A ONU disse que os países que enfrentam surto de zika vírus devem dar às mulheres acesso à interrupção voluntária da gravidez. O vírus é suspeito de ser a causa do aumento do número de casos de microcefalia em bebês.
Nesta sexta-feira (5), o principal comissário de Direitos Humanos da ONU, Zeid Ra’ad AlHussein, conclamou os países afetados pela epidemia a disponibilizar aconselhamento sobre saúde sexual e reprodutiva para mulheres e permitir o direito ao aborto. “As leis e as políticas que restringem acesso a esses serviços devem ser urgentemente revistas, em consonância com os direitos humanos, a fim de garantir o direito à saúde para todos”, disse o comissário, em um comunicado.
No Brasil, um dos mais afetados pela epidemia, a interrupção da gravidez é proibida, salvo em casos de estupro, riscos de vida para a mãe ou em caso de feto anencefálico. A microcefalia e outras má-formações dificilmente são diagnosticadas antes da 20ª semana de gestação, no quinto mês de gravidez. O número de casos de microcefalia associados ao zika tem ampliado a ocorrência de aborto ilegal e abriu uma discussão sobre o acesso à interrupção da gestação no país.
“Como eles podem pedir para essas mulheres não ficarem grávidas e não oferecerem a possibilidade de interromper a gravidez, se elas desejarem?”, disse a porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Cécile Pouilly, ao ser questionada sobre países como El Salvador, que criminalizam o aborto. A entidade da ONU fica em Genebra (Suíça).
Publicado em 05/02/2016
Fonte: RfI
Atenção! Governo lança orientações para profissionais e gestores no combate ao Zika
Nos últimos dois anos, o mosquito da dengue passou a transmitir também a febre Chikungunya, em 2014, e o vírus Zika, neste ano. O Zika está relacionado ao aumento de casos de microcefalia no Brasil.
Para enfrentar da situação, o Ministério da Saúde preparou uma série de informes e protocolos sobre dengue, chikungunya, Zika e a relação deste vírus com microcefalia, para subsidiar gestores e profissionais de saúde. Estes materiais serão constantemente atualizados nesta página.
Dois protocolos vão direcionar as ações nos serviços de saúde. O primeiro, de vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada ao vírus Zika, orienta para a identificação dos casos suspeitos, fluxo de notificação, investigação laboratorial e medidas de prevenção e controle.
Já o protocolo de assistência estabelece uma linha de cuidados, passando por orientação para as mulheres em idade fértil sobre planejamento familiar, cuidados no pré-natal, atenção ao parto e ao nascimento e assistência às crianças com microcefalia.
Os protocolos foram produzidos conjuntamente entre Ministério da Saúde, secretarias de estados e municípios da saúde, universidades, especialistas de diversas áreas da medicina, epidemiologia, estatística, geografia e laboratório.
Na atenção básica
- Avalie o risco epidemiológico para infecção por vírus da Dengue, Chikungunya e Zika, orientando quanto às ações de prevenção e controle e combate ao mosquito Aedes aegypti;
- Oriente para que se evite ir a lugares com presença do mosquito e para a necessidade de eliminar possíveis criadouros existentes em casa, como também, o acúmulo de água em latas, tampinhas de refrigerantes, pneus velhos, vasos de plantas, jarros de flores, garrafas, caixas d´água, cisternas, sacos plásticos e lixeiras, entre outros;
- Oriente também para o uso de telas nas portas e janelas para o mosquito não entrar;
- Ressalte, principalmente para as gestantes, as medidas para a proteção contra a picada do mosquito: vestir calça e blusa de mangas compridas e, se portar roupas que deixem áreas do corpo expostas, usar repelente. É importante verificar atentamente no rótulo a concentração do repelente e definição da frequência do uso para gestantes;
- Busque os meios disponíveis para garantir o acesso aos métodos contraceptivos e promova estratégias de educação em saúde sexual e reprodutiva envolvendo mulheres, homens, jovens e adolescentes, reforçando o planejamento reprodutivo e fornecendo subsídios para a escolha livre e informada. É importante reforçar o aconselhamento pré-concepcional;
- Para as gestantes, oriente quanto à suplementação de ácido fólico e sulfato ferroso conforme preconizado pelo Ministério da Saúde;
- Oferte o teste rápido de gravidez e intensifique a busca ativa de mulheres no início da gestação para que possam iniciar o pré-natal ainda no 1º trimestre (até a 12º semana). A busca ativa das gestantes faltantes ao pré-natal também deve ser intensificada. Realizar ultrassonografia obstétrica, ainda no 1º trimestre;
- Intensifique as orientações sobre a importância de realização dos exames preconizados pelo Ministério da Saúde, incluindo o teste rápido para sífilis e HIV, e realização de vacinação de rotina para as gestantes. Investigue e mantenha o registro das informações na caderneta ou cartão da gestante sobre a ocorrência de infecções, rash cutâneo, exantema ou febre.
- As consultas de Puericultura na Atenção Básica devem ser mantidas para os recém-nascidos com microcefalia, com atenção especial ao seu crescimento e desenvolvimento.
Na maternidade/hospital
- As maternidades e hospitais devem adotar boas práticas de atenção ao parto e nascimento:
- Estímulo ao parto normal;
- Contato pele-a-pele entre mãe e recém-nascido (RN);
- Clampeamento oportuno do cordão umbilical;
- Amamentação na primeira hora de vida;
- Realização de procedimentos de rotina após a primeira hora de vida; e
- Seguir protocolo do Ministério da Saúde de reanimação neonatal em caso de necessidade.
- Realize a anamnese da mãe e o exame físico completo do recém-nascido, incluindo exame neurológico detalhado, com destaque para a medição cuidadosa do perímetro cefálico (PC).
- Para o recém-nascido pré-termo, considere o Perímetro Cefálico menor que -2 desvios padrões, pela curva de Fenton para meninas e para meninos;
- Para definição de microcefalia do recém-nascido a termo, adote o valor de referência do perímetro cefálico, que é ≤ 32 cm ao nascimento conforme as curvas da Organização Mundial da Saúde (OMS), para meninos e para meninas.
- Valores de Perímetro Cefálico entre 32,1 e 33 cm não devem ser classificados como microcefalia, porém os recém-nascidos com essas medidas devem ser adequadamente acompanhados em puericultura, com vigilância do desenvolvimento e da evolução do PC.
- Orienta-se que a medição seja refeita com 24-48 horas de vida, pois a maioria dos RN por parto normal pode apresentar suturas cavalgadas (superpostas) que levam à redução do PC, que depois se normaliza. Se a segunda medição estiver acima de 32 cm, o bebê deve ser excluído da continuidade da investigação de microcefalia, mas deverá ser acompanhado clinicamente quanto a evolução do PC e avaliação do desenvolvimento.
- A medida do PC deve ser repetida a cada consulta de puericultura após o nascimento, e qualquer desaceleração que coloque a medida do PC abaixo de -2 desvios padrões (nas medidas de PC pelas curvas da OMS e de Fenton)deve ser considerado suspeita de microcefalia e o caso deve ser notificado.
Investigação laboratorial de casos suspeitos
Para a Triagem infecciosa (sorologias), coletar amostras para:
- Sangue do cordão umbilical (3 mL);
- Placenta (3 fragmentos de dimensões de 1cm3 cada);
- Líquido cefalorraquidiano do RN (1 mL); e
- Sangue da mãe (10 mL).
- Encaminhar as amostras de casos suspeitos de microcefalia relacionada com a infecção pelo vírus Zika, conforme Protocolo de vigilância em saúde e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus Zika.
Exames de imagem
- Escolher a ultrassonografia transfontanela (US-TF), como primeira opção de exame de imagem;
- A tomografia de crânio (TCC), sem contraste, deve ser indicada para recém-nascido cujo tamanho da fontanela impossibilite a US-TF e para aqueles em que, após os exames laboratoriais e a US-TF, ainda persista dúvida diagnóstica de microcefalia.
Atenção: A alta do RN não deve ser adiada por causa de exame de imagem! Caso ele não tenha sido realizado, deve-se agendá-lo para realização ambulatorial.
Triagem neonatal
- A Triagem Neonatal (testes do pezinho, orelhinha e olhinho) deve ser realizada, possibilitando a detecção precoce de algumas doenças ou condições nos primeiros dias de vida.
- Bebês com alteração detectada pelo Teste do Pezinho devem ser encaminhados para um Serviço de Referência em Triagem Neonatal/Acompanhamento e Tratamento de Doenças Congênitas.
- A microcefalia está relacionada a alterações do desenvolvimento neuropsicomotor e do comportamento que podem ser acompanhadas por problemas auditivos e visuais.
- Quando se identificar alterações na Triagem Neonatal, encaminhar o recém-nascido para um serviço de referência para a confirmação diagnóstica de deficiência auditiva ou visual. O RN diagnosticado com deficiência auditiva ou visual deve, então, ser encaminhado para um para serviço de reabilitação auditiva ou visual.
No centro de reabilitação
- Crianças com microcefalia e prejuízos do desenvolvimento neuropsicomotor devem ser incluídas no Programa de Estimulação Precoce tão logo o bebê esteja clinicamente estável. A participação deve se estender até os três anos de idade para favorecer o desenvolvimento motor e cognitivo.
- Todos os bebês com confirmação de microcefalia, além de acompanhados por meio da puericultura, também devem ser encaminhados para estimulação precoce em serviço de reabilitação.
Notificação
- Os casos suspeitos de microcefalia associada à infecção pelo vírus Zika deverão ser notificados imediatamente às autoridades sanitárias e registrados no formulário de Registro de Eventos de Saúde Pública (RESP – Microcefalias), online e disponível no endereço eletrônico: www.resp.saude.gov.br
- A notificação do caso suspeito de microcefalia no RESP não exclui a necessidade de se notificar o mesmo caso no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC).
Cursos
O Ministério da Saúde, em parceria com a Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS) lançaram o curso de Manejo Clínico de Chikungunya e reabriram as matrículas para nova oferta do curso de Manejo Clínico da Dengue. Os cursos a distância são gratuitos, abertos a profissionais de saúde de todo o Brasil.
