Audiência pública em Guarulhos contra fechamento da FURP

No último dia 04/10, a Câmara Municipal de Guarulhos realizou audiência pública para denunciar as graves consequências que a proposta do governado João Dória trará caso a Fundação para o Remédio Popular (FURP) seja fechada. A Fenafar foi representada pelo diretor do Sindicato dos Farmacêuticos do Estado de São Paulo, Bruno Fernandes.

A audiência lotou o plenário da Câmara com funcionários da FURP, e teve participação de lideranças do movimento social, sindicalistas de outras categorias (bancários, condutores, químicos), vereadores e deputados.

A audiência discutiu os impactos do fechamento da Furp, como o fim da produção de medicamentos para a tuberculose — que só é feita pela FURP — e a capacidade de transferência de tecnologia.

O diretor do Sindicato, Bruno Fernandes, destacou que a luta contra o fechamento da FURP é um movimento de defesa da “soberania e independência nacional e garantia de acesso de populações vulneráveis a medicamentos. Além de ser uma questão de otimização de recursos do Estado, uma vez que a FURP garante a produção de medicamentos a preços mais baixos para mais de 3 mil municípios”.

Leia mais: Nota da Fenafar e do Sinfar-SP sobre o fechamento da FURP

O farmacêutico também alertou para os prejuízos sociais que a medida terá. “Cerca de 1000 funcionário perderão seus postos de trabalho. Num momento em que o Brasil tem mais de 13 milhões de desempregados, extinguir mais de 1000 postos é uma irresponsabilidade, uma total falta de compromisso. O governador João Dória precisa saber que nem tudo se resume ao lucro. Os laboratórios públicos não têm que gerar lucro, eles têm que contribuir para a movimentação e para o desenvolvimento econômico, com a geração de empregos, produção de conhecimento, de novas tecnologias. Diminuir a dependência do Brasil para alguns medicamentos essenciais e que não tem interesse para a indústria nacional”, afirmou Fernandes.

Da redação
Publicado em 11/10/2019

Conheça a lei que vai causar prejuízo bilionário ao Ministério da Saúde e ampliar lucro das farmacêuticas

Reportagem publicada pela Repórter Brasil mostra como a Lei de Patentes, de 1996, é um obstáculo ao direito à saúde. Estudo da UFRJ estima que governo vai desperdiçar R$ 3,8 bilhões em 10 anos por conta do atraso na avaliação de pedidos de patentes farmacêuticas; o monopólio de mercado dura em média três anos a mais no Brasil do que em outros países e postergam a entrada de genéricos no país.

“Quem possui a patente desta vacina?”, pergunta o jornalista na TV. “O povo, eu diria. Não há patente”, responde o médico e cientista norte-americano Jonas Salk na famosa entrevista que concedeu em 1955, após lançar a primeira vacina contra a poliomielite, doença contagiosa que desafiava a medicina na época. “Você poderia patentear o sol?”, continuou o cientista, que se tornou inspiração para quem defende medicamentos acessíveis à população.

A provocação do pesquisador faz sentido. O preço dos medicamentos está diretamente ligado à existência (ou não) de uma patente – instrumento que garante exclusividade na fabricação e venda de um produto. Sem concorrentes, os valores dos remédios tendem a ser mais altos – o que garante lucro maior à indústria farmacêutica.

No Brasil, contudo, uma singularidade da legislação permite que o monopólio de um remédio dure mais tempo do que a média mundial, o que atrasa a entrada de genéricos no mercado, que são mais baratos.

Por conta disso, o Ministério da Saúde vai desperdiçar R$ 3,8 bilhões nos próximos dez anos com a compra de nove medicamentos, indicados para o tratamento de câncer, hepatite C, reumatismo e doenças raras. O gasto foi estimado por pesquisadores do Grupo de Economia da Inovação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Enquanto o prazo de uma patente farmacêutica é de 20 anos em outros países, no Brasil a duração média é de 23 anos. Há casos que passam dos 28 anos. “A legislação brasileira dá um benefício extra às empresas que não estava previsto [no tratado internacional que determinou duas décadas como tempo padrão]”, diz a economista Julia Paranhos, coordenadora do estudo.

Artigo 40, parágrafo único

O problema no Brasil gira em torno da Lei de Propriedade Industrial, aprovada em 1996 sob forte lobby do setor farmacêutico. Um artigo da lei autoriza o tempo extra às patentes caso o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) demore mais de 10 anos para analisar um pedido. Atualmente, o órgão leva em média 13 anos para concluir uma análise do setor farmacêutico – o que amplia para 23 anos, em média, o monopólio sobre um remédio.

Um exemplo é o dasatinibe, usado no tratamento de leucemia. Nos últimos cinco anos, o Ministério da Saúde gastou em média R$ 69 para cada comprimido. Na Índia, a versão genérica é vendida a R$ 16. O remédio similar poderia chegar ao Brasil em abril de 2020, quando completa 20 anos a patente do dasatinibe. Porém, o mercado nacional continuará fechado até novembro de 2028, porque o INPI demorou 18 anos para analisar o pedido.

O polêmico trecho da lei está em debate no Supremo Tribunal Federal, onde uma ação de 2016 da Procuradoria-Geral da República pede o fim da prorrogação de patentes no Brasil, mas não há prazo para o julgamento.

O INPI concedeu 683 patentes farmacêuticas desde 1997, das quais 630 (92%) foram beneficiadas com a prorrogação acima dos 20 anos, segundo levantamento do grupo de pesquisa da UFRJ, que investiga o setor há mais de 10 anos.

Mesmo quando a prorrogação não se aplica, como no caso das patentes pedidas antes de a lei entrar em vigor, a indústria farmacêutica recorre ao artigo 40 para entrar com ações na Justiça pedindo a extensão do monopólio. É o caso do humira (para artrite reumatoide e outras doenças), do laboratório norte-americano Abbvie. Uma ação judicial garante à empresa a exclusividade no Brasil até fevereiro de 2020, embora sua patente tenha expirado em 2017.

Enquanto uma decisão definitiva da Justiça não sai, a insegurança jurídica mantém concorrentes fora do mercado. Com isso, nos últimos cinco anos, o Ministério da Saúde repassou R$ 3,7 bilhões à Abbvie para comprar o humira. Ao final dos três anos de prorrogação da patente, o prejuízo estimado ao Ministério da Saúde será de R$ 990 milhões, segundo o estudo.

O humira é o medicamento de maior faturamento no mundo todo, com vendas globais de US$ 19,9 bilhões só em 2018. Para se ter ideia de como o fim da patente impacta seu preço, na Europa, a Abbvie ofereceu descontos de 80% após a chegada dos primeiros similares. Afinal, qual o preço real dessa droga?

Família de patentes

A prorrogação de patentes farmacêuticas tornou-se padrão no Brasil por dois motivos: o alto número de pedidos de invenção apresentados pelas empresas e o baixo número de examinadores do INPI.

Atualmente existem 319 funcionários responsáveis por analisar invenções de todos os setores da economia. Mas na fila há 160 mil pedidos pendentes, ou 501 por examinador, segundo o INPI. O cenário é pior do que o encontrado nos Estados Unidos, Europa, Japão, Índia e México.

Já o excesso de pedidos de patentes farmacêuticas foi investigado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), órgão ligado ao Ministério da Saúde. No caso do adalimumabe, o estudo identificou 33 pedidos apresentados ao INPI pela Abbvie e suas concorrentes. Apenas dois pedidos foram concedidos, um foi rejeitado, oito foram arquivados e 22 continuam na fila.

