O SUS e a desvinculação de receitas: como retirar R$ 2 tri da saúde

Uma nova desvinculação de receitas, como propõe Paulo Guedes, pode causar perda superior a R$ 2 trilhões para o SUS, que hoje já consegue proezas no serviço à população, como oferta de medicamentos, transplantes e SAMU a R$ 3,5 por dia para cada habitante.

Por Bruno Moretti*

O SUS é um sistema subfinanciado, conforme atestado por um conjunto tradicional de indicadores. Um sistema universal em que a despesa pública corresponde a menos da metade das despesas totais de saúde é caso único no mundo. Haja eficiência para transformar, considerando todos os entes da federação, R$ 3,5 por dia para cada habitante em serviços ofertados a toda a população, incluindo vacina, SAMU, medicamentos de alto custo, transplantes, entre outros. Uma coca-cola paga o valor diário investido no SUS!

Apesar dos recursos insuficientes, o SUS coleciona feitos nos seus mais de 30 anos. Entre eles, a redução da mortalidade infantil, o maior sistema público de transplantes do mundo e programas de referência internacional como o de Imunizações e HIV/Aids. Mas também é preciso reconhecer que, frente a velhas e novas questões, há grandes desafios: a prevenção e o controle de doenças infecciosas, a transição epidemiológica, demográfica e nutricional, o acesso a consultas, exames e procedimentos especializados, entre outros.

Diante do quadro orçamentário atual e dos fatores que pressionam os custos do sistema, nenhum dos desafios citados pode ser enfrentado com piora das condições de financiamento. E o que propõe o ministro da Economia, Paulo Guedes? Encaminhar ao Congresso Nacional PEC para desvincular recursos da União, estados e municípios. Segundo informações da imprensa, o ministro falou em “desobrigar” o gasto. Em termos de despesas obrigatórias, é certo que salários e benefícios previdenciários, em princípio, não poderiam deixar de ser pagos, considerando apenas a desvinculação de receitas. Sobrariam, então, áreas como educação e saúde, que seriam afetadas pela PEC.

Vejamos o caso do SUS. A EC 93/2016 estabelece que a desvinculação de receitas dos estados e municípios não alcança a saúde. Estados e municípios, nos termos da LC 141/2012, devem ter como piso de aplicação no setor, respectivamente, 12% e 15% da arrecadação de impostos. Na prática, muitos entes aplicam mais do que o mínimo, diante dos custos crescentes e da queda relativa de despesas federais de saúde (passaram de 58% das despesas públicas em 2000 para 43% em 2017).

Um exercício simples pode ajudar a estimar os impactos sobre as despesas de saúde. Para a União, a EC 95 obriga que o piso anual de aplicação de saúde seja de 15% da RCL de 2017, mais a inflação do período. Uma nova “desobrigação”, na melhor das hipóteses, determinaria a observância dos valores atualmente aplicados (R$ 120,4 bilhões). No caso de estados e municípios, sendo excessivamente otimista (do ponto de vista do SUS), a PEC poderia prever apenas a reposição da inflação (haveria desvinculação com indexação). Por outro lado, mantido o cenário atual, estimamos as despesas públicas de saúde da seguinte forma: para a União, seguiria vigente o piso da EC 95, que já implica uma desvinculação em relação à RCL do ano corrente, causando prejuízo de quase R$ 7 bilhões ao SUS em 2019, conforme demonstrado em artigo anterior[1]. Para estados e municípios, a despesa cresceria à mesma média anual do período 2014-2017 (6% para estados e 7% para municípios).

Comparando-se os dois cenários (com e sem a PEC da desvinculação ou da “desobrigação”), estima-se, entre 2020 e 2036 (tomado como referência por ser o último exercício da EC 95), uma perda superior a R$ 2 trilhões para o SUS, conforme o gráfico a seguir.

Uma informação relevante é que a iniciativa tem sido chamada na imprensa de PEC do Pacto Federativo. Mais um sinal de que, conforme lembra o sociólogo Pierre Bourdieu, o nome oficial que se atribui às coisas procura constituir sua identidade, tratando-a como algo público. No caso em tela, este processo seria uma espécie de magia operada pela linguagem econômica convencional, capaz até de reunir contrários. De um lado, a população deseja mais saúde, conforme atestam as pesquisas. De outro, associa-se a desobrigação das despesas de saúde ao aprimoramento do pacto federativo. Naturalmente, os dois enunciados só se articulam com uma operação adicional: excluir do pacto federativo o representado, o cidadão, que deseja do setor público mais saúde, para que os representantes não sejam obrigados a aplicar recursos no setor. E aí, subtraída a saúde pública em R$ 2 trilhões, um SUS poderá já não ser suficiente para uma coca-cola.

Nota

[1] http://brasildebate.com.br/os-efeitos-da-ec-95-sobre-o-sus-na-lei-orcamentaria-de-2019/.

*É economista pela UFF, mestre em economia pela UFRJ, doutor e pós-doutor em sociologia pela UnB

Fonte: Vermelho
Publicado em 25/03/2019

Ministério lança livro sobre Uso Racional de Medicamentos

Publicação traz um relatório do trabalho desenvolvido pelo Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos (CNPURM) criado em 2007. A Fenafar integra o Comitê e participa ativamente dos debates e do processo que resultou neste relatório.

 

 

O uso racional de medicamentos está entre os objetivos e diretrizes da Política Nacional de Medicamentos e da Política Nacional de Assistência Farmacêutica.

Como mostra a apresentação do livro, o assunto tem ganhado visibilidade no Brasil e no mundo, que demanda a existência de informações produzidas sobre medicamentos de forma independente sem conflitos de interesse e pautada na imparcialidade como subsídio para a promoção do uso racional de medicamentos em todas as esferas do governo e da sociedade civil.

Além das questões relacionadas à falta de acesso ao medicamento, os debates realizados dentro do Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos, instância consultiva instituída no âmbito do Ministério da Saúde, apontam para a necessidade de realização de ações que objetivem conter os abusos relacionados ao uso de medicamentos.

Um dos caminhos para isso é o estabelecimento de recomendações e estratégias, que estão descritas ao longo do relatório.

Da redação
Publicado em 14/03/2019

Saúde da Mulher: a construção do cuidado integral e a desconstrução do machismo

O Sistema Único de Saúde (SUS) estabelece uma série de direitos relacionados à saúde da mulher entre eles estão o acesso aos exames de mamografia, papanicolau, planejamento familiar e à atenção humanizada durante o parto.

O SUS possui a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher desde 2004, que foi construída em parceria com movimentos de mulheres de diversos setores da sociedade. Essa Política incorporou o ideário feminista de que a saúde da mulher não está ligada apenas às questões reprodutiva e sexual, mas também a aspectos socioculturais, considerando o machismo enraizado em nossa cultura e a diversidade das regiões do país, que apresentam diferentes níveis de desenvolvimento e de organização dos seus sistemas locais de saúde.

