostas fossem aprovadas e o veto da presidenta naquela ocasião.
Da redação com Vermelho
Publicado em 10/05/2018
Manaus sedia 13º Congresso Internacional da Rede Unida
Com o tema “Faz escuro, mas cantamos: redes em re-existência nos encontros das águas”, o Congresso da Rede Unida movimentará a agenda científica do País com a participação estimada de 3.000 congressistas e convidados nacionais e internacionais. O evento será sediado no campus da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), no período de 30 de maio a 02 de junho de 2018, em Manaus (AM).
O Congresso tem como finalidade propor o debate em torno da saúde, da educação, da arte e cultura, da participação cidadã, da gestão e do trabalho em saúde na perspectiva do fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). O público-alvo é composto por trabalhadores da saúde, usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), pesquisadores, estudantes, professores, gestores e representantes de movimentos sociais.
A expectativa do presidente desta edição do Congresso, Rodrigo Tobias, é que os participantes vejam que a Região Amazônica não é somente o lugar da distância, da dificuldade, da falta de acesso, o lugar das carências e das doenças. “Esperamos que esse evento possa deixar nos congressistas a ideia de que a Amazônia também é um lugar de potencialidades, de produção de saúde, de vida, com suas especificidades. O nosso desejo é que os participantes reservem sua participação nesse congresso e desfrutem de tudo o que vai acontecer. Estamos trabalhando muito para que tudo saia bem”, declarou Tobias.
Atividades Internacionais
As atividades internacionais incluem cinco fóruns, que fomentam debates sobre temas da atualidade em relação à gestão da educação e do trabalho em saúde na perspectiva de diferentes países. Trata-se do V Fórum Internacional de Educação na Saúde, com a temática “Interprofissionalidade na formação e no trabalho em saúde: desafios às políticas e ao cotidiano”; do IV Fórum Internacional de Participação em Saúde, Políticas Públicas e Educação Cidadã, com o tema “A vitalidade da democracia quando as instituições padecem: a resistência cidadã como artesania de novos tempos”; do V Fórum Internacional de Atenção Básica/Primária em Saúde, com o tema “A atenção básica/primária nos sistemas de saúde universais: desafios e avanços após 40 anos de Alma Ata”; do IV Fórum Internacional de Cooperação em Saúde e Políticas Públicas, com o tema “Direitos humanos, políticas públicas e inclusão em tempos de austeridade: repercussões na gestão da educação e do trabalho na saúde”; e do I Fórum Internacional de Saúde do Migrante, com o tema “A dignidade e a saúde das pessoas em tempos sombrios: as fronteiras nacionais e a afirmação de direitos humanos”.
Trabalhos submetidos
Esta edição no Amazonas fechou com o número de 3.420 submissões de trabalhos nacionais e internacionais. Realizado pela primeira vez no Norte do País, a região foi a que mais teve trabalhos submetidos, totalizando 1.652 submissões com destaque aos estados do Amazonas e Pará, com 913 e 641 trabalhos inscritos, respectivamente. A região Nordeste ficou em segundo lugar com 628 trabalhos. Já o Sudeste figurou em terceira posição com 383 submissões. As regiões Sul e Centro-Oeste do Brasil tiveram 298 e 165 trabalhos submetidos, respectivamente. Da participação internacional, a Itália submeteu três trabalhos.
Nos congressos da Rede Unida são aceitos trabalhos para apresentação oral nas modalidades Távolas e Rodas de Conversa. Para os organizadores, o volume de trabalhos submetidos e aprovados aponta um Congresso com grande densidade técnico-científica, além da enorme diversidade de temas e de experiências locais que compõem uma programação atrativa para diferentes públicos.
Confira a programação de apresentação dos trabalhos
Inscreva-se e participe das atividades
Instituições parceiras
São parceiros desta edição a Empresa Estadual de Turismo do Amazonas (Amazonastur), Conselho Nacional de Saúde (CNS), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Ministério da Saúde (MS), Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), Fundação Municipal de Cultura, Turismo e Eventos (Manauscult), Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS), Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Secretaria de Estado da Cultura (SEC), Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), Secretaria Municipal de Educação (Semed), Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Amazonas (Cosems-AM) e ILMD/Fiocruz Amazônia, co-organizador do Congresso.
Informações
Agência Rede Unida de Comunicação, por Mirinéia Nascimento (Ascom/Rede Unida)
Contato com a imprensa: (92) 9884-46075 | [email protected]Fonte: SUSConecta
Publicado em 08/05/2018
Ainda as patentes: Soliris, monopólios ou acesso?, por Jorge Bermudez*
Enquanto setores do governo federal, com sua base de apoio no Congresso Nacional, gestam um projeto para desregulamentar a análise pelo INPI [Instituto Nacional de Propriedade Industrial] e aprovar a concessão de patentes sem o necessário rigor e análise, contrariando dispositivos constitucionais e legais, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), atendendo solicitação da Advocacia Geral da União (AGU), toma a surpreendente decisão de quebrar a patente do medicamento Soliris (eculizumab), para tratamento da hemoglobinúria paroxística noturna – doença grave, que onera o SUS em mais de 600 milhões de reais anualmente para tratamento de cerca de 400 pessoas.
Queremos analisar esses dois fatos para além de seus significados isolados, em função do impacto no acesso a medicamentos, questão que se encontra hoje em discussão em todos os grandes foros mundiais que lidam com a saúde coletiva e os direitos humanos. Por um lado, o Congresso Nacional estabeleceu, em 2016, a denominada Comissão Mista de Desburocratização, que apresentou e aprovou seu relatório no último mês de dezembro. Ao lado de questões como ambiente de negócios no Brasil, simplificação das normas para abertura e fechamento de empresas, regras aplicáveis aos serviços notariais e de registro, empresas de responsabilidade limitada, separação, divórcio e união estável, entre outros, foi incluído o ponto denominado Redução do tempo necessário para a concessão de patentes. Sob a alegação do estoque atual de patentes aguardando exame, do ingresso anual de cerca de 30 mil novos pedidos e da capacidade atual do INPI, destacando-se a necessidade de contratação de examinadores de patentes e o não contingenciamento de recursos, é feita a proposta de instituir um processo simplificado para apreciação de patentes sem exame. Essa proposta violenta o papel do INPI e atenta contra nossos marcos regulatórios e tratados internacionais, no que poderia configurar, além de atentado a nossa soberania nacional, um crime de lesa-pátria.
Se hoje mais da metade dos pedidos de patentes são indeferidos e a grande maioria se origina de inventores ou empresas de capital estrangeiro, estaríamos entregando nossa soberania, nossa responsabilidade perante a população e abrindo nosso mercado, ainda mais, ao capital estrangeiro, eivando-o de monopólios equivocados, com produtos que não trazem inovação, mas que passam a reinar sem concorrência, e, portanto, coibindo o acesso de contingentes populacionais a eles. Entre as recomendações da Comissão consta “agilizar o exame da proposta de alteração legislativa que tem por finalidade instituir um processo simplificado para apreciação de patente sem exame, a critério da parte interessada ou eventual concorrente, atualmente em estudo na Casa Civil da Presidência da República”.
Em nossa avaliação, essa proposta inclui-se nas atuais práticas do governo em promover o desmonte do setor público e retroceder em questões relevantes quanto à soberania nacional e defesa de interesses públicos.
Para nossa surpresa, decisão do Superior Tribunal de Justiça [ver aqui], pouco divulgada nos meios de comunicação, permite revogar a patente do medicamento Soliris, com base na argumentação de que patentes registradas entre as datas da assinatura do Acordo Trips da OMC e a entrada em vigência da nossa legislação de propriedade industrial, em 1996, já superaram os 20 anos de exclusividade e monopólio que representa a propriedade intelectual. Mais interessante ainda, entre as ponderações da AGU, foi incluída a consideração aos interesses da saúde pública, o que nos permite antever que outros produtos em condições similares também deverão ser analisados e abrir as possibilidades de competição genérica e trazer preços e condições que tornem determinados medicamentos acessíveis às populações que deles necessitam.