Além de amontoar a pilha de trabalho do INPI, os múltiplos pedidos de patente para um mesmo princípio ativo são uma estratégia da indústria farmacêutica para “perpetuar a exclusividade de um produto”, diz a farmacêutica Roberta Dorneles da Costa, pesquisadora da UERJ e uma das autoras do estudo da Fiocruz.

“A indústria farmacêutica adota diferentes estratégias para manter o monopólio. O primeiro passo é criar essa rede interminável de patentes”, diz Carlos Portugal Gouvêa, professor de direito comercial da USP. “Outra estratégia são os processos judiciais, porque enquanto não há uma decisão final, os concorrentes ficam afastados”, completa Paranhos.

O INPI reconhece que o número de examinadores é baixo e que “a demora na análise de pedidos de patentes tem levado à extensão do prazo de proteção”. O órgão informou que em julho começou um plano para reduzir o tempo de análise das patentes para cinco anos: a meta é reduzir a pilha de pedidos em 80% até 2021.

Procurada, a Abbvie não comentou a prorrogação do monopólio do humira nem tratou dos vários pedidos de patente para o medicamento. O laboratório disse à Repórter Brasil que o preço do remédio caiu nos últimos dez anos.

O Ministério da Saúde disse à Repórter Brasil que se pronunciará após a publicação do estudo.

Negociação de preços

Outro medicamento analisado pela UFRJ é o sofosbuvir, indicado para a hepatite C, doença que atinge 71 milhões de pessoas no mundo e mata 400 mil por ano, a maior parte em países pobres. Desenvolvido pela Gilead, o sofosbuvir parece tão revolucionário como a vacina de Salk, já que cura a hepatite C em 95% dos casos. Mas o alto preço cobrado pela Gilead e a barreira aos genéricos mantém a erradicação da doença num horizonte distante.

No Brasil, o Ministério da Saúde gastou mais de R$ 1,7 bilhão com o sofosbuvir desde 2014, pagando em média R$ 258 por comprimido, segundo o levantamento da UFRJ. Em países de baixa renda, porém, ele é vendido por R$ 2,95 (98% menos), enquanto nos Estados Unidos chega a R$ 4.000. O pedido de patente no Brasil foi apresentado em março de 2008, mas após 11 anos a análise ainda não foi concluída. A UFRJ estima em R$ 346 milhões o custo extra ao Ministério da Saúde para cada ano de prorrogação da patente do sofosbuvir.

Ao defender a prorrogação das patentes, a Interfarma (representante das empresas estrangeiras no Brasil) diz que os laboratórios não aproveitam comercialmente os 20 anos de monopólio, já que os primeiros 10 anos são dedicados a pesquisas e testes para criar o medicamento. A entidade diz que os investimentos farmacêuticos são altos e que a sustentabilidade do negócio “requer a manutenção do direito à propriedade industrial”.

O presidente do laboratório brasileiro com o maior número de patentes, no entanto, defende duração de 20 anos para o monopólio, “tal como é reconhecido no mundo inteiro”, diz Ogari Pacheco, do Cristália. Para a Libbs, que financiou a pesquisa da UFRJ, a prorrogação de patentes “atrasa a entrada de genéricos” e “aumenta muito os gastos do SUS”. A Abifina, representante das farmacêuticas brasileiras, classifica este trecho da lei como inconstitucional e diz que que algumas empresas usam a lei para “extensão artificial do prazo das patentes”.

Para os pesquisadores da UFRJ, além de mostrar a necessidade de investimentos no INPI, o estudo indica que o governo brasileiro pode gastar menos com medicamentos. “É possível o Ministério da Saúde buscar formas de negociar os produtos e conseguir preços mais baixos”, diz Paranhos.

“O futuro está em nossas mãos”, disse Salk em 1985. “Para decidir se usaremos a ciência, a tecnologia e o conhecimento que possuímos para o melhor, em vez de para o pior”.

Fonte: Repórter Brasil, por Diego Junqueira
Publicada em 09/09/2019

Reflexos na saúde após golpe de 2016 podem levar Brasil à barbárie social

Ex-ministro da Saúde, Arthur Chioro alerta: corte nos investimentos públicos somado à recessão econômica e precarização do trabalho deixarão milhões sem assistência médica.

 

 

O Brasil teve a oportunidade de experimentar por três décadas a construção de um sistema universal de saúde baseado na ideia de que esse é um direito de todos e um dever do Estado. Mas, após três anos do golpe que em 31 de agosto destituiu definitivamente Dilma Rousseff da Presidência da República, essa construção corre grave risco e pode levar o país a uma situação de barbárie social.

Ministro da Saúde do segundo governo Dilma, entre 2014 e 2015, o médico Arthur Chioro (veja entrevista ao final da reportagem) lembra que o Brasil foi o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou colocar na Constituição, em 1988, esse direito, com a criação do Sistema Único de Saúde.

“Entre 2003 e 2015 tivemos a oportunidade de viver esse processo de expansão, com cobertura de mais de 70% da atenção básica em saúde”, diz, lembrando programas como o Saúde da Família, o Mais Médicos. “Setenta e três milhões de brasileiros que viviam em condições mais adversas, nas periferias das grandes cidades, região semiárida, na região Amazônica, aldeias indígenas, assentamentos, nunca tinham tido contato com uma equipe completa.”

Obras dos governos petistas, a expansão da atenção básica coincidiu com a ampliação da assistência farmacêutica, a criação de programas como o Brasil Sorridente (odontológico), a implantação dos serviços de Samu, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, em todo o Brasil.

“O resultado concreto é que, graças ao SUS, o brasileiro vive mais, houve diminuição da mortalidade infantil e materna, da mortalidade por causas evitáveis. Se o brasileiro vive mais e melhor, ele deve fundamentalmente à criação de um sistema universal, para todos”, avalia Chioro.

Mas, uma das primeiras áreas atingidas pelo golpe, a saúde acabou vendo sua evolução orçamentária paralisada pela Emenda Constitucional 95. Promulgada pelo Congresso Nacional quatro meses após a destituição da presidenta Dilma, a emenda conhecida como PEC da Morte estabeleceu um teto de gastos válidos por 20 anos.

Com isso, o montante que vinha tendo aumentos mais ou menos expressivos desde 2004 – cresceu 18,54%, em 2012 – chegou a 2019 com um ínfimo acréscimo de 0,23%. A situação deve piorar muito e continuamente até o ano de 2036, segundo estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). A projeção do orçamento para o setor, sob a barreira do teto de gastos, indica perda que deve chegar a R$ 1 trilhão até 2036, em relação ao que seria investido na saúde de acordo com o previsto pela Constituição Federal.

 

 

Perversidade da velha política

“E o que é mais perverso é que tanto o governo Temer como o governo Bolsonaro têm utilizado a ‘sobra’ de recursos obtida pela fragilização de programas como a Farmácia Popular, pelo não cumprimento dos gastos previstos no programa Mais Médicos, pela diminuição da oferta de vacinas e medicamentos de alto custo, exatamente para fazer pagamento de emendas parlamentares com as quais têm sido literalmente compradas as reformas trabalhista e da Previdência”, denuncia Chioro.

“E a gente ainda é obrigado a ouvir o discurso de que a relação com o Congresso mudou e o governo Bolsonaro não faz a política do ‘toma lá e dá cá’. É literalmente uma política do ‘tira da população brasileira’ para honrar o processo de desmontagem da estrutura de proteção social que esse país construiu ao longo de décadas”, critica o médico sanitarista.