Atenção humanizada significa incluir a mulher nas decisões sobre seu próprio corpo

Toda mulher tem direito ao planejamento familiar, tendo acesso a informações sobre métodos e técnicas para prevenção da gravidez. O SUS oferece contraceptivos como DIU, anticoncepcionais e camisinha feminina. Já no caso das gestantes, a realização do pré-natal, incluindo acompanhamento durante toda a gravidez e puerpério, também é uma garantia do SUS. Durante a gestação devem ser realizados exames, consultas e orientações na Unidade Básica de Saúde e, em casos de gravidez de risco, em maternidades ou centros de referência. O acompanhamento é importante para detectar doenças que possam afetar o desenvolvimento do bebê, a saúde da mulher e também para orientar a mãe sobre o aleitamento materno, vacinas e cuidados com a criança.

As gestantes também têm direito a um acompanhante de sua indicação durante o período de trabalho de parto, parto e pós-parto. A atenção integral e humanizada ao recém-nascido prevê o contato imediato do bebê com o abdômen ou tórax da mãe (de acordo com a vontade dela) e o estímulo à amamentação ainda na primeira hora de vida. Nesse contexto, é possível destacar movimentos para mudança do modelo de atenção ao parto e nascimento, incluindo a mulher nas decisões sobre seu corpo, discriminando as intervenções desnecessárias e a violência obstétrica.

Pequenas ações, grandes resultados

O incentivo ao aleitamento materno é foco de muitas ações desenvolvidas pelo SUS em todo país. Em Cunha Porã – SC, por exemplo, a Secretaria Municipal de Saúde oferece ensaios fotográficos para as mulheres que participam das rodas de conversa sobre gestação e amamentação e fazem acompanhamento periódico nas unidades de saúde.  Francine Werka, enfermeira e autora do projeto, destaca os bons resultados das ações. “Hoje no município 89,41% das mães estão amamentando no peito, esse é um ótimo indicativo comparando com o do Brasil como um todo, que não chega a 40%”.

A enfermeira explica que para a gestante ganhar o ensaio fotográfico, que pode ser tanto de fotos durante a gestação, quanto dos bebês recém nascidos, ela precisa participar de quatro rodas de conversa e seis consultas de pré-natal. “Em um ano aumentamos 25% do número de mães amamentando e frequentando as unidades de saúde, sem contar com a felicidade das mães quando ganham esse brinde. Acredito que estratégias criativas podem realmente impactar de forma positiva a saúde no município”.

Confira o Webdoc Brasil, aqui tem SUS sobre o trabalho com as gestantes em Cunha Porã-SC:

Prevenção do câncer: serviços do SUS abrangem todas as idades

Mulheres com idade entre 50 e 69 anos podem ter acesso à mamografia de rastreamento sem precisar passar por uma consulta médica, podendo solicitar o encaminhamento na Unidade Básica de Saúde. Assim como a mamografia, o acesso ao exame papanicolau é garantido pelo SUS. O rastreamento do câncer do colo do útero é feito por meio do exame em mulheres de 25 a 64 anos. Outra importante garantia estabelecida pelo SUS é o acesso à vacina contra o HPV, que previne o câncer do colo do útero. A vacina é um direito das meninas de 9 a 14 anos. A vacinação combinada com o exame papanicolau, pode representar a primeira geração de mulheres livres desse tipo de câncer no país.

Como exemplo de uma experiência exitosa do SUS relacionada ao câncer de mama é possível destacar o trabalho realizado em Três Rios, no Rio de Janeiro, que consiste na organização do acesso ao atendimento oncológico, voltado para mulheres com câncer de mama, que foi reformulado a partir da Regionalização da Saúde e da Regulação do acesso de todas as pacientes. De acordo com Alessandra Silva, coautora do projeto, as mudanças garantem hoje melhor acolhimento, acesso oportuno e ágil dentro do SUS. “A gente precisava articular uma rede e preparar os profissionais para acolher e caminhar junto com essas pacientes. Eu, como mulher, vejo que esse tipo de ação traz segurança, é ótimo saber que existem políticas públicas que estão focadas em apoiar as mulheres no difícil processo de superação do câncer de mama”.

Confira o Webdoc Brasil, aqui tem SUS sobre a reorganização da rede de atendimentos as pacientes com câncer de mama, realizado em Três Rios -RJ:

Construção da equidade no SUS

O acesso aos serviços de saúde é garantido pelo SUS à todas as mulheres, independente da orientação sexual ou identidade de gênero. Por meio da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, o SUS iniciou um caminho para a construção de mais equidade, com respeito à diversidade, garantia do acesso universal à saúde pública e   repudiando práticas de discriminação e preconceito nas Unidades de Saúde.

Ações da Saúde no combate à violência contra mulher

No Brasil, 4,7 milhões de mulheres foram vítimas de agressão física em 2018, uma média de 536 agressões por hora, segundo levantamento divulgado nessa última semana pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto Datafolha. A pesquisa registrou que 27,4% das brasileiras com mais de 16 anos sofreram algum tipo de violência no ano passado (de ofensa verbal e ameaça a espancamento) e que 59% da população afirma ter presenciado uma mulher sendo agredida verbalmente ou fisicamente nesse período. A relação com o agressor também foi investigada e 76% das entrevistadas disseram que o autor da agressão era um conhecido, companheiro, namorado ou cônjuge.

O atendimento especializado e integral para mulheres vítimas de violência doméstica e sexual no Sistema Único de Saúde (SUS) é garantido por lei. A Constituição estabelece, entre outros direitos, acompanhamento psicológico e cirurgias plásticas reparadoras. Algumas experiências exitosas mostram que é possível ir além e ampliar a rede de cuidado, em São Luís-MA, por exemplo, foi implantado o Setor de Atividades Especiais Espaço Mulher (SAEEM) que acolhe mulheres em situação de violência no Hospital de Urgência e Emergência Dr. Clementino Moura (Socorrão II). O projeto funciona em rede através da parceria com a Delegacia da Mulher de São Luís e outras instituições.

Silvia Leite, autora do trabalho, e a equipe formada por mulheres profissionais da saúde, visitam mais de uma vez por dia as enfermarias e consultam a lista de mulheres que deram entrada no hospital. Elas atendem cerca de 37 casos por mês. “O atendimento da vítima de violência doméstica não é um atendimento comum, ela chega para retirar uma bala, operar uma perna ou braço fraturado e nesse cenário nós temos que trabalhar o subjetivo dela, saber o que aconteceu, oferecer ajuda, explicar quais são os direitos dela e que é possível romper o ciclo da violência. O grande resultado para nós é ver que através do nosso trabalho essas mulheres conseguem realmente mudar de vida”, diz Silvia.