Manejo Clínico de Dengue – www.unasus.gov.br/dengue
Paulo Gadelha: “O desafio da zika pode ser comparável ao da aids”
Médico cearense que preside a Fiocruz cita a geração de crianças que será afetada pela microcefalia, associada à zika, e fala sobre pesquisas para conter o poder do Aedes aegypti
O médico cearense Paulo Gadelha preside a Fiocruz.O médico cearense Paulo Gadelha preside a Fiocruz. Os cientistas buscam respostas. Todos se veem agora diante do desafio do zika vírus. “Estamos enfrentando talvez um dos maiores desafios de saúde pública ao longo dessas últimas décadas. Diria deste século”, disse em entrevista ao jornal O Povo o médico cearense Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz.
À frente da principal instituição de pesquisa em saúde pública do Brasil – presente em 11 Estados, a partir de agosto no Ceará -, Gadelha diz que o cenário epidêmico de agora da zika guarda muitas semelhanças com o advento da aids no mundo. Principalmente pela dificuldade de decifrar o vírus, como foi com o HIV.
O contexto é de intranquilidade. A zika é causada pelo Aedes aegypti, que também espalha dengue e chikungunya. E há a microcefalia, que se descobriu a partir do Brasil estar associada à zika – e ainda não se sabe quase nada sobre isso.
Há um ano, a zika não era nem sequer citada com relevância. Agora, mundialmente, a doença já é registrada em 23 países e serão 4,5 milhões de casos nas Américas em 2016, segundo a Organização Mundial da Saúde.
A Fiocruz fechou com o Ministério da Saúde um plano nacional de enfrentamento às epidemias de dengue, zika e chikungunya no País. Como funcionará?
O plano tem um conjunto de ações como o combate ao vetor, que é uma das questões centrais. Do ponto de vista mais imediato, como não temos um terapêutico para combater a zika e os efeitos dela em relação à microcefalia, nem temos a vacina, a questão mais eficaz é o controle de vetores. Há uma série de iniciativas já tradicionais e outras que estão em curso que vão estar associadas para buscar maior efetividade no controle domiciliar. Ao mesmo tempo, a Fiocruz está com o projeto da Wolbachia (lê-se voubáquia). É uma bactéria que pesquisadores da Austrália, com a participação de pesquisadores da Fiocruz, conseguiram inocula-la no mosquito Aedes aegypti. Essa bactéria está espalhada no ambiente, está em muitos insetos e animais e não tem nenhum prejuízo para a saúde ambiental nem humana. Mas ela não estava presente no Aedes. Quando eles conseguem inocular no Aedes, ela torna o mosquito incompetente para transmitir os vírus da dengue, zika e chikungunya.
Isso é diferente do mosquito transgênico?
Não é o mosquito transgênico. Por isso falo que o País terá que lidar com várias experiências combinadas para ver aquelas mais eficazes ou mesmo a ação combinada que possa ter mais impacto no controle de vetores.
Esse estudo da Wolbachia começou quando?
Começou há cerca de dois anos em três áreas aqui do Rio de Janeiro: Jurujuba, em Niterói; Tubiacanga, na Ilha do Governador; e na Urca (na Capital). O mais importante é que já obtivemos sucesso na experiência. Porque ela se vale de uma vantagem comparativa de reprodução desses mosquitos. Ao contrário de ser um mosquito infértil, que é o caso do mosquito transgênico, esse com a Wolbachia se reproduz, mas com uma vantagem sobre outros. Os mosquitos com Wolbachia se reproduzem com fêmeas que têm e com as que não têm Wolbachia. Depois de um certo tempo, vão sendo substituídas as populações de mosquito. E 85% dos mosquitos daquela área, depois de um tempo, já contêm a Wolbachia. Porque ela é transmitida da fêmea para os ovos. Tem a vantagem comparativa de se reproduzir o mosquito macho e a fêmea com Wolbachia e nos outros casos eles não reproduzem.
Por que no mosquito transgênico, só o que nascer é que passa a não ser vetor?
O transgênico trabalha com a ideia de que ele esteriliza a fêmea. A ideia é baixar a população de Aedes a um ponto em que não se tenha densidade de mosquito para transmitir o vírus. No caso da Wolbachia, ela mantém a população de Aedes, mas sem a capacidade de ser vetor para essas doenças. Não esteriliza, mas não transmite. A gente quer ver quais mecanismos podem ser combinados. A vantagem da Wolbachia? É um projeto sustentável. Na medida em que se garante a reprodução desses mosquitos, não precisa mais colocar Wolbachia naquele local. A própria reprodução dos mosquitos garante que ali não haverá transmissão.
Já há cálculo de como a Wolbachia se espalha? É rápida?
Em poucos meses, ela já está dominando a região. E está em negociação, não há uma definição ainda, já com o aval da Prefeitura de Niterói e estudo junto ao Ministério da Saúde, pra gente fazer isso na escala de Niterói. Aí já se pega uma população de mais de 400 mil habitantes.
Quando chega a outras regiões do País?
Isso leva algum tempo. A ideia é que em Niterói, quando o projeto chegar no segundo ano, a partir de 2016, já 50% da área da cidade estaria coberta. E 75% no terceiro ano. Se a gente tem sucesso até o segundo ano com os 50%, já se pode pegar a experiência e levar a outras capitais do País.Pegar uma população maior.
Isso está no plano de enfrentamento com o Ministério?
Está dentro do plano de enfrentamento. É uma das experiências trabalhadas.
Então o plano é pensado a médio prazo?
É, porque uma mobilização muito intensa do controle de vetores pode reduzir a transmissão dos vírus, mas não temos condição de garantir num curto prazo que você vá ter uma redução que garanta apenas a transmissão mínima desses vírus. A gente vem tentando há anos essa mobilização intensa para controle de vetores. Agora, há uma consciência na população que estamos diante de um problema de gravidade extraordinária. Isso facilita a mobilização e, portanto, teremos mais efetividade no controle de vetores. Mas, mesmo assim, a gente sabe que vem o verão aí, no caso aqui do Rio de Janeiro.
Os meses de abril e maio costumam ser mais perigosos.
Vai ter levas ainda de dengue, zika e chikungunya.
Quando o mosquito transgênico chegará à região Nordeste?
Tanto a experiência da Wolbachia como a do mosquito transgênico estão ainda em território limitado. Primeiro é preciso comprovar a eficácia e isso está sendo demonstrado nos dois casos. No caso do mosquito transgênico, em Piracicaba (SP) houve uma redução significativa de ovos, das larvas, mas ainda é uma região pequena. Na Wolbachia, a mesma coisa.
Mas há previsão de quando será a expansão desses testes?
Uma vez comprovada a eficácia, a expansão dos testes vai exigir também questões de natureza logística e de capacidade de produção desses mosquitos numa escala muito maior. Vamos ter mais questões. Quais são os mecanismos melhores para distribuir no território? Qual a melhor forma de fazer a discriminação entre fêmea e macho para garantir eficácia maior no processo reprodutivo? Como se mobiliza melhor a população e o serviço de saúde? Como se chega a territórios menos acessíveis? Além do experimento, você tem a logística. Não há um prazo. No caso da Wolbachia, a gente caminha para uma população de 400 mil. Foi o caso também da experiência australiana na Indonésia. Começou no Vietnã, já está em curso a experiência na escala de 400 mil habitantes. O sucesso comprovado, que estamos certos que irá acontecer, pode nos levar a uma situação mais segura e, já na metade do próximo ano, dizermos que temos condições de passar para outra cidade.
Qual o impacto dessa descoberta feita pela Fiocruz, de que o zika vírus consegue atravessar a placenta? Qual será a etapa seguinte após essa constatação?
As descobertas no campo da pesquisa são fundamentais para se conhecer, de maneira precisa, o mecanismo de transmissão e a fisiopatologia dessas doenças. Sabe-se, por evidências anteriores, que o zika chega ao feto e provoca a microcefalia. É uma evidência epidemiológica que só agora está sendo mais comprovada. Mas não se sabe como isso se dá, qual o caminho que o vírus percorre, o mecanismo preciso. Quando se tem uma evidência dessas que a Fiocruz produziu, você começa a dizer que ele atravessa a barreira placentária, está comprovado, e ele está presente numa determinada célula que tem uma característica de ação imunológica. A pesquisa vai continuar. Essa é a única via? Outras células são atingidas? É essa célula que carreia depois para as células nervosas? Na medida em que se elucida isso, você tem pistas. Se a via é essa, então posso ter medicamento que atinja essa célula e impeça a transmissão? Posso bloquear o acesso do vírus a essa célula através de vacina? O próprio desenvolvimento de diagnóstico, de terapia e de vacinas, ele ganha muito com a pesquisa de base, que mostra como se dá o processo preciso da etiologia da doença.
O que é o projeto de microcérebros, usado no estudo da zika?
Nós precisamos verificar, ainda em situações de laboratório, como se dá a agressão do vírus às células nervosas. Não as células nervosas isoladas, mas já numa estruturação de como elas se organizam para constituir o cérebro. Esse modelo é uma iniciativa conjunta da Fiocruz, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Instituto da Rede D’Or. Você pega células embrionárias, elas são induzidas para desenvolver a estrutura cerebral. Mas, claro, a estrutura muito menos complexa que a do cérebro desenvolvido. Quando se tem isso, se pode em laboratório colocar partículas, vírus, efeitos de medicamentos. Você começa a modelar um experimento como se fosse a doença ativa. Não estamos trabalhando com o cérebro, mas com modelo de células embrionárias já transformadas em células nervosas.
É um cérebro simulado?
Isso mesmo, é uma simulação. Você poderia fazer experiência também com cérebro de camundongo. Mas, primeiro que se evita o uso de um número enorme de camundongos, o que hoje eticamente é um dado importante. Segundo, se aproxima mais do modelo humano. Terceiro, há mais flexibilidade de fazer experimentos pela conformação da modelagem que se faz no desenvolvimento da célula-tronco.
Há outras pesquisas atreladas a esse momento epidêmico?