A Emenda Constitucional 95 é tão absurda que quanto maior o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, maior a perda de recursos para cuidar da saúde da população. Pela regra anterior ao teto de gastos, a saúde seguiria correspondendo sempre a 15% do orçamento geral. Mas com o teto, se o PIB tiver crescimento, os investimentos em saúde não acompanham, porque a lei prevê a correção do orçamento no máximo pela inflação.

A mesma situação ocorre com o investimento per capita em saúde. Nos governos petistas, o Brasil avançou de um investimento em saúde por pessoa de aproximadamente R$ 420, em 2008, para R$ 519, em 2016. A projeção do Ipea indica que chegaríamos a 2025 com R$ 632 per capita, e em 2036 com R$ 822. Mas o teto de gastos impede essa evolução e vai fazer o país reduzir o gasto per capita em saúde para R$ 411 em 2036. Menos do que era investido em 2008.

Os programas de atendimento à população mais pobre estão entre os mais atingidos. Após 16 anos de expansão contínua, a Estratégia Saúde da Família (ESF), modelo de atendimento que a equipe de saúde vai à casa das pessoas e atua de forma territorializada, teve sua primeira redução de atendimento. Em 2019, o ESF perdeu 836 equipes, deixando de atender 2,2 milhões de pessoas. A equipe completa, mencionada pelo ex-ministro Chioro, é multiprofissional, composta por médico e enfermeiro especialista em saúde da família, auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde (ACS).

“Estudo publicado em 2018 já antecipava o impacto que a EC 95 teria sobre municípios e estados. Mantida a ordem das coisas, chegaremos em 2022 com estados e municípios tendo de honrar, para manter a atual rede existente, 70% dos gastos com saúde e isso é impossível”, relata o ex-ministro. “O que nós já estamos observando é progressivamente a incapacidade de manutenção da operação cotidiana do sistema de saúde.”

A destruição do programa Mais Médicos, cujos profissionais cubanos deixaram os locais de trabalho no final de 2018, após uma série de ataques e mentiras difundidas pelo presidente Jair Bolsonaro, é um exemplo desse descaso. Cerca de 28 milhões de pessoas ficaram sem atendimento após a saída dos 8.476 médicos cubanos de 1.575 cidades. Locais esses que passaram a não ter nenhum médico, já que brasileiros não aceitaram ir para esses municípios nos editais abertos posteriormente.

“Os governos Temer e Bolsonaro entregam aquela receita do Banco Mundial, do Consenso de Washington que tinha sido desenhada 1993. No caso da saúde era uma medicina pobre para os pobres. Ao invés de uma atenção primária de qualidade, uma atenção primitiva”, compara.

O golpe e a volta do sarampo

Para Chioro, a volta do surto de sarampo tem a ver com a incapacidade do Estado brasileiro. “Não tem nada a ver com a Venezuela, como diz o governo. Mas com a vergonhosa postura do Ministério da Saúde de não coordenar as ações necessárias de enfrentamento da circulação do vírus do sarampo.”

Quando era ministro, lembra o médico, o Brasil viveu situação parecida, mas com desfecho completamente diferente. A visita de estrangeiros não vacinados ao país reintroduziu o sarampo no Recife e em Fortaleza. “Num esforço muito grande, envolvendo o governo federal, estados e municípios, nós tivemos capacidade de enfrentar e resolver o problema”, afirma.

“Temos hoje mais de 2 mil casos de sarampo, óbitos acontecendo, de uma doença da qual tínhamos obtido o certificado de erradicação. É um exemplo da recrudescência, da reemergência de problemas que estão diretamente relacionados à falta de investimento, à desmontagem do SUS, à desorganização, ainda que o discurso seja de ficar colocando a culpa no passado. Uma postura irresponsável porque fragiliza e coloca em situação de altíssima vulnerabilidade toda população brasileira”, ressalta Chioro.

Desmonte a serviço do mercado

O ex-ministro da Saúde explica que o SUS sempre enfrentou a situação de subfinanciamento, ou seja, de ter menos recursos do que necessita. “Desde a instauração do golpe podemos afirmar que vivemos uma situação de desfinanciamento”, compara.

“É de uma perversidade inaceitável”, lamenta. “Mas na lógica desses liberais conservadores que instalam uma nova ordem no país a partir do golpe, a diminuição dos gastos públicos objetiva aumentar os lucros do sistema financeiro e aumentar o percentual da população brasileira que terá de buscar no mercado o provimento de suas necessidades.”

Chioro afirma que mesmo países capitalistas – como Canadá, Reino Unido, Itália, Espanha, França, países escandinavos  – reconheceram ao longo da história que o Estado tem papel fundamental no atendimento à saúde. “Aqui se pretende fazer o mesmo caminho desastroso que os Estados Unidos, Chile, Colômbia fizeram. E demonstram com indicadores péssimos, com incapacidade de atender às necessidades das pessoas, um caminho de transformar de vez a saúde em mercadoria.”

Assim, avisa o médico, o país caminha para a barbárie. Em um contexto de recessão econômica, de perda dos contratos formais de trabalho que permitiam acesso aos planos coletivos de saúde, não haverá capacidade financeira da população para o pagamento dos serviços de saúde. “Toda essa situação condenará milhões e milhões de brasileiros à desassistência”, avalia. “Por isso, tenho uma convicção baseada em evidências, estudos que vêm sendo feitos não só por nós da Unifesp, mas por pesquisadores em todo o país, de que nós caminhamos aceleradamente para uma situação de barbárie com a desmontagem das políticas públicas, entre elas a do Sistema Único de Saúde.”

Fonte: Rede Brasil Atual
Publicado em 05/09/2019

Doria quer desmontar maior laboratório público de medicamentos do Brasil

O governo João Doria pretende apresentar à Assembleia Legislativa de São Paulo uma proposta de desestatização da Fundação para o Remédio Popular, em um pacote que inclui ainda a Oncocentro, responsável por exames e atendimento em mais de 540 unidades de saúde, e a Superintendência de Controle de Endemias. Se o setor privado não se interessar, a ideia é extinguir, fundir ou incorporar essas instituições a outros órgãos de governo. Só no ano passado, a Furp produziu quase 530 milhões de medicamentos para a rede pública.

 

 

Combalido por um caso de corrupção ainda sob investigação, o maior laboratório público de medicamentos do Brasil corre o risco de fechar as portas. Os problemas da Furp começaram em 2013, quando foi celebrado um acordo com a EMS, gigante do setor farmacêutico, para a gestão de uma moderna fábrica construída anos antes na cidade de Américo Brasiliense. Nascia ali a Concessionária Paulista de Medicamentos, cuja missão era produzir, nas instalações do governo, os remédios que venderia a ele mais tarde. A Furp deve na praça 100 milhões de reais, boa parte decorrente de contratos com a CPM para administrar a fábrica de Américo Brasiliense.

Sob as regras do contrato, o governo pagou até sete vezes mais que o valor de mercado pelos remédios da concessionária. Além disso, desde maio, os deputados paulistas apuram suspeitas de repasses de propina da Camargo Corrêa para a Furp desistir de uma disputa judicial e pagar uma indenização de 18 milhões de reais ao consórcio que construiu a fábrica. O trato foi selado em 2014 e o valor dividido em 48 parcelas, em um total de 22 milhões, com juros e correção. O caso teria ocorrido entre 2009 e 2012, mas só veio à tona no ano passado, após denuncia do Ministério Público.