Recomendações recentes das Nações Unidas e da OMS advogam que os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) devem adotar definições rigorosas na invenção e na patenteabilidade que restrinjam o evergreening e que assegurem que as patentes concedidas atendam aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Caso o Poder Executivo teime em aprovar patentes com deferimento sumário sem exame, estará jogando por terra critérios consensuados mundialmente; estará trilhando um caminho sem volta de submissão a pressões e interesses que irão representar verdadeiramente uma ponte para o passado.
De outro lado, o precedente aberto pela AGU e pelo STJ apontam para as possibilidades de avançar em recomendações de utilizar as flexibilidades ou salvaguardas que o Acordo Trips estabeleceu, quais sejam, as licenças compulsórias e o uso governamental, com o objetivo de assegurar políticas públicas que incluam o acesso a medicamentos como parte do direito à saúde e em direção ao cumprimento da agenda 2030.
Para onde vai caminhar o Brasil? Cabe, em nome da cidadania, mudar esse quadro de dependência e construir um Brasil includente, que elimine nossas enormes iniquidades, e reconstruir o que está sendo desmontado, numa sanha sem limites.
*Jorge Bermudez é médico e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz); membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-Geral das Nações Unidas.
Fonte: Agência Fiocruz
Publicado em 07/05/2018
O lucro acima da saúde, por Aristóteles Cardona Júnior
Caminha a passos largos no Senado o Projeto de Lei que extingue o uso obrigatório do símbolo que identifica a presença de produtos transgênicos em rótulos de produtos alimentícios.
Tal identificação é mais reconhecida por seu selo em formato de triângulo amarelo, com a letra ‘T’ no meio, e começou a ser utilizada em 2003. No momento, o Projeto já foi aprovado na Câmara e passa por discussão em comissões no Senado, até ser levado a plenário. Se aprovado, será encaminhado para sanção presidencial.
Impressiona como o Brasil parece rumar no sentido contrário do que apontam várias evidências da comunidade científica mundial. Na verdade, muitos países já não permitem sequer o plantio de plantas geneticamente modificadas. Enquanto isso, parte dos congressistas e do governo brasileiro não somente defende os transgênicos, como agora quer retirar da população o acesso à informação acerca de determinado produto conter ou não substâncias geneticamente modificadas.
Percebam que ainda não falei sobre os potenciais malefícios desses produtos. Estou falando apenas do mais básico: o direito à informação. Sobre os possíveis riscos à nossa saúde, nem se fala. Até mesmo setores que se beneficiam economicamente com o uso de transgênicos e agrotóxicos têm muita dificuldade de defender o uso destes. Em geral, os argumentos são de que informações como estas tiram competitividade no mercado mundial. Mas nem uma palavra sobre a garantia da saúde de quem consome.
Por esses dias, também estará em votação uma série de mudanças que alteram o controle que temos hoje sobre o perigoso uso de venenos em nossas plantações. Tais mudanças já receberam o nome de ‘Pacote do Veneno’ e pretendem intensificar o atual estágio de contaminação já presente em nossos alimentos.
Muito mais do que uma discussão ideológica, estamos falando de uma série de mudanças que põem em sério risco a saúde da nossa população. Para o governo e congressistas ligados ao agronegócio, parece estar presente apenas a preocupação com o lucro das grandes empresas. Cabe a nós o posicionamento contrário a essas mudanças e a exigência de uma alimentação saudável e que não imponha riscos desnecessários. O lucro das grandes empresas não deve ser colocado à frente da saúde da população brasileira. Nossa saúde deve estar em primeiro lugar.
Fonte: Brasil de Fato
Edição: Monyse Ravenna
STJ atende a pedido da AGU e quebra patente do medicamento Soliris
A Advocacia-Geral da União (AGU) obteve, na Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), decisão unânime que permite a quebra da patente do medicamento Soliris, indicado para o tratamento de Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN), rara doença que afeta o sistema sanguíneo.
A decisão do STJ abre caminho para a produção do país do genérico do medicamento – o princípio ativo dele é o eculizumab -, por um preço mais acessível. Atualmente, o Soliris não é vendido em farmácias, sendo disponibilizado apenas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Até meados do ano passado, uma única unidade do medicamento custava 21,7 mil reais. Em 2016, o SUS gastou 613 milhões de reais com a compra do medicamento, que foi utilizado para tratar 442 pacientes diagnosticados com Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN).
Essa enfermidade destrói os glóbulos vermelhos do sangue, causando anemia, fadiga, dificuldade de funcionamento de diversos órgãos, dores crônicas, urina escura, falta de ar e coágulos sanguíneos.
No STJ, segundo a assessoria do órgão, a AGU defendeu que patentes de medicamentos e de produtos químicos registradas entre janeiro de 1995 e maio de 1996 (caso do Soliris) já expiraram, o que possibilita a concorrência de genéricos. O intervalo se refere ao período entre a assinatura de acordo internacional de proteção à propriedade intelectual (TRIPS, na sigla em inglês) e o início da vigência da legislação brasileira de propriedade industrial.
Os procuradores federais que atuaram no caso também sustentaram que a Constituição define claramente que o direito do inventor ao monopólio econômico da patente é privilégio temporário.
A AGU ponderou, ainda, que a análise do caso também deveria levar em consideração a saúde pública. O órgão levou ao STJ o exemplo de um único paciente que precisava de seis frascos do remédio por mês para evitar os sintomas da doença e que, por isso, chegou a custar para o SUS quase 1,5 milhão de reais em um ano.
Segundo os procuradores federais, o caso Soliris foi apenas o primeiro a ser julgado pelo STJ. Diversos outros medicamentos na mesma situação já estão com suas patentes expiradas ou próximas de expirar, o que significa que em breve serão enquadrados na legislação do medicamento genérico.
Fonte: Reuters
Publicado em 25/04/2018
Empresários querem um SUS conveniente aos seus interesses
Em entrevista à Fiocruz, o vice-presidente da Abrasco, José Sestelo, fala das propostas do setor privado para criar um novo sistema de Saúde. A ideia foi lançada em evento promovido pela Federação Brasileira de Planos de Saúde, e causou um rebuliço entre as entidades do Movimento Sanitário Brasileiro. Não sem razão.
Em meio a um cenário de desmonte das políticas sociais como um todo, e às políticas de saúde especificamente, a proposta de construção de um “Novo Sistema Nacional de Saúde”, ainda mais partindo de uma entidade representativa do setor empresarial, foi vista como um ataque direto ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Acontece que a proposta não é novidade. Quem diz isso é José Sestelo, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Nessa entrevista, ele explica por que ficou surpreso com a reação suscitada pelo evento da Febraplan, entidade recém-fundada, cujas propostas não trazem nada de novo em relação à agenda que as entidades empresariais da saúde vêm defendendo e promovendo desde pelo menos 2013. Esse foi o ano de publicação do chamado ‘Livro Branco da Saúde’, encomendado pela Associação Nacional dos Hospitais Privados (ANAHP) a uma empresa de consultoria espanhola para propor mudanças no sistema de saúde brasileiro. Mudanças que, segundo ele, tenderiam a aproximar o sistema de saúde brasileiro ao dos Estados Unidos, onde o sistema público só atende aos muito pobres e aos idosos, e onde o gasto em saúde em relação ao PIB é o maior do mundo, chegando a 18%.