Confira o Webdoc Brasil, aqui tem SUS contando um pouco da história de uma mulher que sofreu tentativa de feminicídio e através do trabalho da equipe do SAEEM está reconstituindo a vida:

 

Fonte: SUSConecta
Publicado em 11/03/2019

Bancada da bula reforça presença no Congresso para fazer política “sem intermediários”

Proprietário de um dos maiores laboratórios do país e eleito suplente ao Senado, Ogari Pacheco afirma que terá atuação ativa em defesa dos interesses do setor. Reportagem de Diego Jungueira e Reinaldo Chaves para a Repórter Brasil mostra a força do lobby da indústria farmacêutica sobre o Congresso Nacional e sobre o poder Executivo para favorecer o setor de medicamentos.

O que leva um milionário empresário paulista da indústria farmacêutica a desembolsar 1,5 milhão de reais na última campanha eleitoral e garantir uma vaga de suplente no Senado pelo Tocantins? Não precisar mais de “intermediários”, explica Ogari Pacheco, fundador de um dos maiores laboratórios brasileiros, o Cristália.

Aos 80 anos, o médico estreia na política sem dosar as palavras. Ele deixa claro que vai influenciar o Congresso nas discussões que interessam às corporações farmacêuticas. “A gente sempre critica que tem que se valer de um intermediário. Mas nada melhor do que alguém da área”, diz o empresário à Repórter Brasil.

Um acordo fechado com o cabeça da chapa, o senador Eduardo Gomes (MDB-TO), garante a Pacheco um subgabinete informal, que ficará responsável pelos projetos da área da saúde durante o mandato. “Ele [Gomes] é que vai tomar posse, mas eu vou começar a trabalhar já”. O senador confirma “participação irrestrita” do suplente no mandato.

Dono de fortuna pessoal de 407 milhões de reais, Pacheco não está sozinho. Executivos ligados a 462 laboratórios de medicamentos, distribuidoras e farmácias doaram na última eleição 13,7 milhões de reais para 356 candidatos, segundo levantamento da Repórter Brasil. Entre eles, estão o governador eleito João Doria (PSDB-SP), o deputado federal Arlindo Chinaglia (PT-SP) e os ex-deputados Rogério Rosso (PSD-DF) e Marcus Pestana (PSDB-MG), que não se elegeram.

A pesquisa listou os sócios e administradores das empresas ativas inscritas na Receita Federal que fabricam, distribuem ou vendem medicamentos, produtos farmacêuticos e farmoquímicos. Os nomes foram cruzados com os doadores das eleições de 2018, segundo o Tribunal Superior Eleitoral.

A doação de pessoas físicas é permitida por lei, mas pode revelar influências de um setor que atua no Congresso em prol de seus interesses. “O lobby funciona com apoio em campanha e contratos de consultoria, como é em todo lugar do mundo”, diz Reinaldo Guimarães, pesquisador da UFRJ e ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde (2007 a 2010). “O mercado farmacêutico no mundo está acima de 1 trilhão de dólares. A capacidade que um mercado dessa magnitude tem de influenciar é enorme”.

Em 2010 e 2014, quando o financiamento privado de campanhas ainda era permitido, o setor farmacêutico doou 26 milhões de reais e 57 milhões de reais, respectivamente, para 1.404 candidatos ao todo, segundo as doações declaradas ao TSE. Porém, suspeitas de caixa 2 e pagamento de propina colocaram a empresa líder em doações, a Hypera Pharma (ex-Hypermarcas), sob a mira da Lava Jato.

Um ex-diretor da Hypera admitiu em delação premiada ter repassado 30 milhões de reais, entre 2011 e 2015, a políticos da alta cúpula do MDB, como o ex-deputado federal Eduardo Cunha. Em troca, os parlamentares aprovariam medidas favoráveis à empresa, como a liberação para venda de medicamentos sem prescrição em supermercados — o que de fato foi aprovado pela Câmara em 2012, mas vetado pela então presidenta Dilma Rousseff (PT).

Longe da crise, perto dos políticos

Mesmo diante da crise econômica brasileira, o mercado de medicamentos se destacou nos últimos anos por continuar em forte expansão. Em 2016, quando o PIB nacional recuou 3,6%, o setor avançou 18%, com R$ 63 bilhões em vendas. Hoje o Brasil é o sétimo maior mercado do mundo e caminha para ocupar a quinta posição em dois anos.

Os gastos e incentivos do poder público têm participação importante nesse mercado, o que explica também o interesse do setor farmacêutico no jogo político. Por um lado, o Sistema Único de Saúde (SUS) responde por cerca de 19 bilhões de reais das compras de remédios no Brasil. Por outro, o setor farmacêutico recebe generosas isenções fiscais anualmente, estimadas hoje em 9,5 bilhões de reais, segundo a Receita Federal.

Sediado na pequena Itapira (SP), o Cristália triplicou o faturamento na última década, atingindo 2 bilhões de reais em 2018. Seu maior cliente é o SUS, que responde por metade do faturamento obtido com hospitais.

Além de investir pesado na ampliação de sua capacidade industrial, contando também com apoio do poder público, o Cristália fez doações milionárias nas últimas três eleições. Em 2014, foram investidos 4,3 milhões de reais em candidatos de diferentes espectros políticos, como a então presidenta Dilma Rousseff, o diretório nacional do PSDB e legendas como MDB, DEM, PSC e PCdoB. O mesmo aconteceu em 2010, quando as doações alcançaram 900 mil reais.

“O laboratório nunca individualmente teve envolvimento político”, afirma Pacheco. Ele diz que as doações foram estimuladas pelo FarmaBrasil, grupo que representa as farmacêuticas nacionais e acompanha a Frente Parlamentar da Química, criada em 2012. “Eles solicitavam: ‘A frente é composta por A, B C, D parlamentares. Vocês poderiam contribuir da seguinte maneira: fulano doa para A, outro pra B, C…’. Foi assim”, relata. Leia entrevista com Ogari Pacheco.

Com influência no meio político, o laboratório recebeu em 2013 a presidenta Dilma Rousseff e o então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), durante a inauguração de uma fábrica no interior de São Paulo. A planta custou 208 milhões de reais — dos quais 58 milhões de reais dos cofres federais, segundo informações do Palácio do Planalto.

O governador tucano voltou à região em 2017 para inaugurar o novo centro de distribuição do grupo, um megainvestimento de 400 milhões de reais erguido sobre um terreno cedido pela prefeitura local. Além da fábrica, a região também ganhou duas marginais e um anel viário sobre a rodovia SP-147 — construídos pelo governo estadual em frente ao novo prédio do Cristália, ao custo de 26 milhões de reais.