Para não ter mais prejuízo, o governo tucano acha que o caminho é se livrar do laboratório. O secretário estadual de Saúde, José Henrique Germann, admitiu a possibilidade em depoimento aos deputados no dia 16 de agosto. “O que nós temos como objetivo é parar de produzir medicamentos, caso o relatório prove que a Furp dá prejuízo para o estado. Se isso vai levar ao fechamento da Furp é um próximo passo.” A oposição enxerga na jogada uma tentativa de despistar escândalos que eventualmente apareçam nessas empresas e possam triscar a imagem de Doria, que sonha em se candidatar ao Palácio do Planalto em 2022. “Privatizadas, essas empresas serão bem mais difíceis de investigar”, diz a deputada estadual Beth Sahão.

A unidade de Américo Brasiliense opera bem abaixo da capacidade máxima. Produz hoje 320 milhões de comprimidos de 19 tipos diferentes – um quarto do potencial produtivo instalado. O edital de contratação projetou a fabricação de 96 medicamentos. De lá pra cá, a lista básica do governo teve 40 produtos cortados. Sob tantos pontos nebulosos, pairam suspeitas de ação deliberada para causar prejuízos à fundação. “A fábrica de Américo tinha gestor famoso, funcionários, estrutura moderna. Será que o problema está na gestão? Ou é fabricado?”, pergunta Alexandre Rodrigues Caetano, funcionário da Furp há 12 anos.

Os gerentes negam ter trabalhado em prol do problema. “Se houve qualquer tipo de irregularidade, não aconteceu ali dentro dos muros. Posso garantir, quem trabalhou ali trabalhou para ver funcionar”, diz Francisco Caravante, ex-gerente-administrativo da fábrica, em depoimento à CPI na última terça-feira 27. Caravante gerenciou a fábrica durante a transição, como funcionário da fundação pública, e posteriormente foi contratado pela CPM, segundo afirma, ganhando quase 50% a mais do que recebia no emprego anterior.

Uma alternativa seria transferir funções da Furp ao Instituto Butantan, um dos maiores fabricantes de vacinas do País. Mas o próprio Butantan também tem sido alvo da ambição desestatizante do governo. A operação do Hospital Vital Brasil, especializado em acidentes com animais peçonhentos, está sendo transferida ao Emílio Ribas. Funcionários ouvidos por CartaCapital creem que esses movimentos visam criar condições internas para a futura privatização da entidade.

Os institutos paulistas não são os único em risco. Há cerca de dois meses, o Ministério da Saúde suspendeu de supetão contratos com sete laboratórios nacionais para a compra de medicamentos e vacina para o SUS. Esses itens eram feitos a partir das parcerias para o desenvolvimento produtivo, reguladas por uma lei de 2014. Pelo acordo, a empresa parceira ganha exclusividade na venda ao SUS, sob a condição de oferecer apoio para que o remédio, a vacina ou o equipamento sejam produzidos pelos laboratórios públicos. Esses produtos ficam, em média, 30% mais baratos do que os valores de mercado. De acordo com a Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil, a interrupção pode causar um prejuízo de 1 bilhão de reais à cadeia produtiva nacional. No caso da Bahiafarma, por exemplo, houve um investimento de 100 milhões de reais para nacionalizar a insulina em parceria com um laboratório ucraniano.

Só no ano passado, a Furp produziu quase 530 milhões de medicamentos para a rede pública. É a única fabricante nacional dos remédios estreptomicina e o etambutol, que tratam a tuberculose, além de outros mais de 60 produtos. Entre eles derivados da penicilina. A substância descoberta há quase cem anos é o mais emblemático exemplo do impacto desse mercado na saúde pública. Como é um remédio antigo e barato, poucas empresas têm interesse em produzi-lo. Além disso, o princípio ativo é importado. Desde 2005, segundo dados do BNDES, o consumo de fármacos importados pelas indústrias brasileiras cresceu 90%.

Ao mesmo tempo, a big pharma tem os olhos voltados para uma nova geração de drogas feitas sob medida, com investimentos (e lucratividade) bem superiores àqueles dos remédios sintéticos. Só neste ano, a suíça Roche e a americana Eli Lilly desativaram unidades que produziam medicamentos clássicos no Brasil. Sob esse cenário, o risco iminente é o desabastecimento na rede pública. E, a longo prazo, o encarecimento dos remédios.

Fonte: Carta Capital, por Thais Reis Oliveira
Publicado em 03/09/2019

Drauzio Varella*: Sem o SUS, é a barbárie

“Sem o SUS, é a barbárie.” A frase não é minha, mas traduz o que penso. Foi dita por Gonzalo Vecina, da Faculdade de Saúde Pública da USP, um dos sanitaristas mais respeitados entre nós, numa mesa redonda sobre os rumos do SUS, na Fundação Fernando Henrique Cardoso. Estou totalmente de acordo com ela, pela simples razão de que pratiquei medicina por 20 anos antes da existência do SUS.

 

 

Talvez você não saiba que, naquela época, só os brasileiros com carteira assinada tinham direito à assistência médica, pelo antigo INPS. Os demais pagavam pelo atendimento ou faziam fila na porta de meia dúzia de hospitais públicos espalhados pelo país ou dependiam da caridade alheia, concentrada nas Santas Casas de misericórdia e em algumas instituições religiosas.

Eram enquadrados na indigência social os trabalhadores informais, os do campo, os desempregados e as mulheres sem maridos com direito ao INPS. As crianças não tinham acesso a pediatras e recebiam uma ou outra vacina em campanhas bissextas organizadas nos centros urbanos, de preferência em períodos eleitorais.

Então, 30 anos atrás, um grupo de visionários ligados à esquerda do espectro político defendeu a ideia de que seria possível criar um sistema que oferecesse saúde gratuita a todos os brasileiros. Parecia divagação de sonhadores.

Ao saber que se movimentavam nos corredores do Parlamento, para convencer deputados e senadores da viabilidade do projeto, achei que levaríamos décadas até dispor de recursos financeiros para a implantação de políticas públicas com tal alcance.

Menosprezei a determinação, o compromisso com a justiça social e a capacidade de convencimento desses precursores. Em 1988, escrevemos na Constituição: “Saúde é direito do cidadão e dever do Estado”.

Por incrível que pareça, poucos brasileiros sabem que o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou levar assistência médica gratuita a toda a população.

Falamos com admiração dos sistemas de saúde da Suécia, da Noruega, da Alemanha, do Reino Unido, sem lembrar que são países pequenos, organizados, ricos, com tradição de serviços de saúde pública instalados desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Sem menosprezá-los, garantir assistência médica a todos em lugares com essas características é brincadeira de criança perto do desafio de fazê-lo num país continental, com 210 milhões de habitantes, baixo nível educacional, pobreza, miséria e desigualdades regionais e sociais das dimensões das nossas.

Para a maioria dos brasileiros, infelizmente, a imagem do SUS é a do pronto-socorro com macas no corredor, gente sentada no chão e fila de doentes na porta. Tamanha carga de impostos para isso, reclamam todos.

Esquecem-se de que o SUS oferece gratuitamente o maior programa de vacinações e de transplantes de órgãos do mundo. Nosso programa de distribuição de medicamentos contra a Aids revolucionou o tratamento da doença nos cinco continentes. Não percebem que o resgate chamado para socorrer o acidentado é do SUS, nem que a qualidade das transfusões de sangue nos hospitais de luxo é assegurada por ele.

Nossa Estratégia Saúde da Família, com agentes comunitários em equipes multiprofissionais que já atendem de casa em casa dois terços dos habitantes, é citada pelos técnicos da Organização Mundial da Saúde como um dos mais importantes do mundo.

Pouquíssimos têm consciência de que o SUS é, disparado, o maior e o mais democrático programa de distribuição de renda do país. Perto dele, o Bolsa Família não passa de pequena ajuda. Enquanto investimos no SUS cerca de R$ 270 bilhões anuais, o orçamento do Bolsa Família mal chega a 10% disso.

