Pela primeira vez, uma série médica brasileira baseada em casos reais revela os conflitos e vitórias de uma equipe de saúde da família da rede pública e seus pacientes
Os 26 anos do SUS e as ameaças de sucateamento da saúde, por Ronald Ferreira dos Santos
RONALD FERREIRA DOS SANTOS
Presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS)
Hoje, 19 de setembro, é uma data emblemática para todos que defendem o fortalecimento e a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele marca o aniversário da Lei 8.080, uma das mais democráticas e inclusivas do arcabouço normativo brasileiro e que há 26 anos definiu diretrizes para a organização e o funcionamento do SUS, de forma a adequá-lo aos preceitos da Constituição Federal. Segundo a Carta Magna, saúde é direito de todos e dever do Estado, cabendo a este a seguinte responsabilidade: desenvolver políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e outros agravos, bem como ao acesso irrestrito dos cidadãos às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação de seu bem-estar.
A Lei 8.080 regula toda e qualquer atividade de saúde no Brasil, não apenas da esfera pública, mas também do setor privado, do qual o SUS pode contratar serviços complementares. Um de seus princípios mais importantes é o da universalidade, segundo o qual todas as pessoas têm direito a atendimento, sem distinções, restrições ou custo, não importando, por exemplo, se o paciente possui um plano privado de saúde. Já a integralidade, outra diretriz, garante ao usuário uma atenção abrangente, com ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação, com acesso a todos os níveis da assistência.
A chamada Lei Orgânica do SUS traz também o princípio da equidade, que assegura ao paciente um atendimento conforme suas necessidades, levando-se em conta determinantes sociais em saúde, como moradia, alimentação, escolaridade, renda e emprego, entre outros. Essa diretriz leva em consideração que o direito à saúde deve reconhecer e contemplar a diversidade entre as pessoas.
A Lei 8.080 também estabeleceu o princípio da descentralização, que define atribuições comuns e competências específicas para a União, estados, o Distrito Federal e os municípios, cada um deles, de forma independente, responsável pelos rumos das políticas de saúde em seu território.
Mas há na lei outro importante princípio, sem o qual os demais teriam tudo para virar letra morta: é o controle social, que garante a participação da sociedade no acompanhamento e fiscalização da formulação e execução das políticas de saúde. Esse acompanhamento se dá, primordialmente, por meio dos conselhos e conferências de saúde e de outras instâncias.
No Conselho Nacional de Saúde (CNS), instância máxima de deliberação do SUS, bem como nos conselhos estaduais e municipais de Saúde, estão representados diferentes segmentos da sociedade, como usuários do SUS, profissionais de saúde, movimentos sociais, prestadores de serviço, gestores, entre outros.
Esse controle social vem enfrentando, ao longo dos 26 anos de vigência da Lei 8.080, sucessivas propostas e medidas nocivas ao caráter universal do SUS, a maioria patrocinada por representantes do Estado, justamente por quem, segundo a Constituição, deveria zelar pelo fortalecimento e consolidação do nosso sistema de saúde.
Em 19 de agosto, por exemplo, o Plenário do CNS aprovou a Resolução n. 534, posicionando-se contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, que defende a desvinculação de receitas para a saúde e o estabelecimento de tetos orçamentários. Ou seja, pela PEC os entes federados ficariam livres da obrigação constitucional de garantir percentuais mínimos de sua receita para a saúde, com o agravamento do subfinanciamento crônico enfrentado pelo SUS ao longo dos anos.
A Resolução do CNS também defende a revogação da Portaria 1.482/16 do Ministério da Saúde, que cria o Plano de Saúde Acessível, uma cesta de serviços mais baratos e com baixa cobertura. A justificativa do ministério é de que, com a medida, será possível alocar mais recursos no SUS. Na verdade, essa portaria fere os princípios da política nacional de saúde e favorece os planos privados, quando se sabe que não cabe ao Estado brasileiro promovê-los, mas sim regulá-los.
Como podemos ver, novas tentativas de enfraquecer o SUS e reduzir direitos estão em curso a despeito dos 26 anos de uma das leis mais democráticas e inclusivas do país. Mas as instâncias de controle social, amparadas pela Constituição e com muita energia, estão articuladas para defender o SUS e garantir o direito dos cidadãos a receber uma assistência universal, integral e equânime às suas necessidades de saúde e bem estar.
Artigo publicado do Correio Brasiliense em 19.09.2016
Acesso a medicamentos em xeque, entrevista com Ronald Ferreira dos Santos
“Considerando o período que vivemos, a sociedade brasileira deve estar atenta e mobilizada para defender os seus direitos e impedir retrocessos”. O alerta é do farmacêutico Ronald Ferreira dos Santos, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar). Nesta entrevista, ele comenta os desafios a serem enfrentados pelo setor brasileiro de medicamentos em médio e longo prazo entre eles, a judicialização do acesso ao sistema de saúde, a vulnerabilidade na produção de imunobiológicos e o estabelecimento de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs). Para o farmacêutico, no horizonte dos próximos 20 anos o principal entrave aos avanços na área diz respeito a retrocessos fiscais que podem se concretizar no curto prazo, por exemplo, por meio da PEC 241/2016. “Se essa agenda for aprovada, é possível que o Sistema Únido de Saúde (SUS), como o conhecemos hoje, deixe de existir. Neste cenário, não só medicamentos não estarão mais disponíveis para a população, mas a própria saúde pública do país, com universalidade, integralidade e equidade, conforme preconiza a Constituição Cidadã de 1988, estará em xeque”, destaca.
Em setembro comemora-se o Dia Nacional de Luta por Medicamento e o Dia Internacional do Farmacêutico. Qual a importância dessas datas para a construção de um sistema de saúde universal e equitativo?