Nesta entrevista ao jornalista André Antunes da Escola Politécnica Joaquim Venâncio/Fiocruz, Sestelo defende que o Movimento Sanitário precisa se apropriar das propostas que têm sido defendidas pelos empresários da saúde, até para que consiga pautar sua ação política na defesa dos princípios que regem o SUS.
Gostaria que você falasse sobre a entidade que organizou o evento dessa semana, a Febraplan. A quem ela representa? Qual foi o objetivo dela com o evento?
A Febraplan é uma associação nova, fundada há pouco tempo. Se você entrar no site dela vai ver que ele tem muito pouco conteúdo atualmente, dá impressão que é um site fantasma. Seu presidente chama-se Pedro de Assis, que é o dono de uma empresa de planos de saúde de médio porte com sede em Joinville, em Santa Catarina, que é a Agemed. Essa empresa surgiu inicialmente aninhada da Tubos e Conexões Tigre, também de Joinville. A Agemed surgiu inicialmente como autogestão, ou seja, privativa para os funcionários da Tigre, e depois se tornou uma empresa que vende planos de saúde para a população em geral. A Agemed então iniciou um processo de expansão comercial das suas atividades e a nossa interpretação é que ela em algum momento encontrou dificuldades de expansão em função da concorrência com outras empresas, como por exemplo, a Hapvida, que tem sede no Ceará e está se expandindo muito. A Hapvida está prestes a fazer uma oferta pública de ações em Bolsa. É uma empresa que tem muita influência no governo, na Abramge [Associação Brasileira de Planos de Saúde], nas associações empresariais. Então, a Agemed e o Pedro de Assis partiram para uma estratégia de cavar o seu próprio espaço através da constituição dessa nova associação, que é inexpressiva. Ela não tem uma representatividade muito grande no meio empresarial, mas pretende ter. E esse evento do dia 10 na verdade é um exemplo dessa estratégia de marketing, de promoção, de expectativa ou perspectiva de crescimento da Agemed e da Febraplan, e que acabou tendo a meu ver uma repercussão muito maior do que deveria, dado o seu conteúdo e os seus participantes.Quem foram os participantes?
Eu não assisti, não participei do evento, nem acompanhei depois. Mas o que eu vi foi o cartaz anunciando. O que tinha lá? O Alceni Guerra, que é ex-ministro da Saúde do governo Collor. Na minha opinião, um dos piores ministros da Saúde que o país já teve, mas uma figura conhecidíssima no meio empresarial e entre os gestores de saúde, em geral.O que seria essa pauta do Novo Sistema Nacional de Saúde?
Isso também não é novidade. O que me espanta é que entre nós, sanitaristas, gestores, pessoas que trabalham, pesquisam políticas de saúde, isso seja encarado como uma novidade . Não é. Essa pauta empresarial vem sendo veiculada publicamente há vários anos. Acho que um dos principais instrumentos de divulgação disso foi o chamado ‘Livro Branco da Saúde’, que foi publicado na época das eleições majoritárias, em 2013. Esse material foi elaborado por uma empresa de consultoria chamada Antares Consulting, sediada na Espanha, que foi contratada pela ANAHP, que é a Associação Nacional de Hospitais Privados. Na verdade a expertise dessa empresa é consultoria de gestão de hospitais e pequenos sistemas de saúde. Entretanto, ela se arvorou a fazer uma prescrição, uma proposta, para um sistema de saúde de um país como o Brasil, de 200 milhões de habitantes. Algo completamente fora da capacidade cognitiva de uma empresa como essa. Mas foi um trabalho encomendado pela ANAHP. A empresa recebeu e fez esse trabalho, que foi apresentado como se fosse algo com conteúdo acadêmico. Há um livro que seriam as bases teóricas e outro como um caderno conceitual. Na minha opinião, um trabalho sem nenhuma substância. Mas isso foi veiculado, distribuído entre os diversos candidatos, não só a Dilma ou os candidatos à presidência, mas também candidatos a governador e outros cargos majoritários. Então, esse conteúdo já estava ali, e depois continuou sendo desdobrado. Teve a Coalizão Saúde, o Colégio Brasileiro de Executivos da Saúde, com variações sobre o mesmo tema. Existe uma estratégia retórica de se utilizar esse termo – Sistema Nacional de Saúde – não diria que em oposição ao SUS, mas quase como uma ressignificação para o que a gente chama de SUS. Porque os empresários não querem a extinção do SUS, eles querem o SUS que seja conveniente aos seus interesses, como de fato tem sido. Mas eles querem ainda mais.Por exemplo?
Essencialmente é tornar o SUS um grande resseguro, ou seja, tudo aquilo que não for comercialmente interessante para os empresários teria algum tipo de cobertura financiada pelo orçamento público. Os casos típicos são as condições crônicas, terapia renal substitutiva, transtornos de comportamento, enfim, condições em que o usuário recorre ao sistema de maneira frequente, em que ele não vai se curar, vai viver com aquilo. Essa é a visão. Aí tem outros aspectos que se relacionam, por exemplo, com a gestão de sistemas. Hoje em dia os esquemas financeiros de empresas ditas não lucrativas têm se expandido na área de gestão, tanto de microgestão, de unidades assistenciais, como de redes municipais inteiras. Em Uberlândia agora está acontecendo isso. E em outras cidades. São empresas que em tese são não lucrativas, mas esses mecanismos entram por contratos e depois têm o seus termos aditivos que vão acrescentando elementos em cima daquilo que foi contratado inicialmente e isso se torna uma bola de neve praticamente sem controle.Recebemos um relato de uma pessoa que participou do evento que falou que a apresentação se resumiu a queixas das entidades representantes do setor sobre o “papel regulador estatizante” da ANS e a defesa do fortalecimento do Conselho Nacional de Saúde Suplementar (CONSU). Alceni Guerra propôs como meta para o ano de 2038 uma cobertura de 50% da população por planos privados que, segundo ele, reduziria o preço dos planos e faria com que boa parte da população que utiliza o SUS migrasse para eles. Assim, sobrariam mais recursos para os usuários do SUS.
Alguma novidade nessa pauta, na sua visão?
Essa pauta está colocada já há bastante tempo. Obviamente que agora as condições conjunturais, políticas, institucionais, são favoráveis à pauta empresarial, mas não que ela seja uma novidade. Espanta que o pessoal esteja tão assustado com isso. Isso vem transcorrendo já há bastante tempo. Agora, existe um argumento que você mencionou aí, que eu acho que merece ser analisado com mais detalhes. E esse argumento é uma panaceia que é apresentada pelos empresários há muitos anos e também em parte foi incorporado pelos que defendem o sistema público, que é de dizer que quanto mais pessoas têm planos de saúde melhor para o SUS, porque alivia as contas do SUS. E nós consideramos que esse é um argumento falacioso. Inclusive historicamente sabemos que ele foi construído no seio da Abramge, na década de 1970, quando a Abramge ainda era algo como a Febraplan é hoje, uma associação que lutava para se legitimar, para ser reconhecida, para ter espaço institucional. Então esse foi um dos primeiros argumentos construídos para convencer as autoridades da época de que era vantajoso do ponto de vista orçamentário abrir espaço para essas práticas de intermediação comercial da assistência, porque isso iria aliviar o orçamento público. Ora, o que acontece de fato? É um raciocínio óbvio. A intermediação em geral representa um aumento do custo de transação do sistema. Você introduz uma transação comercial, ou várias, a mais, no custo geral. Seguindo esse ritmo, com você aumentando a quantidade de transações, aumentando os níveis de intermediação, o que vai ocorrer? Algo semelhante ao que acontece atualmente nos Estados Unidos, onde o gasto em saúde como porcentagem do PIB foge à média mundial: eles estão com 18%, e tendendo a 20% do PIB de gastos em saúde, quando a média mundial gira em torno de 10%. Sem que com isso eles tenham uma condição sanitária superior. Ou seja, países de mesmo nível de renda, com gasto proporcional menor, têm condição sanitária superior a dos Estados Unidos. Então, qual é o risco que nós corremos aqui se formos nessa balada? Nós vamos ter no Brasil um aumento do gasto proporcional em saúde em relação ao PIB, ou seja, vamos aumentar essa despesa, o sistema vai ficar mais caro, e vai ficar mais excludente, mais regressivo, vai excluir as pessoas que não podem pagar e concentrar os serviços naqueles que podem pagar, tornando-se mais injusto ainda do que é. Essa é a visão que eu tenho em termos estruturais. E as pessoas estão falando isso como se fosse algo óbvio. Não é isso. Quanto mais pessoas têm planos de saúde, pior para quem não tem, inclusive porque quem tem é beneficiado com renúncia fiscal. Mas não só por isso, e também porque aumenta os custos gerais de transação do sistema, e resulta no final que o sistema fica mais caro sem ser mais efetivo.Quais os principais atores políticos de promoção dessa agenda empresarial hoje?