Os desafios são imensos. Ainda nem nos livramos das epidemias de doenças infecciosas e parasitárias e já enfrentamos os agravos que ameaçam a sobrevivência dos serviços de saúde pública dos países mais ricos: envelhecimento populacional, obesidade, hipertensão, diabetes, doenças cardiovasculares, câncer, degenerações neurológicas.

Ao SUS faltam recursos e gestão competente para investi-los de forma que não sejam desperdiçados, desviados pela corrupção ou para atender a interesses paroquiais e, sobretudo, continuidade administrativa. Nos últimos dez anos tivemos 13 ministros da Saúde.

Apesar das dificuldades, estamos numa situação incomparável à de 30 anos atrás. Devemos defender o SUS e nos orgulhar da existência dele.

Dr. Drauzio Varella – Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”

Publicado em 19/08/2019
Fonte: Folha de S.Paulo

“A EC 95/2016 precisa ser declarada inconstitucional”, diz procuradora Élida Graziane

A terceira e última mesa de debate da 16ª Conferência Nacional de Saúde (8ª+8) produziu uma intensa discussão sobre os efeitos do desfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) na vida da população brasileira, na manhã de segunda-feira (5/08). O momento também foi marcado pelo compromisso público assumido pelo governo federal com os resultados do evento, sobretudo os encaminhamentos da plenária deliberativa que se realiza nesta quarta-feira (7/08), último dia de conferência.

Sob o eixo “Financiamento adequado e suficiente para o SUS”, a mesa foi composta pela procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Élida Graziane Pinto, o conselheiro nacional de saúde e coordenador da Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento (Cofin), André Luiz de Oliveira, o presidente da Fenafar, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e coordenador do “Saúde+10”, Ronald Ferreeira dos Santos, e o subsecretário de Planejamento e Orçamento do Ministério da Saúde, Arionaldo Bonfim Rosendo. A mediação do debate ficou a cargo da conselheira nacional de saúde e representante da União Brasileira de Mulheres (UBM), Vanja dos Santos.

Desfinanciamento e concentração de renda

Tema central para a viabilização do SUS, o financiamento de suas ações já estava presente nos eixos da histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Ronald destacou os dispositivos que foram construídos desde então para a sua efetivação, como a própria Constituição, a Lei nº 8080/1990, a Emenda Constitucional (EC) 29/2000, a Lei Complementar 141/2012. “Não precisamos inventar a roda, nós já temos há mais de 20 anos as diretrizes tanto assistenciais como gerenciais do SUS que precisam ser defendidas e financiadas”, argumentou, lembrando que a responsabilidade pelo financiamento do SUS deveria ser uma relação de direito e não de consumo.

O presidente da Fenafar chamou a atenção para o agravamento da concentração de renda, que amplia a desigualdade social e promove o desfinanciamento de políticas sociais, de um lado, enquanto os bancos e outros representantes do grande capital aumentam seus lucros, de outro. “A concentração de riqueza no Brasil é a mãe da morte, da violência e da intolerância”, alertou.

Nesse cenário, a avaliação do CNS de que houve uma transição do subfinanciamento do SUS para um processo de desfinanciamento foi referendada pela maior parte da mesa. Em sua fala, o coordenador da Cofin André Luiz de Oliveira explicou que, se nos últimos 30 anos havia uma asfixia orçamentária, mais recentemente está sendo realizada a retirada de recursos do SUS. O marco desta mudança foi a EC 95/2016, que congelou em 20 anos o orçamento da Saúde e da Educação. “Só esqueceram de combinar com a população de parar de crescer”, provocou Oliveira.

Muito com pouco

A exposição do Arionaldo Rosendo marcou uma divergência na mesa em relação à interpretação do cenário. Para o técnico do Ministério da Saúde (MS), é preciso fazer “o máximo que podemos com os recursos que temos”. Ele expressou a preocupação de sua equipe em alcançar as pessoas que ainda não chegam ao sistema público de Saúde.

Para André Luiz de Oliveira e Ronald Santos, no entanto, o SUS já faz muito com o pouco que lhe é destinado. Santos defendeu que a produção do sistema é incomparável. Oliveira destacou ações que são referências mundiais como o Programa Nacional de Imunização, a assistência farmacêutica e os transplantes. Apresentando dados de 2019 do Datasus sobre a produção ambulatorial e hospitalar, o conselheiro colocou em evidência a razão entre o financiamento e a produção do SUS, defendendo sua enorme eficiência. “A cada segundo, o SUS realiza 116 procedimentos! E faz tudo isso ao custo de R$ 3,60 por dia por pessoa”, informou.

Inconstitucionalidade da EC 95

“A Constituição não cabe no orçamento ou é o orçamento que só é legítimo se for aderente à Constituição?”. Esta foi uma das reflexões que a procuradora Élida Graziane Pinto buscou realizar com a intenção de instrumentalizar o público para a disputa e o controle da destinação das receitas do Estado. À luz dessa perspectiva, a avaliação de pinto sobre a EC 95 é clara: “Eu não pretendo a revogação da emenda 95 porque ela é inconstitucional. Ela precisa ser declarada inconstitucional, especificamente no que se refere ao congelamento da Saúde e da Educação. É inconcebível revogar o direito à saúde e da mesma forma o piso da saúde é irrevogável”.

Lembrando que se aproxima a data de um leilão do pré-sal e que uma parte de seu recurso deve se destinar ao SUS, ela defendeu ainda que é preciso “controlar até que ponto não haverá mudanças de estatuto jurídico encaminhamento deste recurso para outras finalidades”.

Plano Nacional de Saúde

As provocações colocadas pela mesa estimularam os delegados e delegadas que participam da 16ª Conferência a realizar dezenas de intervenções. O subsecretário do MS reconheceu a importância das manifestações: “A gente só cresce fazendo o que vocês estão fazendo aqui junto conosco hoje: debatendo, ouvindo e apresentando o contraditório”, afirmou.

Diante do público, Rosendo garantiu que o documento final da 16ª Conferência será referência para o Plano Nacional de Saúde. “A subsecretaria de planejamento e orçamento é a unidade do Ministério da Saúde responsável pela construção do Plano, e ele vai ser construído a partir dos relatórios extraídos da 16ª Conferência Nacional de Saúde”, informou o subsecretário em sua despedida. O Plano Nacional de Saúde é o instrumento central de planejamento da saúde pública e é organizado sempre em um conjunto de quatro anos, sendo o próximo período referente aos anos de 2020 a 2023.

Fonte: SUSConecta
Publicado em 07/08/2019

Sobrevivência da saúde pública depende de investimento, advertem ex-ministros

O segundo dia da 16ª Conferência Nacional de Saúde teve um ato em defesa do SUS, na Esplanada dos Ministérios, com a entrega ao presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto, do manifesto “SUS, Saúde e Democracia: desafios para o Brasil” assinado pelos ex-ministros da Saúde: Humberto Costa, José Saraiva Felipe, José Gomes Temporão, José Agenor Alvarez da Silva, Alexandre Padilha e Arthur Chioro.

No documento, os ex-ministros alertam para o retrocesso no setor. Políticas de saúde estão sendo desconstruídas, sem que o Ministério da Saúde ou o parlamento sejam ouvidos, fala o documento.

No conteúdo de cinco páginas, os ex-ministros listam as restrições de políticas voltadas para direitos sexuais e reprodutivos, as mudanças no estatuto do desarmamento, na lei de trânsito, a liberação sem critério de agrotóxicos, a redução do preço do cigarro, o incentivo fiscal para indústria de refrigerantes, que poderá trazer um impacto nos indicadores de obesidade do País, entre outras medidas.