A gente está fazendo estudo de tudo. O desenvolvimento de vacinas é outra linha que estamos trabalhando na Fiocruz. Outros institutos também estão trabalhando. Nossa linha de estudo aproveita uma experiência que tivemos com a Sanofi (laboratório francês) na feitura de uma vacina para dengue. Ela trabalha com a base da vacina de febre amarela, que produzimos, e faz a mudança de determinadas partes da vacina, para ter os antígenos do zika. Com isso, utilizamos uma vacina que a gente conhece e é segura, e coloca ali os antígenos, que chamamos de quimera. Quimera tem ao mesmo tempo duas naturezas, uma que vem do vírus da febre amarela, mas com componentes da zika.
Essa vacina está em teste pré-clínico?
É, bem inicial. Todas as vacinas hoje de zika são ainda em estágio inicial. Está se buscando um processo mais rápido, mas, de qualquer maneira, ela vai exigir todas as fases clínicas, que são as mais longas. Sendo muito otimista, a gente pode imaginar que daqui a um ano, ano e meio, estejamos começando fase de teste. É melhor contar com a ideia que serão exigidos cinco anos, por aí, pra vacina sair.
Como funciona o teste rápido para diagnóstico de dengue, zika e chikungunya?
No caso do teste, ele só existe no Brasil na Fiocruz. Ele faz a discriminação ao mesmo tempo se é zika, chikungunya ou dengue. É um teste molecular, distribuído aos Lacens (Laboratórios Centrais Estaduais). Tem a característica de detectar a doença durante a viremia (presença do vírus circulando no sangue). No caso da zika, o período da viremia é curto. Mas é fundamental para as gestantes. Esse teste dá em duas a três horas a confirmação se realmente é zika ou se está mascarando um caso de dengue ou, menos provável, a chikungunya.
Como está sendo, para vocês pesquisadores, lidar com vírus tão pouco conhecidos?
Para muitos estudiosos, estamos enfrentando talvez um dos maiores desafios de saúde pública ao longo dessas últimas décadas. Diria deste século. Porque já se tinha questões indicativas de saúde pública da dengue. E já estávamos antecipando o problema seríssimo da chikungunya. Na medida em que se tem, como novidade mundial, a expressão do zika com essa associação forte com a microcefalia… Da mesma forma que se tem a síndrome da rubéola durante a gravidez, essa é uma síndrome zika. Porque, para além da microcefalia, ela pode provocar vários distúrbios de natureza especialmente neurológica, mas também áreas de articulação. A gente sabe hoje que ele permanece um tempo mais longo no líquido amniótico, muito mais tempo do que no sangue. A gente sabe que se pode ter efeitos, mesmo no período mais tardio da gravidez. Se a pessoa é infectada pelo zika, ela pode ter o feto ou a criança nascendo com problemas às vezes de natureza visual, articulares… Estamos compreendendo esse problema como uma síndrome com várias repercussões, onde a microcefalia é a mais grave, a mais dramática.
O desafio parece ser maior do que os cientistas pensavam.
É muito maior. Na verdade, o zika está trazendo para o campo da ciência e da saúde pública um desafio que pode ser comparável ao da aids. Com a aids você tinha uma total novidade dos mecanismos de etiologia, fisiopatológicos, repercussões sociais, e se tinha o desafio imenso de lidar com aquela situação nova na saúde pública. No caso da zika, os mecanismos patológicos também são desconhecidos. Será preciso entender muito todo o processo e que está gerando uma consequência social muito grave. Haverá uma geração de crianças que, se sobreviverem, ao longo da vida terão, com gravidades variadas, deficiências no desenvolvimento cognitivo. E serão crianças totalmente dependentes que vão precisar de acompanhamento especial.
Qual o investimento financeiro da Fiocruz nas pesquisas, num recorte apenas deste momento epidêmico?
Não tenho isso quantificado. O que estamos fazendo é utilizar nosso potencial já instalado e direcionando fortemente pra zika. Então já tem um investimento estrutural, capacidade laboratorial, pensadores. O que vamos ver agora são recursos adicionais para determinados projetos que vamos realizar.
Para quando está confirmada, em 2016, a inauguração da unidade da Fiocruz no Ceará?
O cronograma de obras aponta que provavelmente até julho tenhamos isso concluído. Nossa ideia é inaugurar em torno de agosto. A unidade vai trabalhar com três grandes áreas e vários projetos. Uma é a da atenção básica à saúde da família. O Ceará tem muita experiência e também temos uma equipe muito qualificada. Outra área é a de desenvolvimento de bioprodutos. Fazendo especialmente o que a gente chama de prospecção de moléculas, para que possam ser de interesse para o desenvolvimento terapêutico. Vamos ter um grupo também ligado à Wolbachia, parte de entomologia. O coordenador do projeto vai se transferir para o Ceará e desenvolver esse trabalho.
O Ceará será área de teste para a Wolbachia?
Será uma área de pesquisa e de desenvolvimento de tecnologias para controle de vetores. Porque os vetores, além das formas já conhecidas que se tem, há uma série de outras doenças. E temos possibilidades de doenças chegando que já existem em outros locais do mundo. O estudo sobre comportamento de vetores, mosquitos, sua biologia, é um trabalho fundamental da saúde pública hoje. Será um núcleo forte. Há outra área, ligada a ambiente e saúde, que terá uma área forte de atuação nossa no Ceará. Estuda questões ligadas a água, efeitos climáticos, agrotóxicos. Como a relação de agravos ambientais impactam na saúde das populações humanas, a especificidade do bioma caatinga, a escassez de água, agropecuária.
Mas há algo pontuado nos estudos em relação ao Ceará?
Embora não seja o Estado onde a zika se expressou em maior número de casos – Pernambuco teve mais e é preciso avaliar ainda se houve uma supernotificação -, mas há uma primeira questão intrigando. Aparentemente, pelos dados, os casos mais graves de zika estão sendo no Ceará.
Isso foi comprovado?
Pois é, é uma primeira evidência. Tem que ser questionada e investigada. A gente não sabe se é pelo tipo de notificação, se existe algum fator que possa estar adjuvante a isso. O que estou querendo dizer é que sempre haverá questões específicas a serem estudadas quando se tem um problema de saúde pública dessa ordem. A seca no Ceará levou as pessoas a acumularem água em reservatórios, para lidarem com as necessidades cotidianas. Isso já é uma maneira de pensar a circulação diferente do mosquito em relação a outros Estados. Como o sistema de saúde do Ceará está organizado para atender. Rede de atenção básica, serviço de referência… Sempre haverá especificidades de acordo com o território.
Mais
Dos 4,5 milões de casos de zika previstos para as Américas em 2016, a Organização Mundial da Saúde estima que um terço deles ocorrerão no Brasil. Cientistas afirmam que o zika vírus circulante no Brasil vem da Polinésia, ilha da Oceania localizada no Pacífico. O outro zika conhecido é africano.
Perfil
Nascido em Fortaleza, Paulo Ernani Gadelha Vieira tem 65 anos. Em 1970 foi fazer Medicina na Universidade do Rio de Janeiro (Uerj) e lá ficou. Formou-se em 1976. Tem especialidades em Psiquiatria (1978) e Medicina do Trabalho (1981), mestrado em Medicina Social (1993) e doutorado em Saúde Pública (1995). Atua na gestão institucional da Fundação Oswaldo Cruz desde 1985. Participou da criação de unidades técnico-científicas e coordenou vários projetos institucionais. É presidente da Fiocruz desde 2009.
Fonte: Portal Vermelho
Publicado em 03/02/2016
CNS discute combate ao Zika e orçamento para a Saúde em 2016
Começou nesta terça-feira, 02, a primeira reunião ordinária do Conselho Nacional de Saúde de 2016. Com novos membros e presidida por Ronald Ferreira dos Santos – presidente da Fenafar – a reunião validou as diretrizes aprovadas na 15ª Conferência Nacional de Saúde, discutiu o combate ao Zika vírus e analisou o orçamento para a Saúde deste ano.
O Conselho discutiu as ações do controle social na luta contra o Zika vírus. O debate ocorreu um dia após a Organização Mundial da Saúde – OMS declarar Emergência de Saúde Pública de importância internacional (ESPII) por vírus Zika e sua possível associação com a microcefalia e síndromes neurológicas.
Mobilização popular contra o Zika
Nesse contexto, iniciativas no campo da ciência – a partir do desenvolvimento de medicamentos e vacinas – políticas públicas de orientação para profissionais da área da saúde e para a população e mobilização social para combater o principal vetor de transmissão do vírus, o aedes aegypti, precisam ser sincronizadas.
O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Ronald Ferreira dos Santos, chama a atenção para o extraordinário instrumento de participação social que o CNS e os conselhos estaduais e municipais de saúde representam. “Para combater o Zika o melhor inseticida é a participação popular. Nossos Conselhos têm caráter deliberativo de formular e participar das ações de promoção e de vigilância em saúde. Temos que ativar a rede de conselhos para ter o apoio da sociedade”.
Ronald informou que entre as ações aprovadas na reunião, ficou definido “um indicativo de articulação interconselhos, para mobilizar outros espaços de participação social como o Conselho das Cidades, Meio Ambiente, Educação”. No caso da Educação, nesta terça-feira o ministro Aloísio Mercadante afirmou que também vai ativar a rede de escolas, creches, universidades, mobilizando professores, estudantes e funcionários para orientar como combater o vírus, numa iniciativa chamada de Zika Zero.
Orçamento 2016
Para apresentar o orçamento ao Conselho, participou da reunião o secretário executivo da Secretaria de Planejamento e Orçamento do Ministério da Saúde, Arionaldo Bonfim Rosendo, que prestou esclarecimentos sobre o orçamento da saúde para o ano.
O presidente do CNS, Ronald Santos, esclarece que a apresentação sobre o orçamento da saúde na primeira reunião ordinária do ano e da nova gestão é para dar subsídios aos conselheiros. “Com as informações concretas apresentadas, junto com os gestores, podemos construir o Plano Nacional de Saúde 2016-2019”, disse Ronald, “ainda há tempo de opinar no orçamento da saúde para 2016”.
Segundo o secretário Arionaldo, as leis do Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA) já foram aprovadas e sancionadas pela presidenta da República. Ele apresentou ao pleno o orçamento da saúde no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), que contempla mais de R$ 118 bilhões destinados ao Ministério da Saúde, recurso este, que deverá ser distribuídos pelas unidades Fiocruz, GHC, Funasa, Anvisa, ANS e FNS.