O que eu percebo é que há cada vez mais – e é como o próprio Pedro de Assis e a Febraplan chamam – um sistema multimodal. Eles estão querendo fazer uma discussão que envolva diversos setores, os prestadores hospitalares, os intermediadores que são as empresas de planos e seguros de saúde, os fabricantes. Enfim, eles querem uma discussão em conjunto com toda essa cadeia produtiva do setor. Mas é uma discussão em conjunto sob a perspectiva de quem quer auferir lucro. Então isso, para mim, parece muito mais uma articulação na tendência de uma cartelização, do que na tendência de fazer prevalecer a lógica do interesse público, que é inclusive o que constitucionalmente deveria prevalecer no caso da assistência à saúde.Eu vejo que há uma pulverização. Há também conflitos, obviamente, entre os agentes do campo empresarial, como agora mesmo essa história da Agemed com a Hapvida, essas disputas. Existem disputas internas, não há um bloco único. Mas há pontos de convergência. Na prática, o que se pretende é que o dinheiro que circula na saúde transite via transações comerciais e que eles possam auferir lucro com isso. Essa é uma questão que eu acho que é comum a todos.
Outra coisa que eu acho que acaba também unindo, criando laços entre diversos agentes econômicos do campo empresarial, é a questão financeira. Porque a gente não pode mais enxergá-las como empresas isoladas. Normalmente elas estão ligadas a grupos econômicos, que são multissetoriais, inclusive fora do setor Saúde, e esses grupos têm estratégias concatenadas. Às vezes uma determinada faceta do grupo pode dar prejuízo, mas para que outra dê lucro. E tem também o lucro que é não operacional, o lucro financeiro, que faz parte também do portfólio desses grupos econômicos cada vez mais. Então, as próprias instituições reguladoras estão ainda com a cabeça antes dos anos 2000, quando essas empresas ainda não estavam na lógica completamente financeirizada. Mas agora a realidade é outra. Você não pode falar de empresa de plano de saúde como se fosse algo isolado de um grupo econômico maior. A Amil, por exemplo, a Intermédica, essas que estão fazendo oferta pública de ação em Bolsa atualmente, a própria Hapvida, são grupos que tendem a se financeirizar e vão auferir lucro não-operacional. Então, a atividade-fim dessas empresas seria intermediação assistencial, mas elas podem ter lucro fora dessa atividade-fim, talvez até superior ao lucro que têm com a intermediação assistencial. Isso precisa ser levado em conta, porque explica, por exemplo, que quando ocorreu uma diminuição na massa de clientes das empresas de planos de saúde, como ocorreu recentemente, elas continuaram lucrativas e até aumentaram as suas margens. É assim porque a base operacional muitas vezes é um instrumento necessário, mas não é o único a gerar lucro para esses grupos. É complexa a situação do ponto de vista econômico, e isso dificulta a ação regulatória do Estado.
Por que esse evento ganhou tanta projeção, na sua visão?
Eu diria que é um fenômeno mais da esfera das ciências sociais, um fenômeno sociológico que a gente está vivendo hoje das fake news: noticias, boatos, hipérboles, exageros que circulam como se fosse a pura expressão da verdade. E isso se reproduz de uma forma incontrolável, você não sabe onde vai parar. As pessoas estão se mobilizando em torno de coisas que, quando efetivamente você “espreme”, não consegue ver porque que isso ganhou essa dimensão. Eu estou realmente impressionado porque até hoje eu vejo repercussão disso nos grupos, fora inclusive da Saúde Coletiva, dos sanitaristas. Hoje mesmo recebi um convite da Defensoria Pública do estado da Bahia para uma audiência pública pra tratar sobre isso.Sobre esse evento especificamente?
Sobre o fim do SUS, que está sendo proposto nesse evento. Então, [esse fenômeno das fake news] é algo que extrapola qualquer limite do que seria razoável. É um fenômeno da psicologia social. Os sociólogos, os psicólogos poderiam se debruçar sobre isso. Eu lamento porque eu acho que, do ponto de vista acadêmico, nós realmente precisamos nos esforçar mais para reagir de uma forma mais ponderada. Ou melhor, reagir não, agir. Agir e poder entender o que está acontecendo, e não ser movido por esses impulsos histriônicos, que acabam repercutindo no vazio. Fica um denuncismo, fica algo que não tem consequência prática e que, do meu ponto de vista, enfraquece o Movimento Sanitário, porque o desqualifica. Como se pode levar a sério isso? A Febraplan deve estar muito agradecida, porque um evento que não tinha a menor possibilidade de ter alguma repercussão virou um fenômeno de mídia. Fizemos o favor de dar à Febraplan um reconhecimento que ela de fato não merece.É possível transformar isso em uma agenda de mobilização mais efetiva?
Acho que a gente pode se inspirar nas origens do campo da Saúde Coletiva, que se constitui em cima desse critério de que a prática política, a ação política, é instruída pela atividade acadêmica, pela pesquisa fundamentada, pelo conhecimento. O campo se constituiu na perspectiva de dar elementos para a ação política poder avançar, mas de uma forma consequente. A própria [Cecília] Donnangelo, que é uma mãe fundadora do campo da Saúde Coletiva, foi ao primeiro evento da Abramge, que foi o primeiro congresso que reuniu empresários, anda nos anos 1970. Ela esteve lá, estudou a ideologia empresarial. Não que isso tenha sido o tema central da obra dela, mas ela considerou isso. Então, hoje eu diria que se nós queremos pensar sobre o sistema de saúde, não podemos nos prender a uma visão institucionalista, estrita, como uma mão única assim das ações de governo para o sistema de saúde. Todo sistema tem essas duas dimensões, pública e privada, e há uma mão dupla aí. Os empresários agem politicamente. Qual é a novidade? Eles têm inclusive direito de fazer isso. E aqueles como nós, que defendemos um sistema público, universal, também precisamos e devemos agir politicamente, de uma forma concatenada, organizada, com conhecimento. Para não acontecer essa situação agora que realmente não ajuda. Ajudou aos empresários e não a nós. Acho que a gente precisa transformar um limão em uma limonada, e aproveitar essa repercussão para refletir sobre a maneira como estamos encarando a realidade, sobre em que medida estamos colocando as nossas expectativas ou desejos na frente do que é a realidade empírica. Acho que o nosso primeiro compromisso tem que ser esse. Aí a nossa ação política tem muito mais chance de sucesso:se ela tiver uma base de pesquisa, de reflexão.Fonte: Reproduzida do Portal Vermelho
Publicado em 20/04/2018
Farmácia Popular: CNS vai mediar debate entre indústria e governo
O Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 739/2018, que reduz valor pago para as farmácias credenciadas no Farmácia Popular. A decisão afetou o setor, que alega não poder vender os medicamentos a preços tão baixos. Conselheiros e conselheiras aprovaram recomendação para suspender portaria e também defenderam que os preços devem ser permanentemente monitorados.