A carta adverte também para retrocessos de normas de segurança do trabalho, ataques ao Estatuto da Criança e do Adolescente, o contingenciamento da educação pública e da ciência e a nova política de drogas, que coloca a abstinência em substituição à redução de danos, assim como  comunidades terapêuticas, como os serviços preparados, quando há uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), para o atendimento na comunidade.

Destaca a importância do financiamento para a universalização da saúde e que a política de aprofundamento dos cortes ameaçam o SUS.

Leia abaixo a íntegra do manifesto dos seis ex-ministros da Saúde:

SUS, saúde e democracia: Desafios para o Brasil

Brasília 5 de agosto de 2019

Ano da 16ª Conferência Nacional de Saúde

Nas três últimas décadas foram desenvolvidos imensos esforços para organizar e colocar em funcionamento o Sistema Único de Saúde, a partir dos princípios constitucionais que o conformam: universalidade, equidade e integralidade. O SUS pressupõe um projeto de sociedade que se expressa em valores civilizatórios, como igualdade, justiça social e democracia. Nesse contexto, a saúde é um valor que envolve cuidado, sustentabilidade e produção de saúde para a cidadania, articulando cuidados individuais e coletivos ao desenvolvimento econômico e aos direitos humanos.

O SUS, que é uma política de Estado e não de governo, é resultante de uma construção da sociedade brasileira e vem resistindo tenazmente a severos ataques de ordem política e econômica ao longo de sua existência. A saúde como valor solidário, direito de cidadania e dever do Estado, contudo, nunca esteve tão ameaçada como agora.

São expressivos e, objeto de reconhecimento internacional, os avanços na atenção primária consubstanciada na Estratégia de Saúde da Família (ESF), na Política Nacional de Imunização (PNI), na redução expressiva da mortalidade infantil, na Vigilância Epidemiológica e Sanitária, na política de Assistência Farmacêutica, de transplantes de órgãos, no Samu, na política de Aids/Hepatites, na Reforma Psiquiátrica, no combate ao uso de tabaco, na política do sangue, entre outras políticas públicas exitosas.

O campo da pesquisa e da inovação se fortaleceu, assim como a implantação de uma política industrial voltada para a produção nacional de tecnologias estratégicas para o país, a política de fortalecimento do Complexo Produtivo da Saúde, mediante parcerias entre laboratórios públicos e empresas privadas.

Todo esse processo permitiu que o país construísse uma ampla rede de atenção à saúde que hoje atende às necessidades da maior parte da população brasileira, com importante impacto no aumento da expectativa e na melhoria das condições de vida e na redução de iniquidades e desigualdades.

A magnitude e a relevância dessas realizações sem dúvida teriam sido mais expressivas, de maior alcance e de resultados mais profundos, não fossem os impasses estruturais, que impuseram ao longo dessa trajetória, fortes limites organizacionais e financeiros que impediram a plena realização de seus fundamentos.

Isso se expressa com clareza quando se analisa a estrutura do financiamento da saúde. Investimos cerca de 9% do PIB em saúde, mas desse valor apenas 46% corresponde ao gasto público, ou seja, a maior parte das despesas em saúde onera o orçamento das famílias e empresas. Nenhum sistema universal tem investimentos públicos tão baixos como o nosso, e quando se acresce a isso uma renúncia fiscal e tributária expressiva a cada ano, o quadro de subfinanciamento se agrava.

É nesse contexto que incide a EC 95 que, ao colocar a austeridade como princípio constitucional, congela os gastos por 20 anos e subjuga as necessidades de saúde da população às metas fiscais, impondo ao SUS o status de sistema desfinanciado, colocando em risco até a sua sobrevivência.

Essa política de aprofundamento de cortes dos gastos sociais, em um contexto de negação de direitos e de desvalorização das políticas universais, intensifica retrocessos e ameaça descaracterizar o SUS. A fragilização do SUS se soma ao ataque a várias políticas públicas fundamentais no processo saúde-doença e no conceito ampliado de saúde que envolve a natureza simultaneamente biológica, subjetiva e social dos problemas de saúde.

Essa base constitutiva das políticas de saúde está sendo desconstruída por mudanças em políticas de grande impacto na saúde, sem que o Ministério da Saúde e o parlamento sejam ouvidos, entre as quais podem ser destacadas:

• os retrocessos nas normas de segurança nos ambientes de trabalho e legislação referente a acidentes de trabalho e doenças profissionais;

• propostas referentes à legislação do trânsito que impactam na morbimortalidade por acidentes envolvendo veículos automotores (velocidade nas estradas, normas e regras para condução, “cadeirinha das crianças”, número de pontos para ter a carteira cassada);

– os ataques ao Estatuto da Criança e do Adolescente;

– as restrições ao amplo acesso à educação e informação e a fragilização das políticas voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos;

– as reiteradas ameaças ao estatuto do desarmamento;

– o aumento dos benefícios fiscais para a indústria de refrigerantes, indo na contramão do que se faz em todo o mundo;

– o ataque à educação pública e a ameaça à ciência nacional com o drástico contingenciamento do orçamento setorial;

– a liberação sem critério de agrotóxicos e pesticidas e as ameaças à saúde, ao meio ambiente e à sustentabilidade;

– a nova política de drogas, que possibilita a internação involuntária de usuários, prioriza as comunidades terapêuticas e a abstinência como objetivo do tratamento da dependência, ao invés das políticas voltadas ao tratamento de saúde de usuários, focadas na redução de danos;

– a proposta do Ministério da Justiça para redução do preço do cigarro que fragilizará a exitosa política de prevenção e controle do tabaco.

Da mesma forma é preciso atenção redobrada para os riscos da fragilização da regulação do setor privado na saúde. As constantes iniciativas do mercado com a intenção de flexibilização de regras de cobertura, da introdução de planos populares e de reajustes dos planos de saúde, devem ser combatidas.

A visão hegemônica no governo e no parlamento, assentada sobre uma falácia, é a de que a saúde, ao invés de investimento, é gasto e que a gestão em moldes empresariais, mesmo em um contexto de redução dos gastos, permitirá fazer mais com menos, ainda que isso comprometa a qualidade de vida e ameace a segurança dos cidadãos e famílias.

Daí também decorre a visão largamente disseminada – e da qual divergimos frontalmente – de que o SUS não pode ser universal, pois “não cabe no orçamento” e deve se destinar apenas a prover cuidados mais simples aos mais pobres. Essa visão equivocada desconhece, para além dos benefícios diretos do SUS sobre a saúde da população, que as atividades relacionadas ao setor saúde – serviços, medicamentos, vacinas e equipamentos -, respondem por cerca de 8,5% do PIB e incorporam setores estratégicos de inovação – tecnologia de informação, biotecnologia, microeletrônica, química fina, nanotecnologia, entre outros – com ampla repercussão em todos os setores da economia, e responderam por 10% dos postos formais de trabalho qualificado, empregando em torno de 9,5 milhões de brasileiros em 2015.

A disseminação da imagem de um SUS precário, refém de trocas político-partidárias, atendendo a interesses privados e insustentável com recursos públicos, apaga da percepção pública os importantes avanços obtidos e fragiliza sua sustentação social.

O SUS precisa e pode ser aperfeiçoado, pois é um patrimônio da nação brasileira e uma política social a ser preservada e valorizada como bem comum de valor inestimável, como ocorre em outros países com sistemas universais de saúde, a exemplo do Inglaterra, Canadá e Portugal entre outros.