Destaques feitos pelo secretário em sua apresentação foram a respeito da microcefalia e do programa de governo Farmácia Popular. Como parte dos recursos orçamentários para 2016, o secretário destaca a emenda ao orçamento que destina cerca de R$ 500 milhões para ações ligadas à microcefalia. Sobre o programa Farmácia Popular, o secretário afirma: “fizemos questão de apresentar o alcance e sua importância como programa de governo e, portanto, está garantida a sua continuidade”.
Arionildo ainda ressalta que, no PPA 2016-2019, o Ministério da Saúde é responsável por um programa, 14 objetivos e ainda 120 metas, com 151 iniciativas sob sua responsabilidade em programas diversos presentes no Plano Plurianual 2016-2019.
Por último, o presidente do CNS lembra aos conselheiros que o Conselho possui um acumulo de debates sobre o tema e que é preciso resgatá-los para contribuir na construção do orçamento.
Da redação com informações do CNS
Publicado em 03/02/2016
Receitas passam a valer por 180 na rede do Farmácia Popular
Os usuários do programa Farmácia Popular do Brasil, da União — que compram medicamentos em unidades próprias do governo federal ou em redes privadas credenciadas —, poderão usar prescrições (receitas), laudos ou atestados médicos por um prazo maior.
A partir do dia 12 deste mês, o prazo de validade desses documentos — usados para a obtenção de remédios gratuitos ou para a compra com descontos de até 90% — terão o prazo de validade estendido de 120 para 180 dias. Além disso, passarão a incluir obrigatoriamente o endereço da residência do paciente.
Segundo o Ministério da Saúde, que publicou a portaria com as mudanças no dia 29 de janeiro, a exigência do endereço no receituário ou no atestado está prevista na Lei 5.991/1973, que dispõe sobre o Controle Sanitário do Comércio de Drogas, Medicamentos, Insumos Farmacêuticos e Correlatos. A nova portaria também prevê que, além dos médicos, os farmacêuticos possam preencher as informações do endereço completo do beneficiário.
Em relação ao prazo de validade de receitas, laudos e atestados, a pasta esclareceu que, no caso de contraceptivos (anticoncepcionais), a validade do receituário continuará sendo de 365 dias.
Segundo o governo, não haverá mudanças nas redes de farmácias próprias e credenciadas. Apesar da ameaça de que o repasse de recursos seria suspenso, o Orçamento deste ano garantiu verbas para o programa. Hoje, segundo o Ministério da Saúde, há 35.147 estabelecimentos participantes — 523 da rede própria e 34.624 da rede credenciada, em 4.446 municípios.
O governo federal manteve os 14 medicamentos gratuitos para tratamento de hipertensão, diabetes e asma, e os outros dez na modalidade de co-pagamento para rinite, dislipidemia, mal de Parkinson, osteoporose e glaucoma, além de contraceptivos e fraldas geriátricas para incontinência.
Fonte: Extra
Publicado em 02/02/2016
Indústria farmacêutica: Por trás dos remédios nas prateleiras, equipe de marketing promove drogas que nem sempre são as mais eficientes**
Viagem ao mundo do medicamento-mercadoria: a pesquisa submissa ao marketing; o trabalho em condições precárias nos laboratórios; a ‘eficácia’ das drogas atestada em estudos fraudados.
por Quentin Ravelli*
“Percebi que estava grampeado, que sabiam exatamente o que eu receitava”, indigna-se um médico instalado em Paris. “Fui ingênuo, não fazia ideia. [Um dia], uma representante comercial me disse: “você não prescreve muito!” Eu me perguntei: “Como ela pode saber disso?”., Essa prática de vigilância, que choca muitos profissionais, é articulada pelos serviços comerciais dos laboratórios. Para aumentar ou manter sua fatia do mercado, os grandes grupos farmacêuticos implementam artifícios de engenhosidade mirabolante. Não hesitam, por exemplo, em alterar as indicações de seus medicamentos para conquistar novos clientes.
Considerado por certos médicos como “o Rolls Royce dos antibióticos dermatológicos”, a Pyostacyne (no Brasil, Pristinamicina), fabricado pela Sanofi — um dos primeiros grupos farmacêuticos do mundo em volume de negócios (33 bilhões de euros em 2013) — conheceu tal destino. Durante muito tempo de uso dermatológico, o antibiótico viveu uma “virada respiratória”: é agora utilizado maciçamente em casos de infecção broncopulmonar e de ouvido, nariz e garganta. Este último uso, criticado por numerosos médicos e depois denunciado pelo poder público, podia conduzir a um superconsumo de antibióticos, sendo assim parte do problema mais amplo do fortalecimento das resistências bacterianas — um grande desafio de saúde pública, responsável por setecentas mil mortes por ano em todo o mundo (ver “O outro pesadelo de Darwin“).
Para compreender a natureza versátil da mercadoria da indústria farmacêutica, acompanhamos a vida desse medicamento ordinário, desde os laboratórios de pesquisa até os visitantes comerciais, passando pela fábrica de produção do princípio ativo[1]. A cada etapa, a mercadoria muda de nome: os biólogos falam da bactéria Pristinae Spiralis; os químicos, da pristinamicina fabricada pela bactéria; os representantes alardeiam os méritos da “Pyol” aos médicos; os trabalhadores denominam-na afetuosamente “a Pristina”. Ao longo dessa cadeia, o antagonismo entre as necessidades do doente e os lucros do industrial, entre o valor de uso e o valor de troca[2] nunca param de se manifestar.
Ele expõe a oposição entre assalariados e executivos, particularmente sensível em uma empresa em plena reestruturação, onde os trabalhadores estão lutando para conter os cortes de emprego e impor suas próprias concepções do papel do medicamento.
Vender
“Seu trabalho é manter o seu desempenho”
Grande bloco todo de vidro de 37 mil metros quadrados, a sede da Sanofi na França evoca transparência e respeito aos pacientes, cujas silhuetas estilizadas dominam o alto do edifício, cercadas por um coração azul. No terceiro andar desse edifício, situado no sul de Paris, encontram-se os escritórios de marketing, onde agitam-se os funcionários que trabalharam, desde a década de 1990, na introdução da Pristinamicina no mercado de infecções respiratórias. Com êxito evidente, já que, do inverno de 2002 até o inverno de 2010, o número de vendas para infecções broncopulmonares saltou 112%, enquanto o aumento foi de apenas 32,6% no campo dermatológico.
Esse aumento não corresponde a uma explosão do número de doenças ou a uma epidemia devastadora, mas a uma estratégia comercial: o mercado de infecções respiratórias envolve um volume de prescrições muito mais importante do que o de infecções dermatológicas. “Acontece que, contra os germes que infectam os brônquios, pulmões, seios da face, o medicamento vai muito bem”, diz um médico da empresa. “Por isso, em seguida ele foi desenvolvido com essa indicação.” Da pele ao pulmão, o valor de troca metamorfoseou o valor de uso.
Os ourives desse gênero de giro terapêutico são os “gerentes de produto”, funcionários especializados na promoção de um só medicamento ou de alguns medicamentos com indicações aproximadas. Aqui, se é “gerente de produto Pristinamicina”, “gerente de produto Tavanic”, “gerente de produtos analgésicos” e até mesmo “gerente de produtos psicóticos”. Célia Davos[3], gerente de produto Pristinamicina, que se diz “muito voltada aos negócios”, descreve o conteúdo do seu ofício: “Seu trabalho é monitorar o desempenho do medicamento, é seguir seu produto para ver aonde ele vai, de acordo com os concorrentes, de acordo com o mercado, de acordo com a patologia, e fazer todos os esforços para maximizar o volume de negócios.” Esse posto, situado no coração do serviço de marketing, ele próprio no centro da sede social, funciona como uma mesa giratória onde os funcionários chegam de várias áreas e podem em seguida ser realocados para outros horizontes, como gerentes, responsáveis pelas áreas de marketing, comunicações, relações públicas, vendas.
O papel do gerente de produto consiste em destacar a utilidade de um medicamento na preparação do material dos propagandistas de laboratório, esses comerciantes que se deslocam pelos consultórios para convencer os médicos a prescrever seus produtos. No arsenal da Pristinomicina, encontram-se a ajuda de visita, espécie de guia a partir do qual o visitante constrói seu discurso segundo os argumentos elaborados pelo marketing; os elementos-chave, de informação médica, que sintetizam os pontos mais importantes; os número de uma revista científica como Infectologia, cujo patrono é a Spilf (Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa) e que apresentam apenas os últimos resultados de ensaios clínicos bem sucedidos relativos à Pristinomicina. Mas também uma multidão de ferramentas paramédicas — pequenas lâmpadas plásticas com uma espátula para pensar sobre o Pristinomicina ao olhar o fundo da garganta do paciente; caixas de tecido para decorar o escritório do doutor; canetas Pristinomicina; pen-drive Pristinomicina. Esses textos e objetos, que se repetem por todo lugar no consultório do profissional, serão encontrados no porta-malas dos propagandistas.
Nem todos os médicos interessam aos laboratórios todos na mesma medida. Aqueles que têm um importante “potencial de prescrição” tornam-se objeto de atenção particular. Para identificá-los, os laboratórios utilizam os serviços do GERS (Grupo de Elaboração e Realização de Estatísticas), que dispõe das cifras das vendas aos distribuidores e das vendas diretas em farmácias; ou do Cegedim (Centro de gestão, de documentação de informática e de marketing), que fornece dados do software das prescrições dos médicas. A essas fontes oficiais, somam-se as redes de inteligência informais, como as enquetes dos visitantes médicos com farmacêuticos e seus colegas. Para os serviços de marketing, toda informação relativa às práticas dos médicos interessa, pois permite estabelecer uma “segmentação de clientes” em potencial. Assim, há os ”baixos ATB, baixos Pristinomacina” (os que prescrevem pouco antibiótico em geral, ou pouca Pristinomacina) e os “baixos ATB, altos Pristinomacina” (que já prescrevem abundantemente o produto promovido). Estes, serão menos visados que os “altos ATB, pequenos Pristinomacina” — pois podem substituir uma parte importante de suas receitas de outros antibióticos em receitas de Pristinomacina.