A ideia é aprofundar o debate em reunião que une ministério, indústrias, farmácias e controle social. A discussão ocorreu nesta quinta (12/04), em Brasília, durante a 304ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
O conselheiro Nelson Mussolini, representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI), demonstrou preocupação com a portaria, afirmando que já solicitou ao novo ministro da saúde, Gilberto Occhi, que suspendesse a decisão. Bruno Abreu, do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), alertou sobre a perda para as empresas. “Se a gente quer gratuidade, não podemos trabalhar no prejuízo. A decisão pode gerar um impacto enorme para o Sistema Único de Saúde (SUS)”, alertou. Sérgio Barreto, da Associação Brasileira de Rede de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), afirmou que “vai começar a faltar estoque. O programa nasceu nesta casa e está sendo desmontado”.
A coordenadora do Farmácia Popular no Ministério da Saúde, Cleonice Gama, explicou que a baixa dos preços se baseou nos dados da Câmara de Regulação de Mercado de Medicamentos (CMED), órgão vinculado à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Segundo ela, os preços de impostos sobre os medicamentos em cada estado é variável e isso tem afetado o valor final dos produtos. “Nos baseamos no Sistema de Acompanhamento de Mercado de Medicamentos (Sammed), um banco de dados oficial. Isso nos baseou na tomada de decisões”, justificou. “Cada um centavo que reduzimos no medicamento Losartana [trata hipertensão], por exemplo, reduzimos R$ 28 milhões por mês”, defendeu.
Críticas à indústria farmacêutica
“As farmácias têm que ter responsabilidade social”, disse o conselheiro Antônio Lacerda, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Cláudio do Nascimento, da Federação Interestadual dos Odontologistas (FIO), também criticou a postura dos representantes da indústria e do setor farmacêutico. “Esses setores tiveram lucros altíssimos que se baseiam no adoecimento, na dor e no sofrimento, enquanto os trabalhadores tiveram queda nos salários”. Sueli Barrios, da Associação Brasileira da Rede Unida, também se posicionou. “Não somos ingênuos. Sabemos o interesse da indústria. Saúde é tratada como mercadoria”.
O conselheiro Douglas Pereira, da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem), lembrou os princípios de gratuidade, universalidade e integralidade do SUS. “O sistema de co-pagamento não é o que contratamos na Constituição de 1988. Temos que fortalecer as estatais que produzem medicamentos”. O presidente do CNS, Ronald dos Santos, convocou o setor industrial para participar da 16ª Conferência Nacional de Saúde, em 2019.
“A indústria tem que ouvir a população e não só fazer lobby no Congresso. O CNS tem prerrogativa para participar dessas decisões”. Após o debate, foi aprovado no pleno do CNS uma recomendação para que o Ministério da Saúde suspensa a portaria. Agora, uma agenda de negociação conjunta envolvendo poder público, controle social e as entidades dos setores produtivos e varejista de medicamentos deve ser definida nos próximos dias para debater o tema.
Fonte: SUSConecta
Publicado em 18/04/2018
Planos privados realizam evento para debater a criação de novo sistema nacional de Saúde
Evento promovido por entidade de planos de saúde para criar “novo sistema nacional” acende o alerta da militância do SUS e pode colocar sob os holofotes a agenda privatista de um setor cada vez mais complexo em busca de expansão. Leia a reportagem do site Outra Saúde.
Foi num domingo e chegou por WhatsApp. Em pouquíssimo tempo, a imagem de divulgação de um evento promovido pela Febraplan, a até então desconhecida Federação Brasileira de Planos de Saúde, se espalhou nos grupos de discussão que reúnem defensores do SUS. A propaganda do 1º Fórum Brasil prometia aos seus participantes nada menos do que o envolvimento na “ousadia de propor um novo Sistema Nacional de Saúde”. A Febraplan anunciava ainda a presença de senadores, deputados federais, órgãos do governo e outras entidades de representação do setor privado. Parecia provocação – pois não era um domingo qualquer, mas o seguinte ao Dia Mundial da Saúde, comemorado em 7 de abril, data que coincidiu este ano com a vigília seguida da primeira prisão de um ex-presidente brasileiro. Mas, como geralmente acontece, as coisas se revelaram mais complexas na sequência. De um lado, o fórum da Febraplan, que aconteceu em Brasília no dia 10, foi um evento menos prestigiado do que seus idealizadores deram a entender. Nenhum representante do governo ou senador esteve presente. A cota de políticos foi preenchida por três deputados federais – Espiridião Amin (PP), Carmen Zanotto (PPS) e Marco Tebaldi (PSDB) –; todos de Santa Catarina, estado que, se descobriria mais tarde, é a base da própria entidade. Já a cota de membros do Executivo se circunscreveu ao passado, com a participação de Alceni Guerra, ex-ministro da Saúde do governo Fernando Collor.
Por outro lado, os relatos da reunião e, principalmente, o peso dado a ela se dividiram. Entidades acadêmicas e instituições científicas divulgaram notas de repúdio ao evento. Sempre por WhatsApp, no dia seguinte a sua realização, correram mensagens que ou reforçavam a indignação de parte da militância do SUS ou tentavam apontar para um contexto mais amplo, em que a Febraplan seria um ator novato tentando embarcar numa agenda que nada teria de nova. Ao contrário, vinha sendo vocalizada há anos por entidades do setor privado mais poderosas e influentes.
Ainda é cedo para dizer mas, até aqui, parece que a primeira dessas interpretações prevaleceu. Ou, ao menos, alcançou mais gente. Texto do coletivo de psicologia Integra que circulou com a chamada ‘Planos de saúde e governo articulam o fim do SUS!’ tinha atingido, hoje (16), mais de 31 mil compartilhamentos diretos no Facebook e sido reproduzido em vários sites. No GGN, do jornalista Luís Nassif, foi compartilhado 38 mil vezes. Já o artigo ‘A saúde do atraso: uma alternativa ao SUS autoritária e seletiva’, assinado pelo economista Rafael Barbosa para o Brasil em Debate, que apontava para o contexto, chegou a ser republicado pela Carta Capital e outros veículos, mas não conseguiu viralizar como o outro.
Fato é que a semana em que todas as atenções estiveram voltadas para o setor privado na saúde terminou de forma insólita. Na sexta, 13, o Instituto Coalizão Saúde (Icos), megaentidade criada em 2014 que aglutina o lobby de diversos segmentos, como hospitais, indústria farmacêutica, seguradoras e planos de saúde, promoveu em São Paulo um almoço muito bem frequentado.
Lá, estava o primeiro escalão do Executivo. O presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, foi o palestrante. Na mesa principal, os dois braços reguladores do setor – a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa) – foram representados por nada menos do que seus presidentes, Leandro Fonseca e Jarbas Barbosa. O tema do debate – cenários e perspectivas econômicas para o setor da saúde no Brasil – não se restringiu ao mundo empresarial.
As propostas do Icos para o Sistema Único foram, mais uma vez, repetidas para um auditório lotado. E, mesmo nos dias em que as antenas da militância estiveram voltadas para os variados sinais de pressão das empresas sobre o SUS, a reunião do Icos não chegou a ser captada por esse radar. Mas o fórum da Febraplan, sim. Talvez esse também seja um sinal: precisamos falar mais sobre o setor privado na saúde.
De volta às raízes
Acompanhar a atuação do setor privado e gerar massa crítica na sociedade a partir das distorções que a lógica mercantil traz para a saúde foi um pilar central da atuação do movimento da reforma sanitária, que surgiu na década de 1970 e, em relativamente pouco tempo, alcançou uma vitória inédita no plano político-institucional: a criação do SUS.