Foi a expansão do Cristália para o Tocantins que levou o empresário paulista a conhecer Eduardo Gomes e a entrar para a política pelo estado. “Através das lideranças políticas locais, ele [Gomes] procurou oferecer algumas vantagens, como incentivo fiscal e doação de terreno. Isso não me seduziu”, afirma. O político então o convidou para fazer parte da chapa ao Senado. “Aí a coisa mudou de figura”.

Agora no Congresso, um de seus objetivos será acelerar o processo de avaliação e aprovação das patentes de medicamentos, que hoje leva em média 13 anos para uma resposta final do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi). O tema é de especial atenção do Cristália, recordista nacional em número de patentes, com 106 no total, sendo 89 no exterior.

Sua outra frente de atuação serão os debates envolvendo o descarte de medicamentos, tema de ao menos 15 projetos de lei no Congresso. Atualmente não há regulamentação sobre a questão, e os remédios acabam dispensados no lixo comum, provocando danos à saúde e ao meio ambiente.

Pacheco é contra as fabricantes assumirem sozinhas os custos pelo descarte e defende que a responsabilidade seja compartilhada com farmácias, unidades de saúde e distribuidoras.

O governador e as farmacêuticas

Os incentivos fiscais às farmacêuticas e o descarte de medicamentos foram tema de investigação do Ministério Público de São Paulo em 2017, após reportagem da rádio CBN revelar que a prefeitura paulistana, à época comandada por João Doria (PSDB-SP), havia recebido medicamentos doados perto do prazo de validade e sem o recolhimento de impostos.

Doria, atual governador paulista, foi o décimo candidato mais apoiado pelo setor farmacêutico em 2018. Ele recebeu 270 mil reais de quatro executivos, dois deles ligados a farmácias e outros dois donos de distribuidoras de medicamentos — que prestam serviços para laboratórios e drogarias.

Quando esteve à frente da prefeitura, Doria idealizou um programa que, além das doações, previa a privatização da assistência farmacêutica no município, o que beneficiaria diretamente as farmácias. O Remédio Rápido, apresentado em coletiva de imprensa em fevereiro de 2017, pretendia transferir a distribuição de medicamentos da rede pública — feita por meio de Unidades Básicas de Saúde (UBS) e AMAs (Assistência Médica Ambulatorial) — para as farmácias particulares. A ideia, no entanto, prejudicaria a distribuição de medicamentos em áreas periféricas e mais pobres da cidade, onde é menor a presença das grandes redes farmacêuticas. A proposta não saiu do papel.

Doria anunciou, na mesma coletiva de imprensa, que o município receberia 120 milhões de reias em medicamentos doados de 12 laboratórios farmacêuticos. O tucano convenceu o então governador Geraldo Alckmin a isentar o ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre as doações, em favor dos laboratórios parceiros e das transportadoras.

Se o município tivesse recebido os 120 milhões de reais anunciados, teria deixado de recolher quase 66 milhões de reais em impostos, mas as doações não chegaram a 10% do prometido. Ao final, 10 laboratórios doaram 8,8 milhões de reais em produtos, com renúncia fiscal de 1,2 milhão de reais. A investigação do Ministério Público de São Paulo foi arquivada por não identificar danos aos cofres municipais.

O governador informou, por meio da sua assessoria de imprensa, que as doações de medicamentos foram parte de uma “política inovadora” de sua gestão. Com relação às doações eleitorais, a assessoria disse que “foram todas feitas estritamente dentro do que determina a Lei Eleitoral” e que “não representam sequer 1% do total arrecadado pela campanha”. A rigor, o montante representa 1,44%.

Indústria rica, mas dependente do exterior

Dos três candidatos mais ricos do ano passado, dois são empresários do setor farmacêutico. Além de Ogari, na terceira posição, Fernando de Castro Marques (SD-DF), principal acionista do laboratório União Química, gigante na produção de medicamentos de uso humano e animal, declarou patrimônio de 668 milhões de reais ao TSE e liderou o ranking.

Derrotado na disputa ao Senado, o empresário doou 7,1 milhões de reais para 14 políticos em 2018 — incluindo  2,7 milhões de reais para a própria campanha — e foi o executivo do setor campeão em doações. Marques afirma não esperar nenhuma atenção particular dos parlamentares que apoiou. “São pessoas que admiro e que vão trabalhar em prol do desenvolvimento do Distrito Federal. Meu interesse é só esse, não tem outro interesse não”, disse em entrevista à Repórter Brasil.

O senador Eduardo Gomes disse que convidou Pacheco para a chapa como representante do Democratas e por suas atividades empresariais no Tocantins. “A sua participação no mandato é irrestrita, pois ele e o primeiro suplente são eventuais substitutos na vacância do titular, como prevê a legislação eleitoral”, afirmou em nota, que destaca que as doações foram feitas dentro dos critérios estabelecidos pela lei.

O deputado Arlindo Chinaglia disse que “todas as doações de campanhas, não só estas, jamais pautaram minha atuação”. Já Marcus Pestana, que não foi reeleito, afirmou que as doações recebidas condizem com a legislação brasileira. “Não há absolutamente nada a ver entre minha atuação parlamentar no tema e as doações”. Rogério Rosso não respondeu.

“A indústria pressiona deputados, comissões [no Congresso] e também as associações médicas”, afirma o pesquisador da Fiocruz Jorge Bermudez. “Muitas vezes o interesse da indústria não tem nada a ver com a saúde. A indústria quer o produto mais lucrativo para ela”, diz.

Apesar do tamanho e do apoio público, a indústria farmacêutica causa prejuízos à balança comercial brasileira ano após ano. Em 2017, foram pelo menos 5,3 bilhões de dólares de déficit, segundo dados do então Ministério da Indústria e do Comércio Exterior.

O ponto fraco é a produção quase inexistente de matéria-prima, os chamados insumos farmacêuticos ativos, ingredientes usados na fabricação dos medicamentos. O déficit leva o país a importar 90% de toda a matéria-prima que necessita. A exceção é o Cristália, que importa 47% e produz a maior parte em casa.

Em seu “subgabinete” no Senado, Pacheco promete reverter esse cenário. Ele diz que já está elaborando um projeto de lei para estimular a produção nacional de insumos. “E sem pedir um centavo pro erário público”, garante.

Fonte: Repórter Brasil
Publicado em 20/02/2019

Saúde: 7 bilhões a menos, após a Emenda 95

Demonstração didática de um crime: para manter o pagamento de juros ao baronato financeiro, Estado corta gastos sociais estratégicos. Do que resta, parte crescente é desviada para reforçar bases políticas dos parlamentares

 

 

Com a recente sanção da Lei Orçamentária (LOA) de 2019, cabe indagar: como ficará o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) no primeiro ano do mandato de Jair Bolsonaro?