Evidentemente, essas estratégias não se traduzem mecanicamente em vendas. É necessário que elas sejam postas em prática pelos visitantes médicos. Na França, em 2014 havia dezesseis mil empregados de empresas farmacêuticas, que passavam o tempo todo em reuniões com os médicos. À taxa de duzentos e treze dias de trabalho por ano e seis visitas por dia, são mais de vinte milhões de conversas que travadas, anualmente com os médicos. Essas entrevistas são minuciosamente preparadas. Para aumentar a eficácia, os serviços de marketing redigem por exemplo brochuras apresentando diversos “tipos de perfil” de médicos: a “médica sindicalista”, o “médico amigo”, o “médico cientista”, o “médico estressado”… Essas brochuras são utilizadas no decorrer de seminários de formação para ajudar os visitantes médicos a colocar em prática a “rota de fidelização”, com vistas a conhecer melhor suas metas. Aprendemos , nesses “workshops de produto”, que o médico da família — 55 anos, grande clientela, presidente de um programa de educação médica continuada — é mais “sensível à abordagem humanística do paciente” do que o médico cientista “instalado no campo”, de “contato muito frio”, ao contrário do namorado companheiro, “alegre, mas um pouco mole.” Uma vez formados neste jogo, os representantes comerciais devem sair a campo para melhorar a “elasticidade” de médicos. Quanto mais um médico é considerado “elástico”, mais receptivo ele é ao discurso indústria farmacêutica.
Ou então, os médicos se tornam cada vez mais críticos, a ponto de fechar suas portas para os representantes, cujo número vem caindo nos últimos dez anos. Esta resistência crescente empurra a empresa a encontrar outras formas de lobby, mais científicas e menos perceptíveis, particularmente ao dirigir-se a formadores de opinião (chamados KOL, key opinion leaders/líderes-chave de opinião) — ouvidos e respeitados por milhares de prescritores. Assim, a Sanofi procura influenciar docentes de universidades, por vezes percebidos como responsáveis pelo espírito crítico de jovens médicos.
Quando fui estagiário na Sanofi, tive por exemplo que construir “argumentos para decanos”, buscando convencer os mais reticentes a acolher a empresa em suas classes. Os maus resultados de algumas faculdades foram usados — especialmente em Paris-V, onde houve uma queda dramática na proporção de alunos classificados no primeiro trimestre da competição nacional. Esse resultado era explicado, de acordo com a Sanofi, pela personalidade do decano, considerado um dos mais indóceis, por não permitir a livre circulação de panfletos, cartazes e outros produtos de publicidade disfarçada.
Toda essa máquina de influência não funciona sem choque ou oposição. Há, em todos os níveis, dúvidas, dissonâncias, contradições. Certos representantes, particularmente conscientes dos problemas de resistência bacteriana, procuravam, por exemplo, falar com os médicos sobre todos os antibióticos disponíveis e não apenas daqueles que geram mais dinheiro. Eles esforçam-se por tecer laços não comerciais com os profissionais, não hesitam a partilhar suas dúvidas e suas críticas. Mas são frequentemente confrontados com mudanças arbitrárias, transferências de zona, a chamadas da direção, que são difíceis de contrariar quando pairam ameaças de demissão.
Produzir
“Faz dois anos que perdi o sono”
A fábrica em que é produzido o princípio ativo da Pristinomicina, a partir de bactérias colocadas para fermentar, encontra-se perto de uma volta do Rio Sena, ao sul de Rouen (França), onde são espalhadas diversas indústrias, como as da Total ou da ASK Químicos. Na fábrica da Sanofi, afetada por cortes de pessoal, alguns espaços foram substituídos por retângulos de grama que são alternados com oficinas de atividades, interligados por feixes de tubos de oxigênio, água purificada, solventes, ácidos. Quando se entra pela primeira vez, um odor contrai as narinas: é dos dejetos agrícolas que as bactérias em fermentação consomem em quantidade antes de secretar os princípios ativos. O perfume inebriante de melaço de açúcar de beterraba, que chega na fábrica pelos carros-pipa, domina a atmosfera.
Na oficina de fermentação, o barulho atinge, como hélices de avião em marcha lenta, as longas lâminas de dezenas de fermentadores de duzentos e vinte metros cúbicos, movimentadas continuamente. É aqui que nasce a molécula pristinamicina, que se encontrará nas milhões de caixas acondicionadas na Espanha, depois vendidas em farmácias. Segundo os trabalhadores, o trabalho em si mesmo é interessante e frequentemente imprevisível, pois envolve organismos vivos. Mas as condições são particularmente duras. Os operários trabalham em regime 5 × 8. Significa que são divididos em cinco equipes, que trabalham dois dias das 5h às 12h, em seguida, dois dias das 12h às 20h, e finalmente dois dias das 20h às 5h.
Oficialmente, em seguida, eles se beneficiam de quatro dias de descanso. Mas, onze vezes no ano, um desses quatro dias é suprimido, segundo o sistema de “remontagem” sem o qual o tempo de trabalho seria inferior a trinta e cinco horas semanais, a jornada legal na França. Frequentemente, portanto, não restam mais que três dias de repouso, fortemente encurtados pela noite do último ciclo ou pela manhã do próximo. Quem segue esse ritmo não dorme, jamais, três vezes seguidas no mesmo horário. “O cérebro não é mais capaz de retomar os ritmos de vigília e sono”, diz o Sr. Etienne Warheit, que está no 34º ano de 5 × 8. “Dois anos atrás, perdi o sono e não conseguia mais fazer seis horas por noite. Ficava cansado às 22 horas, mas estava acordado à meia-noite e não havia maneira para dormir antes de 2:00. E vice-versa… chegava ao trabalho, estava cansado, e por isso tomava café. Você torna-se incapaz de fazer o trabalho. Precisa repeti-lo novamente três vezes, porque tem medo de esquecer as coisas, ter cometido um erro, você perde a confiança em si mesmo.”
Quando os trabalhadores acham esse ritmo muito desgastante e querem mudar de horário o gestor se recusa, principalmente porque não tem outros postos para lhes oferecer. O objetivo é primeiro rentabilizar as máquinas, que funcionam permanentemente. Para justificar esse ritmo infernal, a direção esconde-se atrás de uma espécie de determinismo tecnológico: os ritmos da fermentação bioquímica e extração de bactérias tornariam inevitável o sistema 5 × 8. “É óbvio que, numa fábrica como esta, a partir do momento em que a produção é contínua e só pode ser contínua, não é possível fazer de outra forma”, diz o médico da fábrica. Esta explicação científica desestimula a pesquisa de organização coletiva do trabalho. É parte de um discurso mais geral, que pode ser chamado de “biotecnologia”: a fábrica, voltada para produtos do futuro, seria mais semelhante a um laboratório, onde o protesto trabalhista não teria mais razão de ser.
Há, portanto, um abismo entre as práticas concretas do grupo industrial e seu discurso – “O essencial é a saúde”, proclama o slogan inscrito na entrada da fábrica. Mas os protestos, que dão a um dos responsáveis da área de recursos humanos a impressão de “um barril de pólvora”, e que inclusive provocam medo no gerente de “descer” nas oficinas, são integrados à estratégia de negócios da empresa. Ao oferecer a vários trabalhadores a possibilidade de se tornarem técnicos, usando o discurso da biotecnologia como forma de mascarar a realidade da fábrica, a empresa tem conseguido transformar a reivindicação coletiva de unificar todas as forças sindicais em promoção de desejos profissionais individuais. Essa recuperação repousa, notadamente, sobe o medo: durante vários anos, do final dos anos 1990 até 2005, a direção do grupo fez pairar a ameaça de venda da fábrica. Esse cenário, que jamais se concretizou, permitiu sobretudo que os trabalhadores aceitassem uma reestruturação e o corte de 15 dos 77 postos de trabalho no sistema 5 x 8. De ameaçada, a fábrica foi promovida a “unidade piloto” do grupo Sanofi.
Tal virada — que não mudou as condições de trabalho nem os salários — reflete a forte utilidade industrial das bactérias. O “boom da biotecnologia” marca uma orientação geral do capitalismo industrial deste início do século XXI, que desenvolve biotecnologias ditas verdes (agricultura), brancas (indústria), amarelas (tratamento de poluição), azuis (a partir de organismos marinhos) ou vermelhas (medicina). Por causa de todas essas aplicações, os mercados desenvolvem-se, e frequentemente as taxas de lucro são excepcionais, o que explica a razão pela qual a indústria farmacêutica tem comprado, nos últimos anos, as empresas de biotecnologia. Em abril de 2011, a Sanofi comprou por 20 bilhões de dólares a Genzyme, uma empresa norte-americana especializada em produtos biofarmacêuticos para esclerose múltipla e doenças cardiovasculares. Esta atração pode ser explicada pelo fato de que as novas moléculas utilizadas no tratamento de muitas doenças não vêm da química de síntese clássica, mas do uso de materiais vivos, muitas vezes geneticamente modificados, que permitem fazer importante economia na produção.
Pesquisar
“O conflito de interesses é permanente”
Nas Jornadas Nacionais de Infectologia da França, dois “espaços” se defrontam. De um lado, o “espaço das marcas”, onde os comerciantes falam da Pristinamicina: 56 estandes de laboratórios farmacêuticos, dispostos em sete fileiras, segundo uma lógica de blocos desalinhados que impõe um deslocamento em zigue-zague aos 1,5 mil médicos inscritos. Do outro, o “espaço das moléculas”: dois auditórios, batizados de Einstein e Pasteur, onde acontecem simpósios científicos. Assim, paralelamente a um desinvestimento na pesquisa privada — a Sanofi fechou, em 2004, seu centro de pesquisa anti-infecciosa de Romainville —, os laboratórios exercem certo controle sobre a pesquisa pública: eles financiam os congressos médicos e influenciam, em contrapartida, a organização científica, material e espacial deles.