A disputa por um sistema público, universal e integral não foi travada sozinha pelos sanitaristas, mas argumentos fundamentados em números e indicadores que apontavam a ineficiência do modelo da época, em que o Estado basicamente contratava prestadores privados para oferecer procedimentos e internações à parcela da população brasileira que tinha carteira assinada, foram fundamentais para convencer a opinião pública de que uma crise estava instalada. E, portanto, alguma coisa precisava ser feita para reorientar a concepção de saúde e mudar a organização dos serviços.
“O movimento sanitário teve como característica monitorar a participação do setor privado, entender os lugares em que os empresários circulavam, como exerciam influência sobre os governos… A partir desse conhecimento, os sanitaristas conseguiram disputar na sociedade, de fato, suas ideias. Isso se perdeu ao longo dos 30 anos do SUS”, constata Leonardo Mattos, um dos coordenadores do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde (GPDES), baseado no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ, criado em 2014 com o intuito de preencher essa lacuna.
Não é de se espantar que tenha sido assim, pondera Mattos. Com a criação do Sistema Único, os esforços dos sanitaristas se voltaram para sua implantação. Questões fundamentais para o funcionamento do SUS, como a estruturação da atenção básica e o debate sobre o financiamento público, foram ganhando destaque. O drama é que as empresas não ficaram paradas no tempo. “São muito diferentes do que eram antes do SUS. Aliás, são muito diferentes do que eram cinco anos atrás”, destaca.
Com exceção da indústria farmacêutica, as empresas de saúde brasileiras surgem nos anos 1960. Foram criadas por médicos que fundaram clínicas e hospitais, ou ofereciam para outras empresas, como fábricas, a assistência à saúde para seus funcionários. Durante a ditadura, o governo incentivou a expansão do setor privado através, por exemplo, de empréstimos da Caixa Econômica Federal com juros abaixo das taxas de mercado. “E o próprio governo, através da Previdência, comprava os serviços privados, em detrimento dos serviços próprios. Então nossa privatização não vem do liberalismo depois, como foi na Argentina. É anterior e vem do governo militar”, observa a sanitarista Sônia Fleury, que assessorou a Constituinte de 1988 nos temas da seguridade social.
“Esses atores já existiam antes do SUS e, depois de sua criação, também não nos preocupamos em regulá-los. E o Sistema Único nasce altamente dependente de serviços privados, com 70% dos leitos contratados”, pondera ela, lamentando que nenhum governo tenha chegado a reverter essa dinâmica.
Mas se as ligações entre público e privado continuaram, de lá para cá, muita coisa também mudou. “O setor empresarial da saúde era muito menor, mais pobre e, principalmente, muito menos complexo do que é hoje”, assegura Fleury, que continua: “Com a permissão do capital internacional na saúde, vemos a entrada de multinacionais no mercado. Há toda uma dinâmica que não existia antes do SUS. Por isso, o setor privado é um oponente muito mais forte do que naquela época”.
Novas criaturas
Em novembro de 2012, depois de uma negociação que durou três anos, a Amil fechou um acordo de venda com a americana UnitedHealth, uma das maiores empresas do setor no mundo. A transação, na casa dos R$10 bilhões, fez surgir uma nova criatura no mercado de saúde brasileiro. Com 90% do capital em mãos estrangeiras, a operadora de planos de saúde se situava em uma zona jurídica cinzenta. Isso porque a lei mais importante da saúde depois da Constituição, a 8.080, vedava a participação externa em vários negócios, como hospitais, clínicas, laboratórios e até serviços de planejamento familiar. Mas a lei 9.656, dos planos de saúde, não colocava a interdição de forma explícita.
Mesmo assim, não demorou muito para surgirem criaturas de todos os tipos. Uma dinâmica de aquisições e fusões tinha se instalado no setor – e além dele. Um banco de investimentos, o BTG Pactual, foi às compras. Adquiriu a Rede D´or, de hospitais, e a BR Pharma, de drogarias. A Rede D´or, por sua vez, entrou em expansão e arrematou em cinco anos mais de 30 hospitais pelo país. Já a BR Pharma viveu ascensão e queda dignas do ciclo especulativo: depois de se tornar uma das maiores redes do país, pediu recuperação judicial no início do ano.
Há muitos outros exemplos. Na verdade, eles se multiplicam. O ritmo e o caráter das transações que movimentam o setor privado na saúde hoje desafiam os observadores incautos, desorientam os leigos. É o resultado, explica Leonardo Mattos, da combinação entre o período de bonança dos anos 2000 com a financeirização da economia. “O mercado da saúde começou a crescer mais do que outros setores da economia. É um bom momento para a indústria farmacêutica, planos de saúde, farmácias e drogarias. O varejo farmacêutico, por exemplo, cresceu num ritmo de 15% a 20% ao ano entre 2000 e 2015, quando estoura a crise”, observa. Já o fenômeno vigente da financeirização da economia tem impacto em várias dimensões, inclusive no funcionamento das empresas.
“A financeirização afeta a forma como as empresas atuam. Vemos um processo de concentração cada vez maior, as maiores empresas em seus segmentos começam a abrir capital na bolsa de valores O acesso ao mercado financeiro é essencial para ultrapassar a concorrência. As empresas buscam oportunidades de crédito, captação de investidores para, assim, conseguir sustentar o ritmo de crescimento”, descreve Mattos.
As empresas da saúde começaram a diversificar suas atividades. Os planos de saúde começam a investir em operações financeiras, como aplicações em fundos de investimento. A partir da crise econômica em 2015, há queda brusca na quantidade de clientes. “Mas a lucratividade das empresas não diminui, continua aumentando. Isso tem a ver com sua atuação no mercado financeiro”. Os grandes hospitais filantrópicos, como Albert Einstein e Sírio Libanês, passaram a atuar como Organizações Sociais (OSs) e escolas de formação. “O que também tem um viés lucrativo”, sublinha o pesquisador.
Alguns micromercados especializados também passaram a despertar o interesse do setor. Hoje, empresas como ePharma e Orizon atuam como intermediárias entre os planos de saúde e o varejo farmacêutico e oferecem descontos em produtos e medicamentos nas farmácias para os clientes desses planos, mediante a apresentação da carteirinha. Ou cadastro do CPF. A Cassi, plano de saúde dos funcionários do Banco do Brasil, é sócia do Bradesco Seguros e da Cielo na Orizon.
Em março de 2018, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) aprovou a joint venture da Amil com a Dasa, que é a segunda maior empresa de medicina diagnóstica do país. Juntas, estão criando uma rede de clínicas populares. “São pequenos seguimentos lucrativos que estão sendo incorporados pelas grandes empresas. Esses negócios às vezes passam por dentro do SUS, outras não, mas estão em uma região que afeta o sistema de saúde como um todo”, constata Mattos.
Mui colaborativos
Segundo a historiadora Ialê Falleiros, da Escola Politécnica de Saúde da Fiocruz, prevaleceu nos anos 1990 a cultura de crise entre movimento sanitário e setor privado, em que um polo era acusado de querer estatizar tudo e o outro demandava mais liberdade para o mercado. As coisas mudam nos anos 2000. É onde a pesquisadora localiza o início do que chama de cultura de colaboração.
“Tanto por parte de entidades empresariais, quanto por parte de agentes do Estado surge o discurso de que público e privado têm que trabalhar conjuntamente para garantir os interesses da população. Os empresários passam a se colocar como parceiros do SUS”, explica Leonardo Mattos.