Comemorado em 25 de setembro, o Dia Internacional do Farmacêutico tem como missão unir os profissionais e conscientizá-los em relação ao contexto social e econômico desse trabalho no mundo. No Brasil, o ano é de resistência e defesa dos direitos conquistados pela população no processo de construção de um sistema de saúde universal e equitativo. Já o Dia Nacional de Luta por Medicamento, 08 de setembro, convida a classe a se aproximar dos cidadãos. O CNS propôs que os diversos conselhos estaduais e municipais realizem atividades alusivas aos 26 anos da publicação da Lei 8.080/90, celebrados em 19 de setembro. A legislação, que define a saúde como um direito fundamental do ser humano e um dever do Estado, regulamenta o SUS, criado pela Constituição Federal de 1988.
Os princípios constitucionais, entretanto, encontram-se hoje ameaçados. A PEC 241/2016, em fase de tramitação, agrava o histórico de subfinanciamento do setor ao prever o congelamento dos gastos públicos pelos próximos 20 anos – sem considerar sequer o crescimento e o envelhecimento populacional. Concomitantemente, foi constituído grupo de trabalho, por meio da portaria ministerial nº 1.482, de agosto de 2016, para discutir e elaborar o projeto de planos de saúde acessíveis. O CNS posicionou-se contrário à proposta, por meio da resolução nº 534 de 19 de agosto de 2016, solicitando, inclusive, imediata revogação da portaria.
A rede Brasil Saúde Amanhã vem realizando o exercício de prospecção estratégica do futuro do sistema de saúde brasileiro, com o horizonte móvel de 20 anos. Quais os desafios colocados hoje para que tenhamos, de fato, medicamentos para todos em 2036?
O primeiro grande desafio é o de manter a luta permanente em defesa do SUS. Todo ataque ao sistema deve ser combatido, principalmente no que diz respeito ao seu financiamento. Não se pode ter dúvidas sobre o seu tamanho e o seu papel, que vai além da garantia da saúde, já que a sua atuação se reflete de modo estratégico no desenvolvimento do país. Além disso, a Política Nacional de Assistência Farmacêutica (resolução nº 338/05 do CNS) deve nortear as políticas setoriais e estar inserida na Política Nacional de Saúde.
A garantia de acesso a medicamentos essenciais por todos os brasileiros passa pelo debate de que país queremos e de qual a responsabilidade do Estado enquanto indutor da Política de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde. É preciso garantir que o medicamento seja visto como insumo essencial para garantia do direito à saúde. Assim, o compromisso com o acesso racional aos medicamentos, norteado pelos princípios do SUS, tem como premissa a defesa da Constituição, da democracia e da Saúde como dever do Estado.
Considerando o longo prazo, como o senhor avalia os programas Farmácia Popular do Brasil e Saúde Não Tem Preço, do Ministério da Saúde?
Ambos os programas devem se vistos como parte de uma estratégia que busca facilitar o acesso da população a medicamentos. O Farmácia Popular do Brasil realiza esta missão em suas duas modalidades, a partir das unidades da própria rede e da sua expansão para o setor privado, através da iniciativa Aqui Tem Farmácia Popular. O Saúde Não Tem Preço, por sua vez, abrange remédios indicados para o tratamento de hipertensão, diabetes e asma, doenças crônicas não transmissíveis com alta incidência na população. Esses medicamentos são entregues aos pacientes de forma totalmente gratuita. As iniciativas têm cumprido importante papel, embora seja necessário estarmos atentos para que elas não venham a substituir o acesso aos medicamentos nas unidades de saúde. Hoje, o número de pessoas medicadas a partir dos serviços da Atenção Básica do SUS é muito maior do que aquelas que obtiveram seus tratamentos por meio dos dois programas. E isso deve continuar.
O repasse de recursos aos municípios para o custeio da assistência farmacêutica precisa ser mantido e ampliado, pois hoje este ente federativo arca com o maior percentual dos investimentos, se comparado com o repasse da União e dos estados. É preciso garantir que não haja duplo financiamento da assistência farmacêutica nos municípios, já que hoje o paciente pode ter acesso tanto pelas unidades de saúde quanto pelo programa Farmácia Popular do Brasil. Quanto à ampliação dos programas, não creio que deva ser natural que o número de princípios ativos ofertados seja crescente. Deve haver a priorização de alguns medicamentos, mas é preciso investir e garantir o acesso prioritário pelas unidades de saúde, com racionalidade. Enfim, o programa tem sido importante alternativa de acesso nesses 12 anos de existência, mas é preciso avançar mais.
O estabelecimento de PDPs tem sido uma estratégia prioritária para a redução das vulnerabilidades do Brasil na produção de medicamentos – ação que requer a centralização das compras do Estado. Como conciliar esta atuação com a extrema descentralização da assistência farmacêutica no SUS?
Entendo que devemos analisar esse tema sob duas óticas. Uma é a da política das PDPs, que é estratégica para o desenvolvimento de medicamentos e equipamentos para o SUS. Outra é a da priorização de fármacos a serem produzidos por essas parcerias. Nesse sentido, é importante destacar que as PDPs são de fundamental importância para o desenvolvimento científico e tecnológico, a promoção da inovação, a redução do déficit da balança comercial do setor Saúde e a diminuição de gastos.
Considerando que a aquisição centralizada pelo Ministério da Saúde é fundamental para a definição dos produtos estratégicos para o SUS, objeto prioritário das PDPs, não entendo que possa haver entrave com a descentralização da assistência farmacêutica. Já existem experiências exitosas de compra centralizada de medicamentos do componente especializado, que devem ser utilizadas como base para as futuras parcerias.
Atualmente, o componente especializado e o programa de medicamentos para HIV/Aids consomem quase dois terços dos recursos do Ministério da Saúde para a assistiência farmacêutica. O crescimento de ações na justiça para a obtenção de medicamentos caros consome recursos adicionais. Isso não agrava a oferta de medicamentos usados pela a maioria da população?