O orçamento de Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) terá dotação de R$ 120,4 bilhões, crescimento nominal de apenas 2,5% em relação aos valores empenhados de 2018. Excluídas as emendas impositivas (cuja destinação depende da relação entre o parlamentar e suas bases políticas), a variação é de apenas 1,2%, abaixo da inflação de 3,75% (IPCA). Isto é, o orçamento de saúde para 2019 sequer repõe a inflação de 2018. O quadro pode se agravar diante de eventual contingenciamento de recursos, sobretudo levando em conta a possibilidade de o governo perseguir um resultado primário mais restritivo.

O decréscimo real é consequência das regras fiscais vigentes, especialmente a Emenda Constitucional nº 95/2016, que afeta duplamente a saúde. Primeiro, as dotações globais, para cada Poder e órgão autônomo, não podem crescer acima da inflação registrada entre julho de 2017 e junho de 2018 (4,39%). Portanto, acréscimos de orçamento destinados à saúde deverão ser compensados com reduções em outras áreas, tendo em vista que a despesa já está programada no teto.

Se tomado o orçamento de 2018, percebe-se que as dotações finais de ASPS (fora emendas impositivas) sofreram decréscimo de quase R$ 1 bilhão em relação ao orçamento inicialmente aprovado. Significa dizer que não apenas a saúde fica limitada pelo teto global de despesas como, na prática, perde orçamento para suplementação em outras áreas (por exemplo, recursos de programas como Mais Médicos e Farmácia Popular foram remanejados para estabelecer o subsídio ao diesel [1]).

Outro impacto da EC 95 sobre a saúde se refere ao congelamento do piso de aplicação. A emenda dispôs que o valor mínimo obrigatório para ASPS equivale a 15% da Receita Corrente Líquida – RCL de 2017, acrescidos da inflação. Com a nova regra, o piso para 2019 é de R$ 117,3 bilhões. Caso não vigorasse o piso da EC 95, o valor mínimo seria de R$ 127 bilhões (15% da RCL estimada para 2019), R$ 6,6 bilhões acima dos valores previstos para 2019. É este o montante da perda para o SUS em 2019, consequência direta do congelamento do piso para o setor[2].

Além disso, do orçamento de R$ 120,4 bilhões, R$ 7 bilhões são emendas impositivas que, conforme destacado, dependem das relações políticas entre parlamentares e suas bases eleitorais. Portanto, deveriam constituir um recurso adicional àqueles regularmente contabilizados para efeito de cumprimento do piso, apesar de a Emenda Constitucional nº 86/2015 dispor em contrário. Se não consideradas essas emendas, os recursos ASPS seriam de R$ 113 bilhões, aquém do piso.

Quando se analisa a evolução dos valores efetivamente pagos em cada exercício, o quadro se torna mais crítico. Entre 2017 e 2018, os valores pagos de emendas ASPS cresceram 104%, alcançando R$ 6,8 bilhões. Do total do orçamento ASPS empenhado em 2018 (R$ 117,5 bilhões), R$ 11,7 bilhões não foram pagos (não se converteram, por exemplo, em recursos transferidos aos entes para apoiar os serviços de saúde), dos quais apenas R$ 1 bilhão é referente a emendas impositivas. Significa dizer que não apenas o orçamento ASPS para 2019 decrescerá em termos reais, mas também haverá um passivo adicional dos valores empenhados e não pagos em 2018, afetando ainda mais a disponibilidade financeira no presente exercício.

Conforme demonstrado, o terceiro ano do Novo Regime Fiscal impactará negativamente o financiamento do SUS e desmonta o argumento de que o teto de gasto induziria a priorização de setores estratégicos. A lógica orçamentária não se exaure numa técnica de otimização da alocação frente a necessidades dadas. Diante do conflito distributivo intensificado, é preciso observar como se distribui a capacidade de controlar a destinação dos recursos orçamentários.

Entre usuários das políticas sociais e os setores mais organizados e capazes de influenciar o orçamento (pelo lado da despesa e da receita), em quem você apostaria?

Notas

[1] Embora, no caso da subvenção ao diesel, não seria necessária a redução de outras despesas, tendo em vista que se tratou de crédito extraordinário, cujos valores não são contabilizados no teto de gastos.

[2] Em ocasião anterior, escrevi artigo sobre as perdas para o SUS em 2019, tendo em vista a proposta orçamentária encaminhada pelo Poder Executivo. Disponível em: http://brasildebate.com.br/efeitos-da-ec-95-uma-perda-bilionaria-para-o-sus-em-2019/.

Fonte: Brasil Debate
Por Bruno Moretti –  Economista pela UFF. Mestre em economia pela UFRJ. Doutor em sociologia pela UnB. Professor visitante do Departamento de Sociologia da UnB

20 anos da Lei dos Genéricos: “A lei deu certo porque não foi uma medida isolada“

Após 20 anos da Lei dos Genéricos, Brasil é o país mais avançado da América Latina nesse aspecto. Mas acesso a medicamentos ainda é um problema. A lei foi promulgada em 10/02/1999. Ao lado da Política Nacional de Medicamentos, ela tem sido importantíssima para aumentar a oferta e diminuir os custos – não só para quem chega no balcão da farmácia mas também para o Estado, que economiza na compra para distribuição e ainda atua como produtor.

 

 

Em entrevista ao site Outra Saúde, Evangelina Martich, doutora em política social e coordenadora de projetos no Instituto de Saúde Global de Barcelona falou sobre os impactos da lei no Brasil. Durante o mestrado, realizado na Fiocruz, Evangelina se debruçou sobre as leis de genéricos no Brasil e na Argentina. Nesta entrevista ela explica por que o Brasil se tornou o país mais avançado da América Latina nesse aspecto, mas fala também dos problemas de acesso a medicamentos.

Quais são os antecedentes da Lei dos Genéricos no Brasil? Como era o acesso da população a medicamentos, qual era o grau de desenvolvimento da indústria nacional e quais condições econômicas e políticas foram pano de fundo para a construção desta lei?
O Brasil tinha há muito tempo uma indústria de medicamentos similares bem desenvolvida. É importante diferenciar essas categorias de medicamentos: medicamentos similares são cópias dos medicamentos inovadores, e os genéricos são intercambiáveis: no momento do registro sanitário, apresentam-se provas de bioequivalência e biodisponibilidade. Os genéricos são portanto mais seguros do que os similares. Então houve na época uma questão com as fabricantes de similares, que temiam perder uma parcela do mercado. Mas a indústria brasileira, no momento em que a Lei dos Genéricos foi promulgada, viu aí um nicho de mercado e no geral não se opôs.