Assim, a reafirmação de um sistema público e universal no campo da saúde fundamenta-se, em primeiro lugar, em princípios civilizatórios e de justiça, mas também em evidências sobre as vantagens dos sistemas públicos universais em termos de custo-efetividade nas comparações com outros modelos, baseados no setor privado, planos e seguros de saúde.

É preciso, mais do que nunca, fortalecer e ampliar a participação social na formulação, acompanhamento e fiscalização das políticas de saúde em todas as esferas de governo. Respeitar e implementar as decisões das conferências e dos conselhos de saúde, aprimorando e garantindo a democratização do Estado e a participação cidadã é fundamental para os destinos do SUS e do país.

O SUS é uma conquista do povo brasileiro. Sua consolidação e aperfeiçoamento são eixos fundamentais para a sobrevivência do Estado de Direito Democrático e na afirmação de políticas públicas de inclusão social.

Por ser a expressão real desses valores, a defesa de uma saúde pública moderna, de qualidade e respeitada pela sociedade deve ser baseada em uma ética do cuidado e na sustentabilidade política, econômica e tecnológica do SUS, o que exige a reafirmação do SUS – universal, equânime, integral e gratuito – como o sistema de saúde para todos os brasileiros e brasileiras.

Brasília, 5 de agosto de 2019.

Humberto Costa
José Saraiva Felipe
Jose Agenor Alvarez da Silva
José Gomes Temporão
Alexandre Padilha
Arthur Chioro

Fonte: Brasil de Fato
Publicado em 06/08/2019

16ª Conferência Nacional de Saúde começa neste domingo (4/08), em Brasília

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) organiza de 4 a 7 de agosto, em Brasília, a 16ª Conferência Nacional de Saúde (8ª+8). O tema deste ano é “Democracia e Saúde”. O objetivo é reafirmar, impulsionar e efetivar os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) para garantir a saúde como direito humano, a sua universalidade, integralidade e equidade do SUS.

 

 

A proposta temática da 16ª Conferência é um resgate à memória da 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, considerada um marco na história das conferências e para a saúde pública no Brasil. Foi a primeira conferência de saúde aberta à sociedade. O relatório final do evento serviu de base para o capítulo sobre a Saúde na Constituição Federal de 1988, resultando a criação do SUS.

A 16ª Conferência vai reunir participantes de todos os estados do país. É o principal espaço democrático para a construção de políticas públicas no Brasil. Os conferencistas foram eleitos em mais de três mil etapas municipais, 27 etapas estaduais e distrital, além de conferências livres. As Conferências de Saúde acontecem a cada quatro anos, reunindo profissionais de saúde, gestores e usuários do SUS para traçarem as diretrizes e ações que deverão ser desenvolvidas pelo Ministério da Saúde, estados e municípios.

Os princípios da maior política social do mundo estão definidos na Lei nº 8.080/1990, que define o SUS, e na Lei 8.141/1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS, além da própria Constituição de 1988. Durante a 16ª Conferência, os participantes vão discutir três eixos temáticos que são: Saúde como Direito; Consolidação dos princípios do SUS; e Financiamento do SUS.

Eixos temáticos

Saúde como Direito é uma condição que deve ser acessível para todos. Não devendo haver privilégio de uns em detrimento de outros. A Consolidação do SUS também será discutida. É formada por princípios básicos do sistema de saúde, dentre eles podemos citar a Universalidade: onde a saúde é entendida como um direito de cidadania e cabe ao Estado assegurar isto. A Equidade: onde as pessoas não são iguais e, por isso, têm necessidades distintas. E a Integralidade:  que considera as pessoas como um todo, atendendo a todas as suas necessidades.

Por fim, o Financiamento do SUS, também será tema de debate. O objetivo é buscar cumprir o que os marcos legais definem para a proteção social do país, principalmente no que se refere à seguridade social. É a busca por financiamento adequado para o desenvolvimento das ações do SUS.

Programação ampla

Durante a 16ª Conferência, acontecerão atividades autogestionadas (oficinas com temas relevantes), que serão realizadas no mesmo espaço da 16ª Conferência, de maneira simultânea à programação oficial. Ao todo, serão 31 atividades, com capacidade máxima de 100 pessoas para cada uma delas.

Música, teatro, cinema, dança, rodas de conversa, poesia, atividades lúdicas e contação de histórias estão entre as atrações culturais selecionadas para também comporem a programação. A ideia é mostrar a multiculturalidade, valorizar e promover a saúde por meio de linguagens artísticas, bem como o intercâmbio de grupos, a troca de saberes e o fortalecimento das lutas em defesa do SUS.

Ao fim da 16ª Conferência, será elaborado um relatório final que dará subsídios para o Plano Plurianual (PPA 2020-2023) e para o Plano Nacional de Saúde.

Mais informações

O quê: 16ª Conferência Nacional de Saúde (8ª+8)
Quando: De 4 a 7 de agosto de 2019
Onde: Brasília, DF (Pavilhão de Exposições do Parque da Cidade)

Contato: www.conselho.saude.gov.br/16cns
(61) 3315 2150  16cns@saude.gov.br

Fonte: SUSConecta
Publicado em 01/08/2019

Ascom CNS

Editorial da Folha analisa proposta de mudanças na forma de financiamento do SUS

Em editorial publicado nesta quinta-feira, 25/07, o jornal Folha de S.Paulo vê com cautela a proposta de alteração das regras de financiamento da atenção primária no SUS. Leia abaixo.

 

Cuidado com o SUS

Proposta de ministério parece bem fundamentada, mas deveria ser testada antes

É meritória a disposição do Ministério da Saúde de alterar as regras de financiamento da atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS), incorporando indicadores de efetividade e desempenho.

Uma gestão eficiente, afinal, não pode pautar-se somente por critérios demográficos —cumpre olhar também para a produtividade.

Pelas normas hoje em vigor, o repasse de recursos aos municípios para a atenção primária —vale dizer, a assistência prestada pelo programa de saúde da família (PSF) e unidades básicas de saúde— é definido com base na população local, segundo as estimativas do IBGE, e no número de equipes do PSF em atividade em cada cidade.

Em vez disso, o ministério pretende considerar a população efetivamente cadastrada nos programas de atenção primária (e não mais o total de residentes), além de introduzir medidas de desempenho, como a qualidade do pré-natal prestado, controle de doenças sexualmente transmissíveis, de diabetes, hipertensão arterial e outras.

A fim de evitar que as áreas onde as condições de saúde são mais precárias fiquem à míngua, o governo promete levar em conta também indicadores de vulnerabilidade socioeconômica e a distância entre os municípios considerados e as grandes conurbações.

À diferença do padrão de improviso extremo que marca grande parte das iniciativas da administração de Jair Bolsonaro (PSL), a proposta do ministério parece ter sido bem pensada, debatida com gestores e desenvolvida com ao menos algum detalhamento.

Isso não impede que especialistas se dividam em relação a seus prováveis efeitos práticos.

Há quem reconheça virtudes no projeto, mas também quem veja riscos ao princípio de universalidade do SUS, por não se contemplarem usuários não cadastrados no rateio de verbas —por outro lado,  estimula-se o aperfeiçoamento de cadastros das prefeituras.

A controvérsia tem razão de ser, quando se considera que o Sistema Único de Saúde é uma estrutura gigantesca e profundamente heterogênea. Não raro observa-se um fosso entre o efeito esperado de uma medida e aquilo que de fato ocorre no mundo real.