A judicialização do processo de obtenção de medicamentos é pauta permanente do CNS. Temos debatido o tema com outras instituições, tendo claro que é preciso encontrar uma solução para o problema. É preciso, entretanto, ter cuidado em relação à forma como abordamos o tema, já que o acesso aos medicamentos é um direito constitucional. O problema não está em buscar a via judicial como forma de garantir o tratamento, mas em qual medicamento foi prescrito, para qual finalidade e se não existia alternativa terapêutica disponível.
Por isso, é fundamental que a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais esteja permanentemente atualizada, incorporando novas tecnologias, desincorporando o que se torna obsoleto e garantido aumento de recursos para a assistência farmacêutica. O debate a ser feito deve apontar quem será o principal beneficiado com a prescrição que originou a demanda judicial: o paciente ou outro agente da cadeia de medicamentos? A não disponibilidade do medicamento que porventura tenha gerado a demanda judicial é um problema de gestão ou de descompromisso com as relações de medicamentos e com os protocolos terapêuticos?
Como presidente do CNS, quais as principais ameaças à sustentabilidade do SUS, nos próximos 20 anos?
Hoje, o SUS encontra-se sob forte ameaça. Esse patrimônio do povo brasileiro, conquistado com muita luta, está sob ataque, principalmente no que diz respeito ao seu orçamento. As ameaças estão traduzidas em dois movimentos do executivo atual junto ao congresso nacional. Uma é a PEC 241/2016, que pretende congelar gastos públicos por 20 anos, descumprindo a Constituição Federal pela via fiscal. Um dos maiores retrocessos da proposta é a definição de que os investimentos não mais estarão atrelados ao percentual mínimo da receita, como ocorre hoje. Ao estipular um teto de gastos com base no investimento realizado no ano anterior, neste caso 2016, o governo livra-se da vinculação de receita. A segunda ameaça, de impacto ainda mais imediato, está nas mudanças constitucionais propostas pelo Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentarias (PLDO 2017), que retira direitos sociais e prejudica o SUS.
Os objetivos expressos no PLDO 2017 e na PEC 241/2016 estão voltados para a redução das despesas com Saúde, Educação, habitação, mobilidade urbana e outras áreas sociais, em prol da retomada do superávit primário necessário para o pagamento dos juros e da amortização da dívida pública – despesa que não teve teto estabelecido para os próximos anos. Em outros termos, foi abandonado o objetivo de distribuição de renda, substituído por um mecanismo explícito de concentração de riquezas como política de governo. Se essa agenda for aprovada, é possível que o SUS, como o conhecemos hoje, deixe de existir. Neste cenário, não só medicamentos não estarão mais disponíveis para a população, mas a própria saúde pública do país, com universalidade, integralidade e equidade, conforme preconiza a Constituição Cidadã de 1988, estará em xeque.
Opinião: PEC 241, a moratória do contrato social*, Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo
A medida, que limita os gastos públicos por 20 anos, consagra o Brasil como paraíso dos rentistas. Figura no panteão dos anúncios da equipe econômica do governo a Proposta de Emenda à Constituição para instituir o Novo Regime Fiscal, a PEC 241. Em síntese, o “novo regime fiscal” pretende fixar limite à despesa primária dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para cada exercício e pelos próximos 20 anos.
Para 2017, o limite será equivalente à despesa primária realizada neste ano corrigida pelo IPCA. Daí em diante, será definido pelo valor limite do ano imediatamente anterior corrigido pelo índice de inflação.
A nova métrica do “equilíbrio fiscal” busca impedir o crescimento real do gasto primário de um ano para o outro. Sua ampliação será no máximo igual à inflação do ano anterior, ou seja, concedida apenas a atualização monetária.
Como o PIB varia não só pela inflação, que majora seu valor nominal, mas também pelo aumento de todos os bens e serviços produzidos no País, salvo casos de deflação e recessão, a defasagem na taxa de expansão da despesa primária provocará a perda da sua participação relativa, decorrente de um crescimento inferior ao PIB.
O texto da PEC ressalta suas expectativas: “Estabilizar a despesa primária, como instrumento para conter a dívida pública… Entre outros benefícios a implantação dessa medida… reduzirá o risco-País e, assim, abrirá espaço para redução estrutural da taxa de juros”.
Há quase 20 anos, o advento do superávit primário estava prenhe da mesma esperança. De lá para cá a economia brasileira exibiu ao longo de 16 anos (1998 a 2013) superávits primários, o que não impediu o salto da dívida bruta do setor público do patamar de 40%, em 1998, para quase 58% do PIB, em 2013, acompanhada da elevação de 6% na carga fiscal, também medida em relação ao PIB.
Dizem os sabichões que a taxa de juro é elevada por causa do estoque da dívida, mas o caso brasileiro parece afirmar que a dinâmica da dívida é perversa em razão da taxa de juro de agiota. Mesmo em 2015, o ano da desgraça fiscal, 82% do déficit nominal que engordou a dívida bruta foram gerados pelos juros nominais. Em vez de confirmarem as hipóteses que relacionam “espaço fiscal” e juros, os dados apontam a patologia da economia brasileira.
Os resultados primários informados pelo FMI tampouco oferecem amparo às hipóteses que relacionam “espaço fiscal” e juros. Para evitarmos embates metodológicos acerca de defasagens temporais entre causa e efeito, utilizaremos uma singela média dos resultados primários de 2007 a 2015 para uma amostra de países.
Rússia, Índia, China, México, Estados Unidos, Reino Unido e Japão apresentam média deficitária (déficit primário), enquanto Chile, Alemanha, Turquia e Brasil apresentam média superavitária (superávit primário) no mesmo período.
O Japão, que figura há tempos entre as menores taxas de juro do mundo, apresenta o pior resultado fiscal entre os países, com um déficit primário médio no período em torno de 6,5%. O México exibe déficit primário médio de 0,8% do PIB e pratica juros de 4,25%, já a Turquia com quase 1,3% de superávit médio sustenta juros de 7,5%.