Para chegar ao espaço científico das Jornadas de Infectologia, que se encontra do lado oposto da entrada do congresso, os médicos devem passar, no mínimo, diante de treze estandes, cujo aspecto reflete o peso e a influência do expositor. Aos deliciosos petits fours da transnacional Boehringer-Ingelheim, degustados em meio a assentos com design e sob a luz azul de grandes lâmpadas halógenas verticais, responde o suco de maçã, servido sobre uma grande mesa de fórmica coberta de objetos em desordem, oferecido pelo StudioSanté, uma rede francesa de coordenação de cuidados médicos especializada na perfusão em domicílio…
Apesar da aparente separação dos espaços, as ligações entre o universo comercial e o mundo científico são sólidas. Durante o congresso, o principal objetivo das empresas é mostrar a superioridade científica de seus produtos. Os simpósios exibem, portanto, o nome de seus patrocinadores – “Simpósio Bayer”, “Simpósio GSK”, “Simpósio Sanofi” — nos quais se enfrentam os KOLs de cada laboratório. Para assegurar os serviços de médicos influentes, os lobistas dos grandes grupos conduzem um trabalho de fôlego que passa principalmente pela organização de viagens com vocação pseudocientífica. Uma “médica de produto” da Sanofi conta como constituiu o grupo de especialistas de um medicamento apoiando-se sobre os médicos cuidadores que influenciavam os outros “receitadores”. “Eu disse: tenho dez lugares, só quero aqueles que ganham um milhão de euros ou mais [em volume de negócios]. No primeiro ano, eu os levei para Cingapura. No segundo, aconteceu de serem no geral os mesmos. Aonde fomos? A Durban [África do Sul]! Um ano depois, estávamos em Cancún [México] e, no seguinte, na Birmânia. É desnecessário dizer — isso não se diz porque não se tem o direito —, mas é assim que você cria parceiros de verdade.”
Reencontramos, na organização dos testes clínicos, uma imbricação similar do valor de troca e do valor de uso. Um dos KOLs da Pristinamicina, o doutor Jean-Jacques Sernine, responsável por alguns testes clínicos, é um dos infectologistas mais renomados da França. Sua carreira foi construída em torno de duas práticas profissionais: a coordenação de testes clínicos para a indústria farmacêutica (sobretudo para Pristinamicina, na Sanofi) e a expertise junto às agências públicas do medicamento. Ainda que não avaliasse os mesmos medicamentos nos dois casos — ou haveria um flagrante conflito de interesses —, ele fazia parte de um pequeno grupo de especialistas que, tomados coletivamente, passava de uma margem para a outra, da indústria farmacêutica à medicina pública. “O conflito de interesses é permanente. O principal deles, quando se está lá dentro, é se interessar pelos antibióticos!”, justifica. “As coisas só são possíveis se há uma troca entre os avaliadores que somos no nível administrativo e a indústria farmacêutica.” Juiz e, em parte, condenado ao conflito de interesses, o grupo social dos especialistas fica dessa forma prisioneiro de sua própria competência.
Tal situação repercute na ANSM (Agencia Nacional de Segurança do Medicamento e dos Produtos de Saúde francesa), cujo trabalho baseia-se inteiramente na expertise. Situada na periferia norte de Paris, ela fica em um imponente prédio com vidros que não têm a graça e a leveza da sede comercial da Sanofi: quando chegamos ali, a porta giratória, temporariamente travada pelas intempéries, estava cercada por uma fita de construção vermelha e branca. Foi por uma porta clássica que tivemos de passar, para chegar a uma sala de espera à qual várias plantas de plástico, com folhas cheias de poeira, davam um ar de gabinete de taxidermista.
Essa desigualdade estética reflete uma profunda ausência de simetria social e econômica, que torna difícil acreditar que a ANSM exerça um contrapoder eficaz. Com efeito, ela muitas vezes não tem o tempo nem os meios de ler e analisar o conjunto dos dossiês de pedidos de autorização de colocação no mercado (AMM) que as empresas fazem chegar a ela. Sernine ironiza sobre um pedido de AMM para o qual ele contribuiu: “Eram 57 volumes de seiscentas ou setecentas páginas cada um, que pesavam 110 quilos e atingiam 2 metros de altura. E era apenas uma parte do dossiê”. Essa situação está longe de ser nova. A crônica jurídica de Bertrand Poirot-Delpech no Le Monde, durante o escândalo sanitário do Stalinon em 1957, já a mencionava como um problema fundamental: “Mestre Floriot, por exemplo, dedicou-se a um cálculo indiscreto. Sabendo que 2.276 vistos tinham sido concedidos em 1953 e que os comissários reuniram-se oito vezes por ano à razão de algumas horas a cada vez, ele chegou ao tempo recorde de 40 segundos por exame de dossiê”.[4]
Hoje, os testes clínicos sobre os antibióticos desenvolvem-se em condições opacas, sobre um fundo de divisão seletivo e mesmo com manipulações de dados. Um teste sobre a utilização da Pristinamicina nos casos de pneumonia ilustra o problema: havia, segundo Sernine, sete fracassos do tratamento para o grupo de pacientes tratados com a droga e somente quatro no grupo de controle. Segundo o especialista, que partilha a opinião da diretora médica do laboratório, teriam sido incluídos doentes em situações a tal ponto severas que requereriam outro tratamento diferente. “Portanto, a conclusão a que cheguei sobre isso é que se trata do fracasso não do antibiótico, e sim da estratégia”. Um argumento surpreendente do ponto de vista lógico: como julgar a eficácia de um medicamento se os pacientes que ele não cura não são imediatamente desqualificados, se se parte do princípio de que ele só é eficaz quando é eficaz?
É difícil para a ANSM desviar-se desse tipo de raciocínio circular no seio de dossiês estatísticos complexos, que hoje substituíram a argumentação baseada no olhar médico que percorre os casos clínicos individuais. Com frequência, essa manipulação dos números conduz a falsificações. Em 2007, o caso do Ketek suscitou várias mortes de pacientes por causa de problemas hepáticos e levou um dos responsáveis pelos testes a purgar uma pena de prisão de dois anos nos Estados Unidos, por ter “inventado” pacientes para inflar artificialmente a eficácia do medicamento. Longe de ignorar o problema, certos dirigentes científicos lembram, vários anos após o escândalo, que para esse medicamento “havia cadáveres nos armários”.
Essa expressão, utilizada por uma das diretoras médicas do grupo, testemunha certo cinismo no interior da empresa, cujos altos executivos interiorizaram profundamente os códigos. Para eles, os interesses do grupo vêm antes da saúde dos pacientes, sempre que surge, entre estes dois sistemas de valores, um conflito. De maneira geral, nos escritórios do serviço médico e nos do marketing reina uma forma de amnésia seletiva do medicamento. A história dos efeitos colaterais imprevistos, dos testes clínicos deturpados e dos escândalos sanitários não é memorizada e o fracasso clínico não tem o mesmo status do sucesso.
Toca-se aqui num dos problemas de fundo da indústria farmacêutica: o fato de os testes clínicos, ou seja, a prova da eficácia dos medicamentos, serem estabelecidos por aqueles que produzem esses mesmos medicamentos. Alguns chamaram esse fenômeno de dependência de “captura regulamentar” do Estado pelas empresas. Essa engrenagem ressurge a cada novo escândalo: Stalinon (1957), talidomida (1962), Distilbène (1977), Prozac (1994), cerivastatina (2001), Vioxx (2004)… A cada onda daquilo que os tribunais chamam de “homicídios involuntários”, a questão da independência dos testes clínicos volta à tona, mas nunca as reformas que se seguem questionam o regime de propriedade comercial do medicamento.
O problema está profundamente enraizado no sistema econômico, que não é mais moral para o medicamento que para o petróleo ou os cosméticos. Não somente porque são os mesmos acionistas que se encontram nos comandos — a L’Oréal continua sendo a principal acionista da Sanofi, desde a recente saída da Total –, mas também porque a possibilidade de lucrar com os medicamentos aguça os velhos antagonismos entre o valor de uso e o valor de troca.
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[1] Conduzida no âmbito de um doutorado em Sociologia, esta pesquisa durou quatro anos, durante os quais o autor foi contratado para vários cargos, por exemplo, o de estagiário nos serviços comerciais da Sanofi, operário nas fábricas do grupo etc.
[2] A economia clássica distingue o valor de uso e o valor de troca de uma mercadoria. Adam Smith distingue, por exemplo, o diamante, com alto valor de troca e fraco valor de uso, da água, com fraco valor de troca e alto valor de uso.
[3] Os nomes dos funcionários foram modificados para preservar seu anonimato.
[4] Bertrand Poirot-Delpech, Le Monde, 1o nov. 1957.
*Quentin Ravelli | Le Monde Diplomatique Brasil | Paris
** Fonte: Revista Samuel online. Texto publicado originalmente em francês pelo Le Monde Diplomatique e em português pelo site Outras Palavras, com tradução de Inês Castilho
Publicado em 02/02/2016
Brasília? Itaipu? Não. SUS é a maior obra da história do Brasil
Para recobrar o ânimo, lembre-se que esta terra meio atrapalhada foi pioneira, entre países grandes, a transformar saúde em direito fundamental.
por Leandro Beguoci – BBC Brasil
Um dia, no começo dos anos 1990, minha mãe atendeu o telefone e soube que o irmão mais velho estava com o coração por um fio. O rosto da minha mãe congelou, e ficou assim por um tempo, numa expressão dura de impotência e tristeza. Meu tio não tinha convênio médico.
Era uma situação tão difícil quanto previsível. No Jaraguá, bairro da periferia de São Paulo onde meu tio vivia, as pessoas morriam cedo. E não era só lá. Em Pirituba, onde meus avós e algumas tias moravam, a situação era a mesma.
Lembro bem das vizinhas que foram viúvas quase a vida inteira e das pessoas que tinham dois nomes – o segundo era uma homenagem a um irmão morto logo depois do parto. A morte estava por perto. Era só esperar um pouquinho que ela chegaria depois de uma gripe ou de uma festa de domingo.
Essas pessoas – pedreiros, eletricistas, donos de bar, sapateiros – não tinham renda o suficiente para bancar essa despesa nem um pedaço do Estado para pedir ajuda. Plano de saúde era coisa de funcionário público ou de região com muita fábrica, região desenvolvida, coisa do admirado ABC Paulista, onde vivia outra parte da família. Aquele pedaço industrial de São Paulo, na minha cabeça de criança, era intocado por velórios.