Ao contrário do que aconteceu na Argentina. Lá, quando deputados discutiram a lei, a indústria nacional foi o principal opositor à lei, porque as empresas argentinas já eram produtoras de medicamentos de marca, e não queriam concorrência no mercado. E a finalidade última da Lei dos Genéricos é aumentar a concorrência no mercado. A lei de oferta e demanda básica da economia explica: quanto mais opções de um mesmo produto no mercado, mais os preços tendem a cair. Sempre falo que podemos pensara questão dos medicamentos comparando outros produtos cuja disponibilidade no mercado seja ampla e cujos preços tendem se equilibrar. Mas temos que considerar que a demanda por medicamentos é inelástica. Isso significa que se uma pessoa precisa de remédio, se dispõe a pagar tudo o que tem e até o que não tem por aquele medicamento específico de que ela precisa. De fato há pessoas que caem na pobreza para pagar por medicamentos. Não se compra por escolha, mas por necessidade.

E existe ainda a discussão sobre distribuição e a produção de medicamentos no setor público.
Sim, são coisas diferentes. Uma coisa é a indústria pública de medicamentos, e outra é a indústria privada de medicamentos genéricos. E as duas são válidas. O Brasil tem uma indústria pública de medicamentos forte, liderada por Farmanguinhos, na Fiocruz. Houve um tempo em que Farmanguinhos produzia 25% dos medicamentos que circulavam no SUS, a indústria pública brasileira é bem forte.

Vale a pena destacar que há duas discussões: se os países devem produzir medicamentos – eu avalio que sim, que devem –, e o que eles devem produzir.Porque a ideia da produção pública é que há um investimento público para responder a uma demanda epidemiológica, para dar respostas reais e atingir resultados na saúde. Essa é a lógica da produção pública de medicamentos. Não vale a pena produzir remédios que não sejam os demandados pela população.

E em paralelo temos a produção privada de genéricos. Há muitos laboratórios farmacêuticos que inclusive produzem os remédios inovadores e também os genéricos, eles próprios geram concorrência no mercado dentro da própria empresa.

Quando a Lei foi aprovada no Brasil, a produção de genéricos já era uma realidade em outros países? Onde os genéricos chegaram primeiro?
Na América Latina o Brasil foi o primeiro, e na região o país é hoje o que mais vende genéricos, eles representam perto de 30% do total de vendas de medicamentos. Mas países desenvolvidos já produziam há muito mais tempo. E mesmo a parcela de venda de genéricos no Brasil é baixa em relação a esses países, onde a venda de genéricos está acima de 60% do total.

Por quê?
Ninguém sabe ao certo. Mas o fato de eles terem uma produção mais antiga é uma variável. Nenhum país começou a disponibilizar genéricos e, de um dia para o outro, eles começaram a liderar as vendas. Mas há outros fatores. Nem todos os remédios já possuem versões genéricas, e também é preciso ainda fazer um trabalho junto à população para convencê-la da qualidade dos genéricos, porque muitas pessoas ainda têm a crença de que eles são ruins. O marketing da indústria farmacêutica sobre a categoria médica é forte, e os próprios médicos, mesmo que a lei exija que nas receitas os medicamentos sejam indicados pela sua denominação comum internacional [o nome oficial, não comercial], muitas vezes eles colocam ao lado, entre parênteses, o nome do remédio de marca, do laboratório de que ele ‘gosta’.

Outra questão é que o Brasil faz bem o controle de preços. Quando se chega a uma farmácia brasileira, o genérico de fato é mais barato do que o medicamento de marca. Na Argentina, por exemplo, isso não é verdade. Às vezes ele é até mais caro. Porque a lei argentina não traz esta obrigação. Já no Brasil a lei é muito clara: o preço do medicamento genérico precisa ser pelo menos 35% mais baixo do que o do produto inovador.

No Brasil, a lei deu certo porque não foi uma medida isolada, e  isso ajuda a explicar por que o país tem uma política de medicamentos avançada. Se você pensar na implantação de genéricos a partir de uma cesta de ferramentas, o Brasil implementou todas as ferramentas ao mesmo tempo. A Lei dos Genéricos foi promulgada na mesma época da criação da Anvisa, uma agência que é reconhecida no mundo inteiro pela boa avaliação dos medicamentos. Então o Brasil criou a Anvisa para regular; criou uma lei de Genéricos que determina explicitamente que os eles devem ser mais baratos; criou a CMED [Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos], que regula os preços de venda no mercado – não se pode vender remédios pelo preço que se quer; e criou a Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS], que analisa as tecnologias sanitárias a serem cobertas pelo SUS, fazendo uma avaliação de custo-efetividade em relação às tecnologias já existentes para ver quando vale a pena o SUS cobrir aquela nova tecnologia.

O fato de ter implantado tudo isso paralelamente ajuda a explicar por que essa política se mantenha com sucesso há 20 anos. O Brasil já trocou de governos, de ministros, a lei dos genéricos continua funcionando muito bem, junto com a Política Nacional de Medicamentos.

Deu tão certo que já houve momentos de disputa pela ‘paternidade’ da lei…
Sim, e ela surgiu no governo de Fernando Henrique Cardoso. Agora, quem foi o impulsor da política de medicamentos foi o Lula. Na campanha presidencial ele falava do Farmácia Popular, eu me lembro na época que essa foi uma das promessas de campanha dele. E quando José Gomes Temporão foi ministro da Saúde, ele foi um ministro muito ativo em relação à Política de medicamentos e foi aliás  um dos primeiros do mundo a implementar uma licença compulsória[EM2]  (uma suspensação aos direitos de patentes permitindo assim a produção genérica)

Foi no caso da quebra de patente de um remédio para tratamento da Aids, certo?
Sim.

Em que medida a Lei de fato melhorou o acesso da população aos medicamentos?
É importante entender que a finalidade da Lei é criar competitividade por preços no mercado. A existência da lei gera um espaço para o aumento da oferta no mercado. Existem pelo menos duas vias de acesso a medicamentos. Uma é a via comercial, quando você vai à farmácia e paga por eles. Outra é a via institucional, quando os governos fazem compras centralizadas e distribuem gratuitamente, por exemplo no SUS. Na América Latina e no Brasil, a principal via é o mercado, mesmo que o Brasil tenha implantado essa via institucional.

Por isso, a variável do preço gera uma barreira importante ao acesso. A criação da Lei de Genéricos trouxe a possibilidade de ter produtos a preços menores, e além disso o Brasil criou mecanismos para a expansão da indústria e da produção nacional. Quando comentei que as empresas brasileiras identificaram um nicho de mercado, foi porque passou a haver esse incentivo à produção industrial de genéricos. Aqui existe muita oferta, quando se vai à farmácia é possível ver a quantidade de genéricos nas prateleiras. Então a lei foi, sim, importante para criar oferta e preços menores. E a indústria nacional se fortaleceu muito.