O Brasil, com a maior média de superávit primário entre 2007 e 2015 dentre os países listados (pasmem!), quase 2% do PIB, exibe exuberantes 14,25% de taxa Selic, revertendo quase 10% do PIB aos detentores da dívida pública, que representa menos de 70% do PIB, enquanto a Grécia, que tem uma relação dívida/PIB de 170%, despende aproximadamente 5% do seu PIB com juros.
No mundo da finança globalizada, demarcado pela hierarquia entre as moedas, a descuidada abertura da conta de capitais aprisionou as políticas econômicas “internas” à busca de condições atraentes para os capitais em livre movimento. Esse é o ponto central e inalcançável aos leitores de manuais papai-mamãe.
(Foto: iStockphoto)
Surpreendentemente, o texto de proposição do “Novo Regime Fiscal” apresenta, no entanto, oposição e crítica explícita à pedra angular da Lei de Responsabilidade Fiscal, concomitantemente ao reconhecimento do seu caráter pró-cíclico:
“O atual quadro constitucional e legal também faz com que a despesa pública seja prócíclica, quer dizer, a despesa tende a crescer quando a economia cresce e vice-versa. O governo, em vez de atuar como estabilizador das altas e baixas do ciclo econômico, contribui para acentuar a volatilidade da economia: estimula a economia quando ela já está crescendo e é obrigado a fazer ajuste fiscal quando ela está em recessão… Também tem caráter prócíclico a estratégia de usar a meta de resultados primários como âncora da política fiscal… o Novo Regime Fiscal será anticíclico: uma trajetória real constante para os gastos associada a uma receita variando com o ciclo resultarão em maiores poupanças nos momentos de expansão e menores superávits em momentos de recessão. Essa é a essência de um regime fiscal anticíclico.”
Gunnar Myrdal foi pioneiro na preocupação em estabelecer uma política fiscal capaz de suavizar as flutuações econômicas. Sua proposta apoiava-se em estímulos fiscais durante o período de retração e, simetricamente, medidas restritivas durante a expansão, contendo pressões inflacionárias e garantindo uma transição suave da parte descendente do ciclo. No entanto, sua proposta permitia ao governo equilibrar o Orçamento durante todo o ciclo econômico, em vez de considerá-lo ano a ano.
Apesar de assemelhar-se à proposta posterior de John Maynard Keynes para um Orçamento de capital, Myrdal, em 1930, via o investimento público como uma linha de defesa contra flutuações cíclicas, a ser ativada tão somente quando as circunstâncias assim determinarem. Recomendava, portanto, intervenções pontuais de curto prazo.
A ideia de Keynes, por contraposição, é formulada como um projeto de longo prazo. Propunha a “socialização do investimento” em companhia de um sistema tributário progressivo, a eutanásia do rentista e o controle do movimento internacional de capitais para prevenir a instabilidade. Entre outras coisas, Keynes pretendia neutralizar os desvarios da finança nacional e internacional. Sua proposta jamais foi implementada, nem sequer ensaiada.
As propostas de Myrdal e Keynes sustentam em comum a regência de custeio e investimento por métricas distintas. A imposição de um limite linear e genérico às despesas primárias, como consta na PEC 241, pode deteriorar ainda mais a qualidade do gasto público.
Historicamente as despesas com atividades-meio e custeio apresentam tendência mais autônoma de crescimento. Por exclusão, os investimentos assumem o papel de despesas discricionárias. Os investimentos, já baixos e insuficientes, podem ser comprimidos ainda mais com a imposição de um limite genérico. Um regime fiscal que se pretende anticíclico necessariamente deve enfrentar a composição das despesas primárias.
A abordagem do Orçamento camuflada em uma áurea exclusivamente técnica e científica delegável às burocracias não eleitas transformou-se em ferramenta para limitar a disponibilidade de políticas que pareçam viáveis para a comunidade.
O Orçamento é um pilar do Estado Social, expressão da confiança ética construída a ferro e fogo pelos subalternos, que impôs o reconhecimento dos direitos do cidadão, a partir do princípio que estabelece que o nascimento de um cidadão implica, por parte da sociedade, o reconhecimento de uma dívida. Dívida com sua subsistência, com sua dignidade, com sua educação, com suas condições de trabalho e com sua velhice.
A imposição de limites cada vez mais restritos às despesas com serviços essenciais, enquanto juros podem exorbitar livremente, sinaliza simultaneamente credibilidade ao rentismo e temor à população de moratória ao contrato social.
*Publicado originalmente na edição 918 de CartaCapital, com o título “A moratória do contrato social”
Judicialização da Saúde: Controle Social deve atuar para buscar soluções
O presidente do Conselho Nacional de Saúde e da Fenafar, Ronald Ferreria dos Santos, em debate na reunião do CNS sobre judicialização da saúde, afirmou que é papel do controle social da saúde atuar para buscar soluções sobre o acesso aos medicamentos. A discussão sobre a necessidade de uma maior participação das instâncias de controle social na busca de soluções para o fenômeno da judicialização da saúde norteou, nesta quinta-feira (15/09), a abertura da 285ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde (CNJ).
O debate sobre o tema “O sistema de Justiça brasileiro e o direito à saúde” teve a participação de representantes do CNS, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da Defensoria Pública da União (DPU), do Ministério Público (MP), da Advocacia-Geral da União (AGU) e do Ministério da Saúde (MS).
“O principal na avaliação que trago é que o controle social precisa cumprir com suas atribuições, fazer o que tem que ser feito, ou seja, discutir, elaborar, formular as políticas para encontrarmos respostas. Do ponto de vista do financiamento do SUS já temos feito muitas mobilizações, mas não é só a questão do financiamento; há muitas questões que precisam ser estruturadas. Precisamos ter políticas para que possamos diminuir o volume do processo de judicialização”, afirmou o presidente do CNJ, Ronald Santos.