Para uma ideia do desafio basta lembrar que, das 43 mil equipes de saúde da família que atuam no país, 17 mil não estão informatizadas. Como farão para gerar os cadastros de pacientes e produzir dados sobre a qualidade do atendimento?

A proposta do ministério mostra objetivos corretos. Diante das complexidades do SUS, entretanto, a prudência recomenda que, antes de promover uma reforma que mexerá com todo o sistema, se teste o modelo em algumas regiões que representem bem a diversidade do país. O seguro morreu de velho —e não de erro médico.

Fonte: Folha de S.Paulo
Publicado em 26/07/2019

Ao cumprir promessa ideológica, Bolsonaro deixou 700 municípios e 6 milhões de brasileiros sem acesso a médicos

Oito meses após encerramento de parceria que garantia 8 mil médicos cubanos, programa federal ainda não conseguiu preencher 2.149 vagas, prejudicando o atendimento básico em 705 municípios. O Brasil tem hoje 2.149 vagas do programa Mais Médicos não preenchidas, o que equivale a 12% do total.

 

 

Das posições ociosas, 2.042 estão em regiões que não foram contempladas pelo único edital lançado neste ano, segundo dados obtidos pela do Deutsche Welle Brasil via Lei de Acesso à Informação.

Devido a essa situação, a União é alvo de uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF), que estima um prejuízo direto no atendimento básico de saúde de mais de 6 milhões de brasileiros, moradores dos 705 municípios onde há vagas ociosas.

O único edital lançado em 2019, em maio, teve como objetivo preencher postos em municípios com maior vulnerabilidade social, que representam cerca de 72% das cidades registradas e 57% das vagas do Mais Médicos.

A cidade com maior número de vagas para médicos ociosas é Fortaleza, com 78 postos vagos. A capital cearense supera até mesmo São Paulo (70), a maior cidade do país.

Enquadrada na categoria capitais e regiões metropolitanas, Fortaleza não recebeu médicos novos em 2019.

“Temos um programa de residência em atenção primária com 150 vagas, com custo anual de R$ 24 milhões. Isso seria reduzido pela metade se tivéssemos hoje os 78 profissionais que estão faltando no Mais Médicos”, diz Joana Maciel, secretária da Saúde da capital cearense.

O número total de vagas do Mais Médicos é 18.337. Mais de 8 mil delas foram ocupadas por cubanos até novembro do ano passado, quando Cuba abandonou o programa em resposta a declarações do recém-eleito presidente, Jair Bolsonaro.

A parceria entre os dois países foi iniciada em 2013, no governo de Dilma Rousseff.

Dois editais foram lançados pelo Ministério da Saúde ainda em 2018 para ocupar as vagas deixadas pelos cubanos. Mas de lá para cá muitos dos profissionais selecionados desistiram do programa, e essas vagas não foram preenchidas. O estado de São Paulo é o que soma mais vagas ociosas: 488.

Prejuízo para municípios

Os profissionais que participam do Mais Médicos recebem uma bolsa-formação de R$ 11,8 mil do governo federal, e os municípios fornecem moradia e transporte.

Sem os médicos do programa, as prefeituras precisam contratar diretamente o médico e arcar com custos como férias e 13º salário.

De acordo com um cálculo da Federação Catarinense de Municípios (Fecam), uma prefeitura gasta em média R$ 256 mil por ano para contratar um médico diretamente.

Essa é a opção de muitos municípios de Santa Catarina, que soma 145 vagas abertas, o equivalente a 25% das 569 do programa no estado.

O percentual é superior apenas no Distrito Federal, onde 38% das vagas do programa estão ociosas.

Cerca de 4 mil municípios estão cadastrados no Mais Médicos. Eles são divididos em oito perfis, de acordo com dados socioeconômicos do IBGE.

O edital lançado em 2019 pelo Ministério da Saúde previa a chamada de médicos apenas para os perfis de 4 a 8, de municípios considerados mais vulneráveis.

Isso ajuda a explicar por que Santa Catarina foi o estado mais afetado em termos percentuais: são 177 cidades entre os perfis de 1 e 3, e apenas 38 nos perfis de 4 a 8.

Glademir Aroldi, presidente da Confederação Nacional de Municípios (CNM), afirma que os gastos com a contratação direta de médicos chegam num momento em que muitas administrações municipais já operam no vermelho.

“Por lei, a prefeitura não pode gastar mais de 54% do orçamento com pessoal, e essa despesa com médicos entra nessa classificação. Hoje, pelo menos 30% dos municípios do país já estão no limite de gastos com pessoal, então, qualquer despesa extra vai fazer com que eles não consigam fechar as contas dentro da legislação”, diz.

Em maio deste ano, o Ministério Público Federal (MPF) em Santa Catarina entrou com uma ação civil pública para que a União garanta o preenchimento das vagas do Mais Médicos ou recursos para as cidades afetadas em todo o país. Fábio de Oliveira, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em Santa Catarina, usa o cálculo da Fecam para alertar para o prejuízo que pequenos municípios podem ter.

“Temos casos como de Içara, um pequeno município catarinense que tem que tirar do orçamento mais de R$ 1 milhão por ano para contratar substitutos dos médicos que não chegam pelo programa federal. Isso é apenas um exemplo do que ocorre em todos os municípios que estão sem médicos. Por isso, pedimos na liminar o cumprimento imediato do programa”, diz o procurador.

Içara fica a 190 quilômetros da capital catarinense, Florianópolis, e tem direito a 15 vagas do Mais Médicos, sendo que nove foram ocupadas por cubanos até novembro.

Nove brasileiros foram selecionados para substituí-los através dos editais abertos em 2018, mas sete deles já desistiram do programa.

Classificada como região metropolitana, a cidade não foi contemplada no edital de maio deste ano.

O MPF critica o fato de o edital deste ano contemplar apenas parte dos municípios cadastrados.

“Isso é errado e não está na lei de 2013 que criou o Mais Médicos. Se o governo quer criar regras novas para o programa, tem que aprovar uma nova lei”, critica Oliveira.

Ministério da Saúde elabora novo programa

Sem entrar em detalhes sobre as mudanças pretendidas, o Ministério da Saúde afirma que está elaborando um novo programa para substituir o Mais Médicos, criado em 2013.

Em nota enviada à DW, a pasta disse que trabalha na “elaboração de um novo programa para ampliar a assistência na Atenção Primária”.

Além disso, o órgão afirmou que estuda a possibilidade de que os cerca de 2 mil médicos cubanos que permaneceram no Brasil após o fim de seus contratos com o programa obtenham permissão para trabalhar como médicos no país.

O ministério reforçou que o edital de maio continua repondo vagas “em cidades mais vulneráveis, em geral pequenas, além dos distritos sanitários indígenas”.

Questionada sobre a previsão de lançamento de um edital para as cidades que não foram contempladas no de maio, a pasta citou apenas o prolongamento do repasse de verbas.

“O Ministério da Saúde publicou uma portaria no início de abril estendendo para seis meses o prazo de pagamento da verba de custeio repassada às unidades de saúde da família que perderam profissionais do Mais Médicos. A regra anterior cortava o repasse para o posto se ele ficasse sem médico por mais que dois meses. Os gestores dessas localidades que perderam profissionais do Mais Médicos podem utilizar esses recursos também para contratar os próprios médicos”, diz o texto.

Em relação à ação civil pública que tramita em Santa Catarina, a nota informa que “cabe apenas ao Ministério da Saúde a definição do quantitativo de vagas a serem abertas no âmbito do Programa Mais Médicos, bem como os municípios em que essas vagas serão alocadas”.

Fonte: Viomundo
Publicado em 24/07/2019