Em comparação, na Argentina isso não foi feito. A lei criou a obrigação de que médicos escrevam na receita a denominação comum internacional, e é proibido colocar o nome da comercial dos remédios. Mas não foi feito nada além disso. Dizemos que, lá, a lei transformou todos os produtos disponíveis em genéricos, porque eles não usam mais o nome de marca. Mas não há preços menores, nem aumento na produção industrial.

Quais são os problemas ou limitações da nossa Lei dos Genéricos?
Sinceramente, não sei se tenho críticas a esta lei. Um problema mais geral é na verdade a garantia de fato do acesso aos medicamentos. O Brasil é um país gigante com serviços de saúde extremamente descentralizados, e é muito difícil comparar a capacidade de resposta de um grande município e de uma pequena cidade, que muitas vezes não tem boas condições de gestão.

Em muitas cidades os usuários saem das unidades de saúde com as prescrições, mas não com os medicamentos em mão.
Sim. Uma crítica que tenho à Política brasileira de medicamentos em geral é em relação ao acesso a medicamentos ambulatoriais. Há dois tipos de remédios: os hospitalares, que as pessoas recebem quando estão hospitalizados, e os ambulatoriais, que são tomados em casa. Por exemplo, quando alguém vai à unidade de saúde, sai com uma receita de um medicamento. No caso do setor privado, a lei brasileira não obriga os planos privados de saúde a cobrirem medicamentos do tipo ambulatorial. A pessoa vai ao médico, sai com uma prescrição, vai à farmácia e paga do seu bolso. Em outros países, os planos precisam cobrir um percentual desse valor, como 40%. Isso é um problema no Brasil, onde quase 30% da população usa planos de saúde. A pessoa consegue pagar o plano todo mês, mas não consegue pagar pelos remédios.

Existe um caso que volta e meia chama atenção no Brasil: o do medicamento Sofosbuvir, que tem um custo muito elevado e é importante para  cura da hepatite C. No ano passado a patente foi dada à farmacêutica Gilead e houve grande pressão para que essa patente não fosse concedida, para que a Fiocruz pudesse produzir o genérico, o que geraria grande economia. Esse é um caso incomum ou há outros semelhantes?
Na verdade a discussão desse medicamento específico foi uma questão em todo o mundo. Seu preço é absurdo, e em geral quando os medicamentos são muito caros os sistemas de saúde financiam, pois ninguém pode pagar por eles. Mas os sistemas de saúde também ficam prejudicados, os orçamentos públicos não são infinitos. Então houve uma grande discussão global, nos Estados Unidos, na Espanha, etc.

O problema dos preços altos  é que, segundo as farmacêuticas, elas investem muito no processo de desenvolvimento, portanto esses custos devem ser repassados ao preço. É em parte verdade, mas o fato é que ninguém sabe realmente quanto custa cada uma das etapas da produção de um novo remédio: as pesquisas, os testes clínicos, a produção, a publicidade, todas as etapas até que eles cheguem às prateleiras. Isso não é revelado, há apenas uma conta do processo total.

Você comentou que a nossa política de medicamentos, incluindo a legislação referente aos genéricos, é bem ‘redonda’, e por isso tem sucesso há tanto tempo, mesmo mudando os governos. Há riscos com este novo governo, de Jair Bolsonaro?
Sim, total. Em relação a tudo.

Mas quais seriam, nesta questão específica?
Com certeza podemos nos preocupar, embora seja difícil saber o que podemos esperar. Ontem mesmo [06/02, dia anterior à realização da entrevista], por exemplo, um deputado dele apresentou um projeto de lei na Câmara para proibir alguns tipos de contraceptivos no Brasil. É ridículo. A verdade é que podemos esperar qualquer coisa.

Fonte: OutraSaúde
Publicado em 11/02/2019

Governo promove ‘privatização da loucura’ em sistema de saúde mental do país

Modelo incentiva eletrochoque, internação compulsória e hospitais psiquiátricos. Quem ganha são os interesses econômicos da indústria farmacêutica e da indústria de produção de manicômios.

 

 

Existe uma expressão no campo progressista da psicologia e psiquiatria no Brasil que diz o seguinte: “saúde não se vende, loucura não se prende”. Trata-se de um lema da luta antimanicomial, que desde o início do século 21 é travada contra o sistema de saúde mental que se baseia em métodos como a internação compulsória das pessoas consideradas “loucas”. Essas pessoas, em “sofrimento psíquico” ou dependentes de drogas, por exemplo, são ainda hoje objeto de tratamentos como a eletroconvulsoterapia (popularmente, eletrochoque), muitas vezes associada à tortura.

Desde 2018, ainda no governo Michel Temer, o sistema antimanicomial humanizador está em xeque, com a Nota Técnica Conad 01/2018. Na quarta-feira (6), o governo Jair Bolsonaro avançou ainda mais no sentido de reintroduzir no país a lógica que compromete mais de 50 anos de uma reforma psiquiátrica desenvolvida a partir da Europa – em países como Itália e França – que pretende reinserir “o louco” na sociedade.

Com as diretrizes da nova Nota Técnica n° 11/2019, do Ministério da Saúde e órgãos a ele ligados, incentiva-se a internação involuntária ou compulsória da pessoa com saúde mental comprometida, por decisão de pessoas ou entes alheios à vontade do paciente: médico, psiquiatra, o Estado ou familiares. Mais do que isso, a tendência é que se criem milhares de leitos (em hospitais públicos, de economia mista ou privados) bancados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), para tratar “loucos” segundo a lógica ultrapassada do século 20 cujo símbolo mais popularmente conhecido é o “eletrochoque”.

Por outro lado, trata-se de fato da privatização da loucura, em lugar do lema “saúde não se vende, loucura não se prende”. Com as normas da Nota Técnica, saem ganhando os interesses econômicos da indústria farmacêutica e da indústria de produção de manicômios.

“O que nós entendemos, enquanto psicólogos e conselhos de psicologia, é que a decisão de internação é do usuário do serviço, se ele entender que precisa de cuidados em tempo integral numa instituição. Essa é uma decisão do sujeito, e não do Estado, do médico ou da psicóloga”, diz Beatriz Brambilla, psicóloga e conselheira do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP).

“Durante os últimos anos, a gente vinha lutando pelo fechamento de todos os leitos de hospitais psiquiátricos, apostando em modelos de base comunitária e territorial de cuidado (do paciente). Agora, desde o ano passado, tem sido retomado este modelo de tratamento de segregação, internação das pessoas, muito focado apenas numa perspectiva biológica, dos sintomas e da cura”, acrescenta.

Segundo a psicologia contrária ao modelo que os governos Temer e Bolsonaro vêm adotando, o hospital psiquiátrico é extremamente prejudicial à pessoa submetida a sua lógica. “O sujeito perde as referências do trabalho, da família, da comunidade, da sua vida diária”, diz Beatriz.