A participação do controle social nessas discussões também foi ressaltada pelo conselheiro do CNJ Arnaldo Hossepian, supervisor do Fórum Nacional da Saúde, cuja atribuição é monitorar e buscar soluções para o fenômeno da judicialização da saúde. Segundo o conselheiro, integrantes dos Conselhos Estaduais de Saúde que representem os usuários do SUS terão assento garantido nos Comitês Estaduais da Saúde que serão criados pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais com base na recém-publicada Resolução CNJ n. 238, de 6 de setembro de 2016.
Os comitês terão entre as suas atribuições auxiliar os tribunais na criação de Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-JUS), constituído de profissionais da Saúde, para elaborar pareceres acerca da medicina baseada em evidências. Esses pareceres serão utilizados pelos juízes como subsídio para sua tomada de decisões em ações de direito à saúde. Outros integrantes dos comitês, segundo a resolução do CNJ, são representantes do Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da advocacia e dos gestores da área de saúde.
A iniciativa do CNJ foi bem avaliada pelos conselheiros do CNS, principalmente pelo fato de a resolução garantir assento para representantes do controle social nos Comitês Estaduais de Saúde. Ao mesmo tempo, porém, tanto o presidente do CNS quanto outros participantes observaram ser necessário também que os responsáveis pela formulação e execução das políticas de saúde cumpram com suas atribuições constitucionais.
“Não vamos esperar que o Judiciário faça o que o gestor da saúde tem que fazer, o que o Legislativo tem que fazer, o que o controle social tem que fazer. Não podemos esperar e delegar para o Judiciário uma atribuição que, constitucionalmente, está delegada também para outras estruturas do Estado brasileiro”, declarou o presidente do CNS, Ronald Santos.
Banco de dados
Já o advogado da União Bruno Veloso Maffia, coordenador-geral de Acompanhamento Jurídico do Ministério da Saúde, detalhou o Termo de Cooperação Técnica assinado entre a Pasta federal e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para a criação de um banco de dados com informações técnicas a serem utilizadas por magistrados de todo o país como subsídio para tomada de decisões em ações judiciais na área da saúde.
Conforme o acordo, o hospital Sírio Libanês, de São Paulo, vai investir, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), cerca de R$ 15 milhões em três anos para criar a estrutura do banco de dados, que estará disponível na página eletrônica do CNJ, ao qual caberá resguardar as informações e torná-las acessíveis aos magistrados e demais interessados.
Durante a reunião, os participantes concordaram que todo cidadão tem o direito de recorrer à Justiça para garantir os seus direitos. Destacaram que o objetivo das discussões não é restringir esse direito, mas sim estreitar o diálogo entre todos os atores envolvidos para que o SUS cumpra com suas atribuições constitucionais e os pacientes consigam exercer o seu direito à saúde.
Foi destacado também que o crescimento da judicialização traz prejuízos ao planejamento dos gestores e a seus orçamentos, pois, em grande parte dos casos, eles são obrigados pela Justiça a fornecer medicamentos e outros tratamentos muito caros, fora da tabela do SUS ou mesmo importados. Segundo informou o Ministério da Saúde, as três esferas de gestão do SUS terão este ano um gasto de R$ 7 bilhões só com o cumprimento de decisões judiciais.
Participaram também da mesa os representantes da Defensoria Pública Federal, Eduardo Nunes de Queiroz, do Ministério Público, Maurício Pessutto, e as conselheiras do Conselho Nacional de Saúde Andrea Bento (representante dos usuários do SUS) e Semiramis Vedovatto (representante dos trabalhadores do SUS).
Da redação com CNS
Presidente da Fenafar e do CNS fala da importância da defesa do SUS. Assista
Em vídeo que faz parte da campanha dos 26 anos da lei orgânica do Sistema Único de Saúde, Ronald Ferreira dos Santos mostra como é fundamental para a democracia e para a cidadania defender a saúde pública. Alvo de ataques do governo Michel Temer e de seu ministro da Saúde, Ricardo Barros, o SUS sofre com a perda de recursos que poderão inviabilizar o sistema em curto prazo, a persistirem as políticas que estão sendo adotadas.
Precisamos ocupar as ruas, diz criador do Médicos pela Democracia
Estarrecido com a recepção agressiva aos médicos cubanos em Fortaleza, cearense Manoel Fonsêca e parceiros tiveram a ideia de criar um grupo de médicos que pudesse fazer oposição à visão elitista de boa parte da classe médica. Surgia, então, o Médicos pela Democracia. Fonsêca tem esperanças de que o Brasil vai superar o golpe. Mas a luta é fundamental. “Precisamos ocupar as ruas em defesa da democracia e dos direitos sociais duramente conquistados. Não há outra saída: Diretas, já!”.
Em 2013, o médico sanitarista Manoel Fonsêca ficou estarrecido com a forma que os médicos cubanos do Mais Médicos foram tratados por parte de seus colegas de jaleco brasileiros na Escola de Saúde Pública do Ceará, em Fortaleza. Na época, os estrangeiros, recém-chegados ao País, sofreram agressões verbais e até ofensas racistas.
Naquele momento, Fonsêca e parceiros tiveram a ideia de criar um grupo de médicos que pudesse fazer oposição à visão elitista de boa parte da classe médica. Surgia, então, o Médicos pela Democracia.
O grupo começou pequeno, com menos de 15 profissionais, mas logo a proposta ganhou corpo. Hoje, são 180 médicos democráticos espalhados pelo Ceará, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Norte, Pernambuco e outros estados.
“Foi quando nós, médicos progressistas, vimos que não estávamos sozinhos”.
De lá para cá, o movimento passou a estar na linha frente dos principais protestos em Fortaleza pela defesa da democracia, do mandato da presidenta eleita Dilma Rousseff, pelos Mais Médicos e pela valorização do Sistema Único de Saúde ( SUS).
Formado no início da década de 1970 e torturado durante a ditadura militar (1964-1985), Fonsêca diz se espantar com o quanto a medicina se tornou um lugar de preconceitos e privilégios.
“Os médicos eram progressistas antigamente. De repente, passaram a se achar diferentes, mais importantes do que os outros. A medicina é uma profissão essencialmente humanitária, para aliviar sofrimentos. Essa arrogância é um negócio tão ridículo”, condenou.