Para sorte da família do eixo Jaraguá-Pirituba, o Brasil criou o SUS (Sistema Único de Saúde) em 1988. Como lembra o doutor Drauzio Varella, “nós nos tornamos o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou oferecer saúde para todos”.
Tivemos essa coragem nos anos 1980. Naqueles anos difíceis, uma série de heróis anônimos, de diferentes correntes políticas, criou um consenso. Não é uma questão de políticas do MDB ou da Arena, do PT, PSDB, PMDB ou DEM. O Brasil chegou à conclusão de que saúde era direito de todo mundo e de que a conta deveria ser rateada entre a população – tanto que colocou isso na Constituição.
Futuros engenheiros
Foi uma das obras mais grandiosas da nossa história – maior do que Brasília, maior do que Itaipu. Essas obras são importantes, claro. Mas a existência do SUS permite que futuros engenheiros sobrevivam ao primeiro ano de vida.
Entre 1990 e 2015, o Brasil derrubou drasticamente a taxa de crianças que morrem com poucos anos de vida. Os médicos da família chegam a milhões de pessoas. A vacinação, o transplante de órgãos e o combate à Aids se transformaram em referências internacionais. Recentemente, foi uma médica do SUS quem descobriu a relação entre zika vírus e microcefalia.
O SUS também salvou algumas vidas familiares. Meu tio com o coração frágil, graças ao sistema público, está vivo e bem até hoje – apesar da sua situação ainda ser preocupante.
O SUS é inspirado nos sistemas de saúde dos países da Europa Ocidental, como o NHS (National Health System) inglês. Admirado e respeitado, foi até homenageado na abertura da Olimpíada de 2012, em Londres.
Para criar um sistema assim, é preciso que o país, em algum momento da sua história, tenha chegado a uma conclusão: saúde não é apenas responsabilidade individual. É direito das pessoas e, portanto, obrigação do Estado.
Parece um jogo de conceitos, mas não é. Nos EUA, sempre foi muito difícil criar um sistema público de saúde. Para muita gente, é uma interferência enorme do governo na vida das pessoas e esse problema é mais bem resolvido por operadoras privadas de saúde, com incentivos para competir e oferecer melhores serviços.
Isso tem consequências. As pessoas têm acesso a muitos medicamentos e tratamentos modernos nos EUA. Ao mesmo tempo, têm contas gigantescas para pagar e muitas famílias quebram – ou não tem acesso a serviços básicos. Na Europa ocidental, o tratamento é publico e gratuito. Pode ser mais demorado, nem sempre é de ponta, mas ninguém precisa se preocupar com contas milionárias.
Claro, há uma enorme zona cinza entre esses dois pontos, e é muito raro encontrar um país que seja apenas público ou apenas privado. Há variações sobre o tamanho do Estado tanto em investimento quanto em regulação – afinal, o que você vai fazer caso seu plano não te atenda? Não importa o modelo. Ele sempre pede escolhas, e elas não são fáceis. Não tem exatamente certo ou errado. Tem o que funciona e o que não funciona para cada país, de acordo com as escolhas que cada um faz em determinado momento da sua história.
Deficiências
O SUS é um avanço gigantesco, mas é impossível ignorar os casos de corrupção, o descaso com hospitais e postos de saúde, além da demora de meses para agendar consultas em muitos Estados e municípios. Na média, ainda temos menos médicos a disposição das pessoas do que a média dos países mais desenvolvidos do mundo – e ainda temos de ver Estados, como o Rio de Janeiro, em situação de calamidade.
Até a médica que descobriu o elo entre zika e microcefalia, na Paraíba, vive longe do paraíso – ela precisa de muito mais dinheiro para tocar suas pesquisas.
O complexo sistema de financiamento do SUS, dividido entre União, Estados e municípios, não ajuda. Muitos governadores e prefeitos não investem o mínimo necessário para o sistema funcionar. Na prática, os gastos de todos os governos com saúde não chegam a 4% do PIB. É pouco.
Se somarmos todos os gastos com saúde no Brasil, o setor privado é responsável por 60% dele. Os outros 40% são de dinheiro público. Porém, o setor privado atende apenas 25% das pessoas. A maior parte dos brasileiros depende de um dinheiro escasso, picotado e, muitas vezes, mal administrado.
Para piorar, o setor privado está longe da sua melhor forma. Mesmo os brasileiros que podem pagar não estão seguros. As reclamações são gigantescas. Dados recentes revelam que cerca de 100 mil pessoas fizeram queixas formais dos serviços dos convênios em um ano.
Além disso, em muitos casos o setor privado repassa a conta ao governo. Os planos usam brechas jurídicas para mandar seus consumidores ao SUS, economizando alguns milhões em repasses a médicos e hospitais. Além da canibalização de recursos escassos, há uma malandragem desagradável.
A conta do SUS é difícil. Afinal, dinheiro público não é dinheiro gratuito – ele vem dos nossos impostos e das nossas escolhas. Saúde é uma questão de vida e morte – e mesmo o melhor plano não garante um tratamento caríssimo de câncer. Não há um consenso de que só Estado ou só o mercado possam resolver o problema. Saúde é um desafio gigantesco, concreto e imediato. Mas é uma questão que vale a pena encarar.
Nesse Brasil polarizado, muitas vezes em torno de questões vazias, é sempre bom lembrar dos tios que foram salvos pelo SUS e de quantos mais poderiam ter sido salvos, se o sistema fosse melhor.
Temos de ter orgulho das coisas que dão certo e espírito crítico para resolver, sem histeria, os nossos problemas. Um SUS poderoso não é bom apenas para quem usa o sistema público – ele também obriga o setor privado a puxar sua régua lá pra cima
Fonte: Carta Maior
Publicado em 01/02/2016
CNS debate direito e financiamento público à saúde no Fórum Social
Na quinta-feira (21/01) o Conselho Nacional de Saúde (CNS), com apoio da Fenafar, promoveu o seminário “Direito à Saúde, Mercado Financeiro e Estado”. O evento integrou a programação do Fórum Social Mundial, que segue até sábado (23).
O presidente do CNS e da Fenafar, Ronald Ferreira dos Santos, abriu o debate apresentando os esforços realizados pelo CNS ao longo dos anos, sintetizado nas diretrizes apresentadas durante a 15ª Conferência Nacional de Saúde, que aconteceu em dezembro de 2015. São elas: a garantia do financiamento estável para o SUS, melhorando a sua padronização nos três níveis do governo e a transferência de recursos aprimorando o marco regulatório da saúde suplementar, garantindo direitos e o acesso na qualidade da atenção à saúde.
Estiveram presentes o procurador da República e secretário de Relações Institucionais da Procuradoria Geral da República, Peterson Pereira, o professor Ladislau Dawbor, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães; e Socorro de Souza, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e ex-presidenta do CNS. Durante o seminário os participantes puderam assinar simbolicamente a adesão a Frente em Defesa do SUS – Abrasus.
De acordo com Peterson Pereira, o direito à saúde deve ser aprofundado para que se possa entender melhor a crise na saúde pública no país, apontando soluções para melhorar a qualidade de vida da população. Segundo o procurador, alguns elementos a explicam essa crise, como os determinantes sociais: práticas associadas ao modo de vida do cidadão, muitas vezes forçado a viver situações que colocam sua saúde em risco, como a poluição, o estresse urbano, a falta de saneamento, entre outros.
Peterson aponta o agravo na crise de gestão da saúde pública. “Vivemos uma crise de gestão da saúde no país, precisamos resolver isso até para darmos uma resposta aos setores conservadores da sociedade que querem privatizar a saúde, devemos qualificar a gestão. A luta em defesa do SUS deve ser concretizada pois privatizar a saúde é barbárie, até mesmo a classe média alta não possui condições de sustentar a saúde privada”, diz.
O professor Ladislau Dowbor acredita que o ponto central da saúde pública no país é o controle da distribuição de recursos. Hoje 72% do orçamento do governo federal são para os municípios. “Não somos sociedades pobres, o que produzimos atualmente em bens materiais equivale a R$ 7 mil para cada membro de uma família com quatro pessoas”, diz.
Para Dowbor, a principal disputa da saúde hoje em dia é com o setor privado, que quer cada vez mais fatias no orçamento do governo com as políticas sociais. Os bens públicos devem passar por processos descentralizados e participativos para melhor compreender o sistema. “A compreensão econômica de uma país deve passar pelo controle social de gastos com o bem público”, afirma.
Segundo o embaixador, Samuel Pinheiro, o Estado é o principal organismo que deve prover a saúde de todos os brasileiros, garantido pela Constituição. “O Estado tem por obrigação se comprometer com a luta básica da prevenção as doenças, como o investimento em informação para a população”, diz.
Pinheiro ressaltou a preocupação com a saúde em relação a mortalidade da população. “A saúde tem como objetivo preservar a vida, uma das causas de morte no Brasil são os assassinatos, cerca de 50 mil pessoas morrem por ano vítimas desse tipo de crime, 200 mil pessoas ocupam a saúde pública vítimas de acidentes no trânsito, o Estado deve regular com maior vigor a legislação no trânsito, por exemplo”.
Socorro Souza falou da importância do espaço do seminário ter acontecido durante o Fórum Social Mundial. A ex-presidenta do CNS destacou as propostas que o conselho defende como novas formas de financiamento para o SUS, além de um diálogo permanente do governo federal com a população para esclarecer o imposto da CPMF, como de onde cobrar e aplicar esses recursos.
Uma preocupação, apontada por Socorro, é a criminalização dos movimentos sociais. “Precisamos levantar nossas bandeiras, existe uma agenda articulada com a classe média, com dinheiro e a direita conservadora do país, que se contrapõe a tudo que os movimentos sociais já construiu. Isso é muito grave, precisamos ocupar as ruas e apresentar nossa luta”, diz.
Fonte: CNS
Publicado em: 22/01/2016
Fiocruz anuncia kit de diagnóstico simultâneo para zika, dengue e chikungunya
Inovação vai conferir maior agilidade para a atuação da rede de laboratórios do Ministério da Saúde, com redução de custos e substituição de insumos estrangeiros por nacionais.
A Fiocruz e o Ministério da Saúde divulgaram no sábado (16) um kit que permite o diagnóstico simultâneo de zika, dengue e chikungunya. Essa inovação vai conferir maior agilidade para a atuação da rede de laboratórios do ministério, com redução de custos e substituição de insumos estrangeiros por nacionais.