A Nota Técnica do governo deve ser avaliada, portanto, a partir de dois pontos de vista:

1) o que se refere ao modelo de tratamento do paciente, propriamente dito;

2) o sistema de financiamento dessa política, que, além de representar um retrocesso, é financiada pelo Estado.

Hoje, o SUS já é objeto dessa política e os hospitais psiquiátricos que possuem convênios com o sistema têm leitos destinados à população para esse fim.

Inspeção

Em junho do ano passado, foi lançado um relatório reunindo os resultados da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, realizada em 2017 nas cinco regiões do Brasil. A inspeção foi feita pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC/MPF).

“Foi uma inspeção em 40 hospitais psiquiátricos no Brasil. Nessa inspeção já encontramos muitos casos de internação compulsória, de pessoas que não querem estar nesses espaços e são levadas pela família ou mesmo pelo Estado, o que representa a anulação do sujeito”, afirma Beatriz Brambilla.

Essa lógica está sendo retomada. É uma prática, na rede do SUS, contrária ao a um modelo da reforma psiquiátrica de acordo com o princípio segundo o qual “todos são iguais perante a lei”, do artigo 5° da Constituição de 1988.

O retrocesso vai na contramão da legislação em vigor, construída ao longo de quase duas décadas, como a Lei Paulo Delgado (Lei 10.216/2001), que regula as internações psiquiátricas e promove mudanças no modelo assistencial aos pacientes portadores de sofrimento mental. Assim como a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), que rechaça explicitamente a questão da internação.

“Esse tema, como um todo, deve ser entendido segundo três eixos: do ponto de vista legal da evolução que vínhamos conseguindo; sob o aspecto clínico; e no que diz respeito ao modelo de saúde pública. Na minha leitura, tudo isso está ameaçado neste momento. É muito retrocesso”, conclui Beatriz.

Fonte: Rede Brasil Atual, por Eduardo Maretti
Publicado em 11/02/2019

Fiocruz Brasília realiza seminário internacional sobre fake news e saúde

Como as fake news afetam a saúde das pessoas? Para discutir o assunto, a Fiocruz Brasília, por meio de sua assessoria de comunicação, vai reunir jornalistas, pesquisadores, profissionais de saúde, estudantes e interessados no tema entre os dias 18 e 21 de março para o 2º Seminário Internacional e 6º Seminário Nacional as Relações da Saúde Pública com a Imprensa: Fake News e Saúde.

 

 

Mesas redondas e rodas de conversa integram a programação. Entre as novidades já confirmadas nesta edição do evento estão uma seção científica, com apresentação de trabalhos e relatos de experiências enviados por pesquisadores e trabalhadores de todo o país e um minicurso, ministrado pelo pesquisador do Centro de Pesquisas em Comunicação e Saúde (Comsanté), da Universidade de Quebec em Montreal, no Canadá, Alexandre Coutant.

Durante o minicurso Informar-se em um mundo de falsas informações: produzir e interpretar conteúdos no novo ecossistema informacional, os participantes analisarão os impactos das notícias falsas na saúde da população, a desinformação, conflitos e dilemas no mundo da saúde e também experiências reais diante das fake news. O minicurso tem vagas limitadas e as inscrições específicas para esta atividade serão abertas em fevereiro, por meio de formulário a ser disponibilizado no site da Fiocruz Brasília.

Outra novidade é a convocatória para desenhistas. Para incentivar, divulgar e promover a reflexão sobre o tema Fake News e Saúde, a partir do olhar de desenhistas do Brasil e do exterior, a organização do evento convoca cartunistas profissionais e amadores a enviarem seus desenhos de humor gráfico, que vão ser expostos durante o Seminário Internacional. Cada desenhista poderá participar com até três desenhos inéditos ou já publicados, que devem ser enviados até o dia 01 de março. Acesse a convocatória no site da Fiocruz Brasília e veja como enviar desenhos para exposição.

As inscrições para o seminário são gratuitas e devem ser feitas pela internet, para isso, basta preencher o cadastro disponível no Campus Virtual da Fiocruz. O evento conta com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Veja a programação

Fonte: SUSConecta
Publicado em 08/01/2019

Foto: RondoniaOnline

Fonte: Fiocruz Brasília

Não há médicos? Libere-se a telemedicina

O Conselho Federal de Medicina aprovou uma resolução que permite e regulamenta consultas, diagnósticos e até cirurgias a distância, tanto no SUS como no setor privado. A regra vai ser publicada esta semana e entra em vigor dentro de três meses, justo quando áreas remotas atendidas pelo Mais Médicos ainda sofrem com a saída de cubanos.

 

 

O relator da resolução no Conselho, Aldemir Soares, afirma que a decisão não tem nada a ver com os cubanos, mas que a consulta a distância pode “se aplicar” no caso das cidades que não conseguem atrair médicos. Matéria do Estadão destaca que nas cidades esse tipo de atendimento só vai ser permitido na segunda consulta (o primeiro contato entre médico e paciente deve ser presencial), mas em comunidades “distantes” não há essa exigência.

Enfim, a ideia é que os atendimentos virtuais não sejam tão frequentes, e a resolução determina que, no caso de tratamentos longos ou de pacientes com doenças crônicas, a cada 120 dias sejam realizadas consultas presencias. Outra imposição é que as consultas sejam gravadas e mantidas em sigilo médico – cabe ao profissional escolher a melhor forma de arquivo. Não fica claro como o médico fará para garantir o sigilo, dada a precariedade da nossa segurança digital individualmente…

Quanto ao diagnóstico, o texto permite que alguns exames, como de ouvido e garganta, possam ser feitos pela internet. A triagem para determinar qual tipo de atendimento o paciente deve receber também vai poder ser feita virtualmente. E tem as cirurgias. Soares diz que no Brasil já há 40 centros habilitados para que pacientes possam ser operados por robôs comandados por médicos a quilômetros de distância. Mas nesse caso um cirurgião da mesma especialidade deve ficar por perto.

A decisão não tem uma relação temporal só com as mudanças no Mais Médicos. Semana passada falamos sobre o anúncio do hospital Albert Einstein de que vai oferecer consultas virtuais por R$ 400 reais. O próprio CFM havia se posicionado contra, porque a prescrição de tratamentos e procedimentos sem exame é vedada pelo Código de Ética da profissão. Agora o Código parece ter deixado de importar… Mas, à Folha, Soares diz que a nova norma não contraria a posição anterior. “O código já previa que a telemedicina fosse regulamentada”.

No SUS, ao menos 10 estados já fazem atendimento a distância pelo programa Telessaúde, que começou em 2007.

Fonte: Outra Saúde
Publicado em 05/02/2019