Em sua trajetória profissional, o médico sanitarista atuou na Secretaria de Saúde, além de ter participado do processo de reforma sanitária e da implantação do Programa de Saúde da Família do Ceará. Ele também ajudou a criar a Escola de Saúde Pública do Ceará, onde viu os cubanos serem hostilizados pela “elite do jaleco branco”, como define.
Nascimento do grupo
“Os médicos brasileiros passaram a xingar os cubanos: ‘macacos’, ‘escravos’, ‘voltem para a senzala’. Parecia um corredor polonês”, relembra Fonsêca sobre o ato ocorrido na Escola de Saúde Pública de Fortaleza, em 2013.
Por causa das agressões e do posicionamento das entidades médicas contra a reeleição de Dilma, nasceu a ideia de criar o grupo, mesmo Fonsêca tendo críticas à presidenta e ao PT.
“O Médicos pela Democracia publicou dois manifestos contra o golpe em jornais, passamos a participar de atos pela democracia. O grupo unificou profissionais que não aceitavam a intolerância e a arrogância de parte da classe médica. Houve um entusiasmo muito grande entre os médicos de esquerda.”.
“Os médicos progressistas se sentiam meio sozinhos. De vez em quando aparece um médico e diz: ‘que bom, eu não estou sozinho. Que alegria ter encontrado vocês’. Está sendo uma experiência muito gratificante”, conta.
Ele explica que o grupo também se articulou com entidades de outros setores, como o Mulheres do Ceará com Dilma, o Levante Popular da Juventude e o Retroceder Jamais.
Mais Médicos
Fonsêca faz questão de explicar a diferença entre os médicos dos Mais Médicos e boa parte da classe médica nacional.
“Os médicos elitistas têm a visão de que, por deter parte do saber, podem submeter as pessoas ao seu conhecimento. É uma visão de autoridade sobre o corpo das outras pessoas. Eles, também, não conseguem admitir que um médico cubano vá ao interior do interior. Eles acham que os cubanos estão usurpando um lugar que é deles. Mas eles próprios não vão”.
“Os cubanos vieram inverter a relação médico e paciente. Os profissionais dos Mais Médicos tratam as pessoas como gente: examinam, tocam, conversam, visitam em casa. Os médicos da elite não fazem a mesma coisa porque não gostam de perder tempo com os mais pobres”.
Ele explica, ainda, que a discriminação de parte dos médicos contra os pobres se percebe inclusive nas faculdades.
“Há o preconceito até entre os alunos. Ainda mais agora com o Enem, com o Fies e outras alternativas que os mais pobres estão chegando cada vez mais às universidades”.
Para ele, a luta dos Médicos pela Democracia ajudou a equilibrar o discurso de ódio entre os médicos.
“Os médicos da elite jamais esperavam que a gente fosse dar a cara a tapa, assinasse manifestos, publicasse no jornal de maior circulação da cidade. Esses atos fizeram com que eles arrefecessem um pouquinho, ainda mais depois que ficou evidente a quantidade de políticos corruptos que lutavam pela saída de Dilma. Eles eram muito arrogantes”.
Todos precisam do SUS
De acordo com Fonsêca, o SUS resolve muitos problemas de saúde pública, até em intervenções de alto nível, como transplantes renal e cardíaco. Ele lembra, ainda, que todos precisam e utilizam o sistema de saúde pública brasileiro de alguma forma.
“Todas pessoas precisam do SUS, por causa da vigilância sanitária e epistemológica, controle de endemias, vacinação”, afirma.
Para ele, o grande problema do SUS é o atendimento de emergência, por falta de recursos e pela alta procura por vezes sem necessidade da população, já que as UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) muitas vezes não resolvem a questão.
Fonsêca afirma que o maior ataque o governo golpista de Temer pode causar à saúde brasileira é o congelamento de recursos.
“Estamos em um processo de envelhecimento populacional, com todas as questões de saúde que se acarreta disso, e de repente se congela os recursos financeiros. O problema será grande porque dificulta a atenção primária e a secundária”.
O médico sanitarista tem esperanças de que o Brasil vai superar o golpe. Mas a luta é fundamental.
“O governo usurpador e ilegítimo de Michel Temer não deve ter trégua para pisotear a democracia, destruir direitos conquistados, jogar a soberania nacional na bacia das almas e entregar o pré sal a multinacionais petroleiras”.
“Precisamos ocupar as ruas em defesa da democracia e dos direitos sociais duramente conquistados. Não há outra saída: Diretas, já!”.
Livros escritos por Fonseca
Apesar das palavras firmes, Fonsêca, que nasceu em Quixadá, no interior do estado, e hoje mora em Fortaleza, mantém tom e gestos dóceis. É autor de sete livros livros, alguns de poesia, dedicados a saúde pública, à democracia e ao poder das mulheres.
O seu preferido é “Iracema – Nosso amor”, uma compilação de contos e poesias escritos para a bióloga Iracema Serra Azul, a sua esposa dos últimos 46 anos.
Ambos foram presos e torturados pelos militares pela luta contra a ditadura.“Soubemos superar porque eu e a minha companheira sempre tivemos uma relação muito afetuosa”, afirma.
Em um dos textos, escrito durante sua prisão no Instituto Penal de Fortaleza (a acusação era de subversão), Fonseca escreve à amada, sonhando com a liberdade: “Minha menina (…) Vamos à praia com os pirralhos e também dar um passeio por nossa Fortaleza, a terra de Iracema. De mãos dadas como dois namorados”.
Fonte: Vermellho
Ricardo Barros, o ministro dos planos de saúde
Primeiro ministro da Saúde sem formação na área desde 2003, Ricardo Barros chegou ao cargo pelas mãos de Michel Temer, após indicação do PP. Apesar de pouco conhecido fora do Paraná, seu estado natal, ele começou a ganhar rapidamente espaço nas manchetes de jornais pelo País por conta das dezenas de gafes colecionadas em três meses à frente da pasta. Mas o despreparo do ministro, engenheiro civil de formação, parece ser só um alerta do mal maior que pode representar para a saúde pública brasileira.