As empresas se deram conta de que seus negócios não estavam ameaçados pelo Sistema Único, continua ele. Pelo contrário. “Você poderia ter um sistema público que garantisse uma certa estabilidade sanitária no país e, por outro lado, ter um setor privado que recebesse dinheiro público sem limites”, diz.
É nesse contexto que, em alguns círculos, começa a aparecer a expressão Sistema Nacional de Saúde – resgatada pela Febraplan mais de uma década depois. Sônia Fleury a ouviu pela primeira vez em um evento do PSDB paulista. “A proposta deles era fazer uma ‘outra reforma sanitária’, que eles chamavam de quarta reforma sanitária. A primeira seria a que deu origem ao SUS, a segunda teria sido a criação das agências reguladoras da saúde, a terceira seria a prestação de serviços privados em modalidades de contratação tipo OSs, que não se resume à compra do serviço, mas abarca a própria gestão da coisa pública”, lista. A tal quarta reforma, relembra Fleury, partia do argumento de que o sistema público e o setor privado sobrepõem esforços, não têm uma lógica comum e que, sob a bandeira da racionalização, seria desejável integrá-los. “Eles me instaram a atualizar o discurso em relação a isso”, ri.
A sanitarista sublinha que a proposta não deve ser entendida em termos tecnocráticos, mas políticos. “Na verdade, se trata de um modelo de governança em que o privado quer ter o poder de decidir. O principal alvo deles ao colocar em pauta um sistema nacional – porque já tem PPP [parceria público-privada], já tem compra de serviços; tudo isso já existe – é ter poder decisório sobre a política de saúde”, alerta.
Para ela, é uma nova fase da velha disputa pelo fundo público e o que está em jogo é se esses recursos vão atender às necessidades do conjunto da sociedade ou aos interesses empresariais. “Isso sempre esteve em disputa, desde a Constituição. Mas, agora, ganhou um novo caráter: porque estão mais animados, porque o governo é mais favorável, porque a esquerda está mais debilitada, porque conseguiram aprovar um teto de gastos que desmonta mais ainda as políticas públicas. É uma conjuntura que favorece o protagonismo político dos empresários”.
Novas vozes
Paralelamente às transformações econômicas deste século, novas entidades de representação surgiram para vocalizar os interesses de empresas cada vez mais tentaculares. E lançaram mão de outras estratégias – na linha da cultura da colaboração.
Em 2010, é criado o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), uma espécie de think tank das empresas de planos de saúde, na descrição de Leonardo Mattos, que produz informações como instrumento de pressão para a disputa política. “Nessa linha, o IESS desenvolveu um índice, batizado de VCMH, que pretende medir a inflação médica – e é usado basicamente para subsidiar a ideia de que os custos dos planos de saúde são muito acima da inflação geral, medida por índices como o IPCA. A partir disso, as empresas vão disputar reajustes e recursos – e acabam nunca ‘pagando o pato’”.
Por sua vez, a Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp), fundada em 2001, também perseguiria, 13 anos depois, a linha de atuação think tank, se tornando pioneira em uma nova frente de atuação do setor privado junto à opinião pública. “Nós não podemos única e exclusivamente estar focados em reivindicações corporativistas (sic.)”, me disse, em 2016, Francisco Balestrin, presidente da entidade, em entrevista concedida para matéria da revista Poli. Assim, segundo ele, a partir da publicação do Livro Branco da Saúde, a Anahp deixou de ser uma entidade com “interesses” e passou a “ter causas”.
E a causa da Anahp é o SUS. Ou melhor, um SUS totalmente integrado ao setor privado e coordenado por este. Um SUS que continua SUS mesmo deixando de sê-lo. Nas eleições de 2014, o Livro Branco foi entregue a uma vasta gama de presidenciáveis, dentre outros candidatos a cargos majoritários e proporcionais de todos os níveis. Também foi parar nas mãos do ex-presidente da ANS, André Logo, e nos ouvidos dos paulistanos através de spots na rádio Jovem Pan.
As eleições daquele ano também são o ponto de origem do Coalizão Saúde. Nascido como “movimento” com manifesto e tudo, o Coalizão começou sua interlocução com a opinião pública através de artigos assinados por seu presidente, Claudio Lottenberg, e vice-presidente, Giovanni Cerri, em jornais como Folha de S. Paulo e Estadão. Queria que a saúde fosse mais debatida no pleito de 2014, dominado pela polarização entre esquerda e direita no contexto pós-Junho. A ‘saúde’, contudo, eram obviamente as propostas do setor privado para a saúde: mais PPPs, menos regulação e por aí vai. Eleita Dilma Rousseff e instalada a crise política, foram a público defender que as empresas tivessem um maior protagonismo nas indicações para a pasta depois da ida do deputado federal Marcelo Castro para o Ministério da Saúde.
Já tornado Instituto, o Coalizão Saúde encontrou em outro deputado, Ricardo Barros, um interlocutor bastante atento no Ministério. Na primeira semana à frente da pasta, ainda na época do governo interino, Barros fez uma viagem à São Paulo que apareceu na sua agenda oficial como uma visita ao Hospital Israelita Albert Einstein, mas foi divulgada pelo site do Ministério como uma reunião com o Coalizão Saúde. Proposital ou não, a origem da confusão não era outra senão o fato de Einstein e Coalizão terem um dirigente em comum: Lottenberg, então presidente do hospital; hoje presidente do UnitedHealth Group no Brasil.
A ida de Ricardo Barros à São Paulo foi um bate-volta. De maneira vaga, o Ministério divulgou que a reunião serviu para discutir “oportunidades para melhorar o sistema de saúde brasileiro”. Nas vésperas da aprovação do impeachment de Dilma Rousseff no Senado, a coisa já tinha avançado a ponto de o Coalizão Saúde ser recebido por Michel Temer no Palácio do Planalto. No dia da posse do presidente, Claudio Lottenberg estava lá.
O Icos tem entre seus membros fundadores uma entidade que, ao longo do governo Temer, diria ao que veio. A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), foi a única indicada a integrar um grupo de trabalho criado por Ricardo Barros para viabilizar os planos populares de saúde. Para quem não lembra, até a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ficou sabendo pelos jornais da criação desse GT. A FenaSaúde atua no Congresso Nacional pela aprovação de um novo marco legal para os planos de saúde.
Já o Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde (Ibross), fundado em 2015, anunciou este ano que também pretende impulsionar a aprovação de um novo marco legal para as OSs no Congresso. A entidade, esclarece Leonardo Mattos, está longe de representar um segmento não lucrativo. “A projeção que nós temos é que só em 2016 a SPDM faturou R$ 6 bilhões em contratos de gestão e termos aditivos em prefeituras dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Com R$ 6 bilhões, ela já está entre as dez maiores empresas de saúde do Brasil – apesar de ter a natureza jurídica de uma instituição filantrópica e, por isso, não ter que prestar contas”, conta o pesquisador. No site do Ibross, uma das últimas notícias dá conta de um evento realizado no fim do ano passado em parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), a voz dos estados na comissão que define todas as políticas do SUS.
Além de agiram sobre todos os níveis do Executivo e Legislativo, as entidades também atuam no Judiciário. Mattos destaca que, em 2009, a Anvisa proibiu a venda de medicamentos fora do balcão. “O que é algo bem razoável, ainda mais considerando que a regulação do comércio brasileiro é completamente liberal”, nota. A Abrafarma, entidade que representa farmácias e drogarias, entrou na justiça em vários estados alegando que a resolução da Agência era inconstitucional. “Eles ganharam no STJ, ganharam no STF e a Anvisa retirou a obrigatoriedade”, conta.
O coordenador do GPDES destaca que a influência do setor privado da saúde no Estado pode se dar tanto por meio dessas várias entidades representativas, quanto por ações diretas de empresas. “O que é mais sério ainda”, considera Mattos.
