Saúde do Trabalhador: como responder à uberização?

Precarização das relações laborais e explosão de acidentes e mortes no local de trabalho ocorreram lado a lado no Brasil. Fortalecer os serviços da Renastt é urgente – mas sem revogar a Reforma Trabalhista e outras formas de desregulamentação, pode ser pouco.

Nos últimos dez anos, o Brasil viveu uma explosão de acidentes e mortes no local de trabalho, mostram números oficiais. Não por coincidência, trata-se de um período em que se disseminaram novas formas de relação laboral no país, que têm como marca a desregulamentação e a redução das proteções a quem trabalha – a exemplo da uberização e a pejotização. Poderão a Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (STT) e seus instrumentos, como os Centros de Referências de Saúde do Trabalhador (Cerest) e a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Renastt), responder a esse novo e complexo desafio?

Foi o que debateram os participantes da mesa “As novas relações de trabalho e a saúde do trabalhador e da trabalhadora”, ocorrida nesta terça-feira (19) em meio à programação do segundo dia de atividades da 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. O espaço máximo de participação social da área ocorre de 18 a 21 de agosto em Brasília (DF), com cobertura do Outra Saúde.

Para Maria Maeno, pesquisadora da Fundacentro (Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho) e do IWL (Instituto Walter Leser), um novo processo de reconstrução do desenvolvimento econômico com geração de milhões empregos dignos deve incluir previsões para a saúde do trabalhador e da trabalhadora em suas iniciativas. A construção de um Sistema Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Sinastt) seria um importante passo para o avanço das políticas públicas nesse âmbito, ela avalia.

Centralmente, a Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora precisa enfrentar não só o aumento nas mortes e acidentes de trabalho no último período, mas as raízes e causas dessa crise. Em especial, as contrarreformas neoliberais dos últimos dez anos que fragilizaram a capacidade dos trabalhadores de exigir empregos dignos e seguros. “Enquanto estivermos preocupados apenas com Normas Regulamentadoras (NRs) e riscos ocupacionais, sem discutir o mundo do trabalho de forma mais ampla, estaremos presos dentro de um labirinto”, defendeu Diego de Oliveira Souza, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e membro do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes)

Nesse sentido, Ronald Santos, (Diretor da Fenafar) liderança do movimento “+ SUS é + Brasil” e Coordenador-geral de Articulação da Secretaria Nacional de Participação Social da Presidência da República, destacou que, na história recente do Brasil, os retrocessos na proteção ao trabalho e à saúde do trabalhador – como as “Reformas” Trabalhista e da Previdência – ocorreram de forma combinada aos retrocessos na democracia e na participação social.

Pejotização e uberização fazem mal à saúde

Por sua vez, Diego Souza apontou que a pejotização e a uberização são duas das principais formas de precarização ligadas à reestruturação produtiva que promove um “regime de acumulação flexível” e a “complexificação das formas de controle do capital sobre o trabalho”.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu o andamento de todos os processos ligados à pejotização de trabalhadores até que haja uma decisão geral acerca da legalidade do procedimento. O membro do Cebes alerta que, num possível cenário em que ela se torne amplamente autorizada, os mecanismos de proteção aos trabalhadores e sua saúde sofreriam um duro golpe.

Os danos, vale dizer, já estão ocorrendo. De acordo com uma pesquisa do Ministério do Trabalho, 4,8 milhões de trabalhadores de carteira assinada no Brasil foram demitidos e recontratados de forma “pejotizada” entre 2022 e 2024. Nesse processo, R$61,4 bilhões deixaram de ser arrecadados pelo INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) e R$24,4 bilhões não foram pagos ao FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), fragilizando os instrumentos de proteção social aos trabalhadores. 

De forma amplamente conhecida mas velada, já que os casos tendem a não serem somados às estatísticas oficiais, a uberização também multiplica os acidentes e as mortes de trabalhadores, ressalta o professor da Ufal. Coordenador de uma iniciativa de pesquisa que investiga os efeitos dessa forma de precarização do trabalho sobre a saúde de entregadores de aplicativo, ele destacou os inúmeros relatos colhidos de “acidentes de trânsitos fatais ou com sequelas”, “distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho” e mesmo sofrimento psíquico causado pelo racismo – já que não são poucos os entregadores parados arbitrariamente pela polícia, apenas por serem jovens negros pilotando motos.

Ainda que “os altos níveis de desemprego e informalidade sejam característicos da história de um país de capitalismo dependente como o nosso”, não é possível fechar os olhos para as condições também precárias dos postos formais de trabalho no país, acrescentou o professor da Ufal. “Não pode existir saúde do trabalhador com a escala 6×1 e um salário mínimo tão baixo, é incompatível”, complementou Diego Souza.

Nesse sentido, mesmo quando tenta promover empregos formais, o poder público ainda pensa pouco em como garantir locais de trabalho mais dignos e seguros, pontuou Maria Maeno. Para a pesquisadora, é uma lacuna séria que iniciativas para o desenvolvimento econômico e a geração de emprego, como o programa Nova Indústria Brasil (NIB) do governo Lula, não contem com previsões relativas à saúde do trabalhador e da trabalhadora.

Os caminhos para enfrentar a precarização

Na 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, os debates estão sendo conduzidos em torno de três eixos temáticos: i) a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora; ii) as novas relações de trabalho e a saúde do trabalhador e da trabalhadora; iii) e a participação popular na saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras para o controle social.

Para dar cabo das mazelas decorrentes das novas e mais precárias relações de trabalho que atingem a saúde dos trabalhadores, os membros da mesa propuseram uma série de medidas que ilustram a importância de que o Estado não se restrinja à criação de normas de segurança mais firmes para os locais de trabalho – mas atue para reverter as contrarreformas neoliberais que desregulamentaram as relações de trabalho no Brasil. Medidas como a Reforma Trabalhista precisam ser revogadas, opinaram os debatedores.

Na visão do Instituto Walter Leser, apresentada pela estudiosa Maria Maeno, a construção de um Sistema Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Sinastt), uma estrutura participativa coordenada pelo Ministério da Saúde que envolvesse mais profundamente o poder público, sindicatos e movimentos sociais no desenho e implementação de ações de STT, seria um importante passo para enraizá-las nos planos do Estado brasileiro.

Por sua vez, o professor Diego Souza apontou a urgência de regulamentação das plataformas, em sua maioria estrangeiras, que promovem a precarização de milhões de postos de trabalho no Brasil, pondo esses trabalhadores em risco constante. Junto a esse reforço da “soberania digital” do país, é urgente o “combate à pejotização e à escala 6×1”, defende.

Para Ronald Santos, de imediato, “a grande contribuição que nossa geração pode dar para o futuro do Brasil e do SUS é a construção de uma maioria social e política” que promova a retomada dos direitos e da proteção aos trabalhadores, além da defesa da democracia e soberania. No entanto, para superar essas mazelas do ponto de vista estratégico e de longo prazo, é preciso ter na agenda a construção de “um modo de produção socialista com a cara do Brasil”, concluiu.

Fonte: Outras Palavras