Isso porque Barros tem feito de tudo para levar à frente a proposta de criação de planos de saúde populares, agora definidos “acessíveis”. A ideia seria diminuir as exigências mínimas de cobertura, impostas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) às administradoras, para que possam oferecer planos mais baratos à população. Argumento do ministro: não há recursos e, quanto mais pessoas forem atendidas na saúde suplementar, melhor para o Sistema Único de Saúde (SUS).
A proposta abre precedentes perigosos, segundo as principais entidades do setor. A grande preocupação é de que o mercado de saúde retroceda ao que foi antes de sua regulamentação, na década de 1990. É justamente com a criação da ANS que as empresas foram obrigadas a oferecer um rol de atendimentos mínimos, antes de terem autorização para comercializar os planos.
A proposta traz uma realidade já sofrida, cenário sem regras. “O que você faz na sequência é a exclusão de doenças: volta ao mundo em que Aids, enfermidades cardíacas e hemodiálise não tinham cobertura no Brasil”, explica o médico e ex-diretor-presidente da ANS Fausto Pereira dos Santos.
De acordo com Pereira dos Santos, uma parcela das empresas de planos de saúde nunca se conformou com a regulação e luta pela flexibilização do rol de atendimentos. A outra crítica feita é que a proposta não traz novos recursos para o setor. Pelo contrário, deteriora ainda mais o SUS.
Na prática, as empresas ficariam com a parte mais barata do processo, oferecendo planos de cobertura com atendimentos ambulatoriais, o que inclui consultas, exames e primeiros socorros. Os procedimentos mais caros continuariam a cargo do sistema público.
“Todos nós somos usuários do SUS, querendo ou não. Os planos de saúde não dão cobertura integral. Então, vacinas, transplantes, resgate, tudo é SUS”, explica o presidente do Conselho Nacional de Secretariais Municipais de Saúde (Conasems), Mauro Guimarães Junqueira. “O plano vai fazer a cobertura barata, do atendimento médico, e depois o usuário volta para o sistema público de saúde. Isso desorganiza o nosso sistema.”
Não é só a proposta que desagrada às mais diversas entidades de saúde. A forma como o ministro vem conduzindo o debate também provoca reações contrárias. No começo de agosto, Barros publicou uma portaria em que cria um Grupo de Trabalho para apresentar, em até 120 dias, um relatório sobre o assunto. Do grupo, participarão membros do Ministério da Saúde, da ANS e da Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização.
Pérolas
A própria ANS, em todo caso, emitiu uma nota oficial dizendo que “não tinha conhecimento prévio” sobre o assunto. Desde o constrangimento, só quem tem falado a respeito é o próprio ministro. A ANS tem direcionado os questionamentos ao ministério, mas nega que seja ordem dada por Barros.
Até mesmo o Conselho Federal de Medicina uniu-se contra a proposta. A entidade divulgou uma nota em que diz que a ideia só beneficia “os empresários da saúde suplementar, setor que movimentou, em 2015 e em 2016, em torno de 180 bilhões de reais”. “O Conselho não vai participar da discussão sobre a implementação de uma proposta que não concorda”, explica o presidente Carlos Vital Tavares.
No dia 18 de agosto, o Conselho Nacional de Saúde, colegiado formado por entidades representantes das mais diversas áreas da saúde, também aprovou uma moção contra os “planos acessíveis”. Decidiu ainda, em reunião, não participar do grupo de trabalho.
O ministro Barros estava presente, mas foi embora antes que o assunto entrasse em discussão. “Trata-se de uma falsa solução que coloca na conta do trabalhador o subfinanciamento da saúde”, diz o presidente do Conselho, Ronald Ferreira dos Santos.
A proposta ainda guarda na reeleição de Ricardo Barros, para deputado federal em 2014, parte de seu descrédito. O maior doador individual da campanha do ministro foi Elon Gomes de Almeida, presidente do Grupo Aliança, administradora de benefícios de saúde.
Foram 100 mil reais declarados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em resposta, a assessoria do ministro rebate que essa doação correspondeu a apenas 3,1% do total recebido por Barros na campanha.
“O ministro está vendo nesse processo uma janela de oportunidade para que ele possa, de alguma forma, retribuir”, critica o ex-diretor-presidente da ANS, antes de lembrar que Barros foi relator da Lei Geral das Agências Reguladoras. “Ele viu oportunidade de formular uma proposta que quebra a espinha dorsal da regulamentação dos planos de saúde.”
Procurado por CartaCapital, o ministro nega ter a intenção de beneficiar os planos de saúde. Acentua: ninguém é obrigado a aderir aos seguros. E critica as entidades que se recusaram a participar do debate. “Quem tem cabeça aberta pode participar e discordar. Não é com estas pessoas que tenho de me preocupar. Tenho com as que querem discutir e contribuir.”
*Reportagem publicada originalmente na edição 916 de CartaCapital, com o título “O ministro dos planos de saúde”.
Fonte: Carta Capital
Temer estuda rever SUS para frear gastos com saúde, por Claudia Colucci
Não é novidade que a equipe do presidente Michel Temer quer mexer no SUS, visando cortes que representem economia. O que pode acontecer agora, com a posse dele após o impeachment de Dilma Rousseff, é o assunto dessa análise feita pela jornalista especializada da “Folha de S. Paulo”, Claudia Colucci. Leia na íntegra:
Gerir um dos maiores sistemas de saúde do mundo, em momento de recessão econômica, será um dos principais e mais complexos desafios do governo de Michel Temer.
Desde que assumiu interinamente, sua equipe dá sinais de que haverá mudanças no SUS (Sistema Único de Saúde), que hoje atende diretamente 75% da população brasileira.