A aprovação do capital estrangeiro na saúde, que deu tranquilidade (ou, na linguagem corporativa, segurança jurídica) à nova criatura Amil UnitedHealth é o exemplo mais paradigmático, segundo as fontes ouvidas pela reportagem. “Tudo começou com uma medida provisória enviada pela presidente Dilma ao Congresso que tratava de um assunto completamente diferente, mas, durante a tramitação na Câmara, se implantou uma série de jabutis, dentre eles, a aprovação do capital estrangeiro. E isso passou. E foi sancionado em 2015. Anos depois, em uma delação premiada da Lava Jato, esse assunto reapareceu. A denúncia é que o jabuti foi encomendado pelas empresas e que a lei seria, portanto, produto de corrupção”, resume Grazielle David, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e conselheira do Centro de Estudos Brasileiros em Saúde (Cebes).
“Não podemos tomar isso como fato. Precisa ser investigado. Mas Amil e Rede D´Or são duas empresas que tinham razões para se preocupar com a insegurança jurídica, já que tinham um investimento importante de capital estrangeiro”, pondera Mattos, que completa: “Em 2014, a partir desse episódio, começa a ficar mais evidente os reflexos das transformações pelas quais passou o setor privado da saúde no Brasil. Temos as transformações econômicas das empresas e as mediações políticas que passam a acontecer com essa mudança de patamar”.
Ilustre desconhecida
No universo da representação da saúde suplementar, duas entidades dividem espaço. Uma delas é a FenaSaúde, a outra a Abramge. A primeira engloba seguradoras como Bradesco Saúde e outras operações ligadas ao setor bancário. Por isso, segundo Leonardo Mattos, é a entidade mais forte. A Abramge, por outro lado, contempla empresas regionais de médio porte – o que não é pouca coisa, pois o mercado da saúde é muito pulverizado no país: de um lado, alguns grandes grupos econômicos; de outro, muitas pequenas empresas regionais, que atendem uma considerável parcela do mercado. É nesse cenário que entra em cena a desconhecida Febraplan.
José Sestelo, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em entrevista ao Portal EPSJV, deu cor à personagem. Segundo o pesquisador, que também é membro do GPDES, o presidente da Febraplan é Pedro de Assis, dono da Agemed, operadora de planos de saúde com sede em Joinville (SC). A empresa de médio porte estaria em processo de expansão e, como consequência, teria partido também para um voo solo de representação.
“A informação que nós temos é que a Agemed está liderando um movimento com empresas menores para buscar um outro espaço de representação de seus interesses que não seja a Abramge ou a FenaSaúde, que são dominadas pelos pesos pesados. É algo bem recente”, retoma Mattos.
Para Sestelo, toda a repercussão gerada pelo evento acabou sendo benéfica para a Febraplan. “Ela não tem uma representatividade muito grande no meio empresarial, mas pretende ter. E esse evento do dia 10 é um exemplo dessa estratégia de marketing, de promoção, de expectativa ou perspectiva de crescimento da Agemed e da Febraplan, e que acabou tendo a meu ver uma repercussão muito maior do que deveria, dado o seu conteúdo e os seus participantes”, disse.
Pelo que deu para ver, de fato, o arco de influência da entidade é muito restrito no Congresso Nacional e talvez inexistente no Executivo federal, visto que o palestrante que vestiu a roupa de ‘autoridade’, Alceni Guerra, ocupou o Ministério da Saúde há nada menos do que 26 anos.
“Metade dos participantes do evento eram associados, mas eu diria que a outra metade era composta por pessoas que estavam ali para ouvir e fazer a crítica posterior. Pelo menos ao meu redor tinha muita gente conhecida”, relata Grazielle David, que esteve no evento na parte mais disputada do evento, pela manhã. O 1º Fórum da Febraplan reuniu cerca de 60 pessoas nas contas dela.
“Os documentos da Anahp e do Coalizão Saúde causam impactos mais sérios, mas, ao que parece, poucas vezes um evento ganhou tanta amplitude social como esse da Febraplan”, pondera David. Para ela, a entidade estreante no universo de atores privados foi mesmo ‘ousada’: “A Febraplan organizou um evento sem qualquer fundamentação técnica. Conseguiram fazer uma boa propaganda, todo mundo está falando. Agora, é extremamente ousado fazer marketing para uma apresentação péssima e uma proposta risível”, critica.
Segundo David, e de acordo com outros relatos que circularam no WhatsApp, a ANS foi o alvo central da Febraplan. “A grande queixa e reclamação foi com relação à Agência que, segundo a entidade, deveria ser substituída pelo Conselho Nacional de Saúde Suplementar, que teria como membros as empresas. Isso porque a regulação afetaria o tal poder de escolha do consumidor de planos de saúde, que é uma falácia – já que na saúde ninguém escolhe qual tratamento vai precisar como em outros mercados se escolhem os produtos a serem adquiridos. O Estado precisa regular, é assim em todo o mundo”, nota ela. Na apresentação, feita por Norival Silva, diretor de governança e marketing da Febraplan, o tal novo Sistema Nacional de Saúde é um sistema em que os planos de saúde ficam livres de qualquer regulação.
Já o ex-ministro Alceni Guerra apresentou um PowerPoint que correu as redes sociais. Nele, aparece a meta de que daqui a 20 anos, em 2038, metade da população brasileira seja beneficiária de planos de saúde. Hoje esse número está na casa dos 25%. “Essa apresentação foi mais longe ao trazer uma série de afirmações sem consistência, como a de que cada R$ 1 que o governo investir na alta complexidade dos planos de saúde, o SUS ganharia em eficiência. Isso é extremamente contraditório. O mínimo seria apresentar um estudo econométrico para subsidiar a afirmação. Quando questionado, Guerra falou que não tinha os números, mas que a FGV estaria construindo algo naquele sentido. E recomendou que o Ministério da Saúde contratasse a FGV”, relata a assessora do Inesc.
Para ela, a proposta da Febraplan é basicamente retirar dinheiro do SUS para colocar nos planos de saúde. “Isso, quando o país já tem uma série de benefícios tributários voltados para esse segmento. Eles tiveram a ousadia de afirmar que os planos de saúde economizam R$ 65 bilhões para o SUS porque, supostamente, a pessoa que tem plano de saúde não usa o SUS. Já começa um problema grave aí, porque todo mundo usa o SUS, inclusive, muito além da assistência, como na vigilância em saúde, na imunização. E uma série de procedimentos da alta complexidade, como tratamento oncológico e transplantes, acontecem no setor público também”, argumenta David.
Na avaliação de Sônia Fleury, o evento da Febraplan é mais um exemplo concreto de que o setor privado não tem qualquer interesse em acabar com o financiamento público, ao contrário: precisa dele, e o está disputando. “Essas empresas se deram conta de que na América Latina o segmento de planos de saúde não ultrapassa 25% da população em nenhum país, porque a classe média é achatada. Qual é a única possibilidade de expansão? Através do fundo público. Então, o fato de o Estado garantir o direito à saúde para todo mundo é lucro, desde que o dinheiro seja canalizado para o tipo de medicina que eles fazem”, explica. O mercado seria dependente do Estado, artificial.
Não por acaso, a ideia da cobertura universal promovida pela Organização Mundial da Saúde, mas gestada por entidades como a Fundação Rockefeller e o Banco Mundial, parte também dessa premissa. “É substituir o princípio do direito universal pela ideia de que você pode ter diferentes padrões de cobertura: uma mais básica para os pobres, outra para a classe média; todo mundo está coberto. Não é uma universalização do direito, é universalização da cobertura diferenciada. Isso é um projeto mais geral, que o setor privado quer ver implantado”, diz Fleury.
Por Maíra Mathias do Outra Saúde
Publicado em 16/04/2018