O anúncio foi feito durante visita do ministro da Saúde, Marcelo Castro, ao campus da Fundação Rio de Janeiro. O kit foi desenvolvido com o trabalho conjunto do Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP) e de quatro unidades da Fiocruz: o Instituto Oswaldo Cruz (IOC), com o apoio do Instituto Carlos Chagas (Fiocruz Paraná), do Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães (Fiocruz Pernambuco) e do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos). O MS vai encomendar 500 mil kits à Fiocruz até o final deste ano.
Segundo o ministro Marcelo Castro, o teste que a Fiocruz desenvolveu e que será lançado no fim de fevereiro, é fundamental do ponto de vista de estratégia de saúde pública. “É importantíssimo que esta tecnologia seja brasileira. Isto traz uma vantagem extraordinária, porque hoje fazemos três testes separadamente, com produtos importados. Agora faremos os três testes de uma só vez. E, como o teste é nacional, vamos economizar divisas aos cofres públicos”.
Atualmente, o diagnóstico do vírus zika é realizado por técnicas moleculares, com uso da técnica de RT-PCR em Tempo Real, que identifica a presença do material genético do vírus na amostra. São usados reagentes importados e, para descartar a presença dos vírus dengue e chikungunya, é necessário realizar cada exame separadamente.
O kit discriminatório para dengue, zika e chikungunya permite realizar a identificação simultânea do material genético dos três vírus. Além de evitar a necessidade de três testes separados, o kit oferece uma combinação pronta de reagentes, acelerando a análise das amostras e a liberação dos resultados.
Fonte: Rede Brasil Atual
Publicado em: 17/01/2016
Sem dinheiro, o SUS morre
O financiamento do Sistema Único de Saúde, criado pela Constituição em 1988 para garantir atendimento público e universal aos brasileiros, está em xeque. A ascensão social das últimas décadas ampliou o mercado consumidor deremédios. A mudança demográfica elevou o envelhecimento da população. E uma modificação no perfil epidemiológico impulsiona o registro cada vez mais frequente de males comuns em países desenvolvidos como tipos variados de câncer e o diabetes. Esses três fatores pressionam o custo do sistema e provocam um déficit na conta da indústria farmacêutica nacional sem precedentes.
Os gastos no setor têm sido crescentes, o que piora o quadro no momento em que o País registra uma brutal queda de arrecadação em decorrência da crise econômica. O principal temor dos debatedores reunidos no seminário Os Desafios da Saúde no Brasil do Século XXI é que o aperto fiscal leve União, estados e municípios a reduzirem os aportes na área. O debate, mais um evento da série “Diálogos Capitais”, aconteceu em São Paulo na segunda-feira 30. Criado em 1988, o SUS é um dos maiores sistemas públicos em operação no mundo, mas para assegurar a sua universalidade é essencial garantir uma fonte segura de financiamento. Em 1990, o então presidente Fernando Collor eliminou o artigo que regulamentava a origem dos recursos. Em 1997, Fernando Henrique Cardoso criou aCPMF, mas, em 2007, o PSDB, na oposição, articulou a extinção do imposto. A CPMF garantia um terço do orçamento do Ministério da Saúde e hoje representaria uma arrecadação de 63 bilhões de reais.
“O gasto público em saúde no Brasil está em 4,7% do PIB, enquanto nos sistemas isolados na Europa está em 8%. O SUS tem ficado mais caro por causa do novo perfil de doenças do País, do aumento da expectativa de vida e da obesidade. Só 25% da população tem acesso a seguro”, descreveu Hêider Aurélio Pinto, secretário de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde.
“O SUS nunca esteve tão ameaçado, jamais foi tão grande a diferença entre o que ele teria de oferecer e o que ele oferece. Os custos são mais altos, o financiamento é o mesmo”, destacou Antônio Britto, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa. Por causa das demissões provocadas pela crise econômica neste ano, mais de 500 mil brasileiros deixaram de ter seguro de saúde até outubro, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar.
O gasto em saúde per capita soma 525 dólares no Brasil, abaixo dos 721 dólares gastos na Argentina, dos mil dólares desembolsados no Uruguai e dos 4 mil dólares do Canadá. “Se queremos cumprir o que a Constituição estabelece, teremos o desafio de obter mais recursos e melhorar a gestão dos recursos”, disse Pinto. O orçamento do ministério, em 2015, chegava a 100 bilhões de reais, mas 13 bilhões de reais acabaram contingenciados pelo ajuste fiscal. Na proposta para o próximo ano, o orçamento da pasta estima um déficit de 9,2 bilhões de reais.
Para José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde e diretor-executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde, sem o SUS, o Brasil viveria uma barbárie social. “A questão do financiamento é primordial e traz na essência a necessidade de se discutir o Estado, uma reforma fiscal, pois para atender à utopia proposta na Constituição é preciso chegar ao padrão inglês em que 85% do gasto em saúde é público.” No Brasil, apesar de um quarto da população ser atendido pelo sistema privado, o segmento responde por metade dos gastos em saúde. “O que queremos do SUS? Há muitos projetos no Congresso que querem minar o sistema, como aquele do deputado Eduardo Cunha”, ressaltou o ex-ministro.
Temporão listou caminhos para assegurar o financiamento à saúde pública. Apenas 15% da população brasileira fuma, mas, segundo ele, os impostos sobre os cigarros são muito inferiores aos cobrados em outros países do mundo. Bebidas destiladas e cerveja também oneram o sistema de saúde, mas têm tributos abaixo da média internacional. Refrigerantes e sucos processados poderiam ter alíquotas de impostos mais altas que aquelas dos alimentos naturais. “Por ano, no Brasil, o trânsito faz 100 mil vítimas, então esse é outro ponto a ser analisado.”
O contexto atual de desaceleração da economia, menor arrecadação tributária e o aperto fiscal tornam a questão de financiamento ainda mais importante. “Poderemos ter, em 2016, a redução de alguns serviços de prefeituras e governos estaduais e isso abre uma brecha para a deslegitimação do setor público, assim como aconteceu na década de 1980. Precisamos começar a discutir o que queremos da saúde pública e como vamos financiá-la”, afirmou o secretário.
Além do financiamento, a universalização depende da formação de um número maior de médicos e de uma melhor distribuição dos profissionais pelo País. “O Brasil tem poucos médicos e mal distribuídos entre as regiões e nos estados”, afirmou o secretário. Segundo o último levantamento do ministério, existem 1,8 médico por mil brasileiros. O número é inferior àquele de países europeus e de vizinhos sul-americanos. Na Argentina, a proporção é de 3,2. Em Portugal e na Espanha, 4. Em Cuba, 6,8. São Paulo e Rio de Janeiro possuem médias próximas àquelas de países desenvolvidos: 2,49 e 3,4 médicos por mil habitantes, respectivamente. Pará e Maranhão, por sua vez, registram números preocupantes: de 0,77 e 0,58. “Apenas 30% do estado de São Paulo apresenta taxa mais elevada que a média nacional.”
Segundo o secretário, em dez anos, foram abertos 146 mil postos de trabalho para médicos, mas, nesse período, as universidades brasileiras formaram apenas 64% da demanda. Para aumentar essa taxa, o ministério mira a ampliação de vagas em universidades públicas e privadas. O plano do ministério é abrir 11,5 mil novas vagas de graduação até 2017 e outras 20 mil de residência até 2018. A meta da pasta é sair dos atuais 374 mil médicos para 600 mil, em 2026. Essa expansão seria o suficiente para igualar o Brasil a países que têm um sistema público de saúde de referência, entre eles o Reino Unido, que possui 2,7 médicos por mil habitantes.
Para o governo, o Programa Mais Médicos trouxe bons resultados. A iniciativa atende 72,8% dos municípios e todos os 34 distritos indígenas, vários deles localizados em áreas pobres e de difícil acesso. Nas cidades atendidas pela ação, houve um amento de 33% nas consultas na atenção básica. Isso significou uma redução de 4% nas internações, um índice 8,9% superior ao de outros municípios que não participam do programa. Por causa da abrangência do Mais Médicos, em dois anos houve um crescimento de 4,5 vezes na cobertura de atenção básica. Nesse ritmo, estima-se que 75% da população brasileira seja coberta no próximo ano.
Sexto maior mercado de saúde no mundo, o Brasil tem outro desafio: ampliar a inovação na indústria e aumentar sua musculatura para atender à crescente demanda. Ao lado das empresas que atuam no segmento eletroeletrônico, os laboratórios farmacêuticos nacionais detêm um dos maiores déficits industriais. A inclusão de novos consumidores de medicamentos a partir da ascensão social das classes C e D, o envelhecimento da população e a ampliação do diagnóstico de doenças de “Primeiro Mundo” tendem a aumentar a demanda por remédios e piorar o desempenho da balança comercial da área, caso não se trace um plano de investimentos em inovação e desenvolvimento dos laboratórios.
“A questão é como fortalecer a inovação e criar um ambiente que favoreça esses investimentos”, destacou Pedro Palmeira, chefe do Departamento da Área Farmacêutica do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Dos dez medicamentos mais vendidos no mundo, sete resultam da manipulação da biotecnologia, um segmento que tem ganhado espaço. “Hoje nos encontramos em um momento no qual existem empresas capazes de dialogar sobre inovação radical e outras que estão aptas a fazê-la.”
Um exemplo é o laboratório Cristália. Os especialistas em pesquisa científica da empresa desenvolveram o carbonato de lodenafila, princípio ativo do Helleva, colocado no mercado após sete anos de pesquisas. Trata-se do primeiro fármaco de origem sintética desenvolvido integralmente no Brasil, da concepção da molécula aos estudos clínicos. É a quarta molécula original criada no mundo para o tratamento da disfunção erétil. O fármaco foi patenteado nos Estados Unidos, Europa e Hong Kong. Em 2015, o Helleva começou a ser exportado para o México. Ogari de Castro Pacheco, fundador do Cristália, informa: “Temos 84 patentes e 168 em análise. O Brasil tem a chance de não perder o bonde da história, podemos fazer diferente”.
Fonte: Carta Capital online
Publicado em 12/01/2016