O atual ministro da Saúde, Ricardo Barros, já afirmou que o país não conseguirá mais sustentar os direitos que a Constituição garante, como o acesso universal à saúde. Nesta semana, o governo Temer criou um grupo de trabalho para elaborar uma proposta de revisão da legislação que rege o SUS.
A proposta de limitar gastos obrigatórios também representará um impacto direto no sistema público de saúde. Hoje, pela Constituição, o governo federal tem que aplicar no mínimo 13,2% de sua receita líquida em saúde. Com a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) sugerida pelo governo, a saúde deixaria de ter uma garantia de percentual de receita obrigatória.
A União cumpriria um valor mínimo (ainda não foi especificado) que seria corrigido anualmente pela inflação. Segundo especialistas do setor, se a PEC for aprovada, os cortes girariam em torno de R$ 44 bilhões a menos para o SUS a partir do próximo ano. O Orçamento de 2016 é de R$ 118 bilhões. Além do corte de programas básicos, como o Farmácia Popular e o Samu, isso pode significar mais demora para atendimentos e cirurgias no sistema público.
O momento não poderia ser pior. Em razão da crise econômica e do desemprego, a previsão é de que perto de 2 milhões de pessoas terminem o ano de 2016 sem planos de saúde e terão que bater na porta do já subfinanciado e sucateado SUS. O país já gasta pouco com saúde, menos do que a média mundial. A maior parte do gasto vem do setor privado. Dos 8,5% do PIB investidos, 4,9% são da iniciativa privada e apenas 3,6% do poder público.
Mas qual a saída para garantir mais dinheiro para o SUS? Entre as sugestões de especialistas estão a taxação de grandes fortunas, a sobretaxa de produtos que causam doenças como refrigerantes e cigarros e menos renúncia fiscal.
Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) apontou que apenas com a dedução de gastos com saúde no Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas o governo deixa de arrecadar R$ 16 bilhões por ano.
Mas, mesmo diante do inquestionável subfinanciamento do setor, economistas da saúde sustentam que é possível gastar melhor o montante atual, aprimorando a gestão dos serviços, coibindo desperdícios e fraudes e priorizando a prevenção e a promoção da saúde.
O combate às epidemias de dengue, zika e chikungunya, ligadas ao mosquito Aedes aegypti, também é outra prioridade. Para isso, além da verba, é preciso que o Ministério da Saúde melhore o controle e a fiscalização das ações de prevenção executadas por municípios e estados.
A judicialização da saúde é considerado outro importante ralo por onde se escoa hoje perto de 7 bilhões de verbas federais, estaduais e municipais. As ações usam o direito universal proposto na Constituição para conseguir remédios e outras terapias, mas isso acaba por desviar recursos de outros programas.
Os desafios pela frente são inúmeros, mas, em se tratando de cortes em saúde, seria salutar que o governo de Michel Temer recorresse aos ensinamentos de David Stuckler, economista de Oxford, que estudou a política econômica de austeridade em 27 países (1995-2011).
Seu trabalho gerou o chamado “multiplicador fiscal”, que mostra o quanto de dinheiro se consegue de volta com diferentes gastos públicos. Os melhores índices multiplicadores vêm de gastos com educação e saúde, os piores com a defesa.
“Saúde é oportunidade de gerar economia e crescer mais rapidamente. Se cortar em saúde, gera mais mortes, aumento e surtos de infecções por HIV, tuberculose, DIP (doença inflamatória pélvica), aumento dos índices de alcoolismo e suicídio, aumento dos problemas de saúde mental, risco de retorno de doenças erradicadas. Governos deveriam investir mais em saúde em tempos de crise, para sair dela.
Fonte: Folha de S.Paulo
CNS pede compromisso de candidatos com o SUS
A última mesa de debate da 20ª Plenária Nacional de Conselhos de Saúde, Entidades e Movimentos Sociais e Populares tratou do tema eleições municipais e fortalecimento do SUS. Representantes da sociedade civil e governo pediram atenção dos eleitores nas eleições 2016 para candidatos que tenham compromisso com o SUS. O evento aconteceu nos dias 24 e 25 de agosto em Brasília, no DF.
Para Juliana Acosta, representante a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) no Conselho Nacional de Saúde (CNS), a sociedade deve cobrar o posicionamento dos candidatos com relação à saúde pública, além do seu alinhamento com as medidas fiscais e econômicas na garantia do direito à saúde. “Devemos cobrar que os candidatos se comprometam em fortalecer a Vigilância em Saúde, ampliar e qualificar a atenção básica, afim de garantir o acesso à toda a população, a partir das necessidades do território”, disse.
Segundo a representante da Contag, os conselhos de saúde são espaços de organização e mobilização da sociedade que garantem o direito à saúde pública e de qualidade. “Os conselhos aprimoram a nossa democracia, no exercício da democracia participativa. Nosso plano de saúde é o SUS! Precisamos rever para ampliar seu financiamento e, assim, poder assegurar um Sistema Único de Saúde do tamanho do Brasil”.
Nilton Pereira, representante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), defendeu de maneira contundente a participação social para a manutenção da democracia. “Devemos zelar pelos princípios democráticos que nos movem. Nessas eleições devemos nos comprometer com candidatos que priorizem o SUS e que efetivamente façam a sua defesa e fortalecimento nos espaços de disputas, principalmente de orçamento”, disse.
O representante do Ministério da Saúde, o diretor de programa Neilton Oliveira, destacou a importância de a população saber em quem depositou o seu voto. “O momento atual é primordial para que os conselheiros procurem seus deputados e cobrem, por exemplo, a votação do Projeto de Emenda à Constituição (PEC) 01/2015”, afirmou.
Recentemente, o Pleno do CNS lançou a carta “O fortalecimento e defesa do SUS nas eleições municipais”. O documento pede que os candidatos a prefeitos e vereadores tenham o compromisso com o SUS. A carta também trata do subfinanciamento do SUS, explicando propostas em tramitação no Congresso Nacional que enfraquecem a saúde pública.
Fonte: SUSConectas