A democracia do SUS sob ameaça

Os riscos na nova Governança Tecnocrática na Ética da Pesquisa em Seres Humanos.

1 O Ideal Democrático Sob Ameaça na Governança em Saúde

A promulgação da Lei 14.874/2024, que regulamenta as pesquisas com seres humanos no Brasil, acendeu um profundo conflito constitucional e ético que atinge o cerne do projeto democrático de saúde do país. Esta legislação representa um momento de ápice na tensão permanente entre uma dita  regulação técnica e governança democrática participativa nas políticas de saúde. O subsequente questionamento através da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7875 pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) perante o Supremo Tribunal Federal (STF) sinaliza um momento crítico para o duramente conquistado sistema de participação social na saúde brasileira. Este artigo argumenta que a substituição de um modelo participativo por uma estrutura tecnocrática sob a nova lei não apenas ameaça os fundamentos éticos da pesquisa com seres humanos, mas também representa um retrocesso civilizacional que prioriza uma suposta autoridade superior em detrimento da democracia, potencialmente minando o direito constitucional à saúde e o princípio da participação social democrática que guiaram o Sistema Único de Saúde (SUS) desde sua origem.

A significância deste conflito estende-se muito além das tecnicidades da regulamentação de pesquisa em Seres Humanos. Ele toca na própria natureza da democracia do SUS  no Brasil, testando se o país continuará abraçando um modelo pluralista onde várias partes interessadas—usuários, trabalhadores, gestores e prestadores—coletivamente moldam políticas de saúde através de espaços deliberativos paritários, ou recuará para um processo decisório vertical que marginaliza vozes comunitárias em nome de uma suposta e sem base material eficiência regulatória. Esta análise examina como o novo marco legal altera fundamentalmente a abordagem brasileira para a ética em pesquisa e o que esta mudança revela sobre as lutas contínuas entre diferentes interesses que operam nos espaços democráticos do Estado.

2 A Fundação Histórica da Participação Social na Saúde Brasileira

A transformação do sistema de saúde brasileiro em um modelo de acesso universal representa uma das conquistas mais significativas na saúde pública global, em grande parte devido à sua arquitetura inovadora de governança democrática. Este sistema emergiu da confluência de três instrumentos legais fundamentais: a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu a saúde como direito universal e dever do Estado; a Lei 8.080/1990, que organizou o SUS; e a Lei 8.142/1990, que institucionalizou a participação comunitária através dos Conselhos de Saúde. Estes conselhos, operando em níveis municipal, estadual e federal, reuniram representantes de usuários, trabalhadores da saúde, gestores e prestadores em paridade deliberativa—uma inovação sem precedentes na governança global da saúde que equalizou os interesses de poder na formulação de políticas de saúde.

O desenho estrutural do SUS representa uma conquista notável na democracia participativa, criando o que a Constituição brasileira define como “sistema único de saúde” cuja governança é compartilhada entre governo e sociedade. Este modelo reconhece que num estado democrático, as disputas de interesses ocorrem em diferentes espaços—executivo (gestão), legislativo e judiciário—mas garante que a sociedade civil tenha voz institucional nas deliberações de saúde. Os princípios orientadores do sistema de universalidade, integralidade e equidade não são meros conceitos técnicos, mas compromissos ético-políticos forjados através da participação social. O Conselho Nacional de Saúde (CNS), como instância colegiada permanente e deliberativa, desempenha papel crucial na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde, incluindo a aprovação de cada plano de saúde e o monitoramento de sua implementação.

Esta arquitetura participativa possibilitou a criação, em 1996,  no seio do Conselho Nacional de Saúde, do Sistema CEP/Conep”, que até recentemente representava uma referência global para supervisão ética de pesquisas envolvendo seres humanos. Operando através dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) espalhados pelo país, este sistema, capitaneado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep),   garantia que os protocolos de pesquisa passassem por revisão ética rigorosa com participação social significativa, protegendo participantes de pesquisa enquanto avançava o conhecimento científico dentro de um quadro de respeito à dignidade humana e relevância social.

3 O Novo Marco Regulatório para Pesquisa Clínica: Mudanças e Controvérsias Principais

A Lei 14.874/2024 introduz mudanças profundas no panorama da ética em pesquisa no Brasil, alterando fundamentalmente os arranjos institucionais e fundamentos filosóficos que guiaram a área por décadas. A nova legislação estabelece a Instância Nacional de Ética em Pesquisa, vinculada ao Ministério da Saúde, como o novo órgão regulador responsável por gerenciar, formular regulamentos e políticas da área e supervisionar os aspectos éticos de pesquisas envolvendo seres humanos. Esta reestruturação por si só representa um afastamento significativo do modelo anterior que operava sob a égide do Conselho Nacional de Saúde, que garantia ampla representação social na tomada de decisão ética.

3.1 Alterações Críticas aos Direitos e Proteções dos Participantes

Os aspectos mais contenciosos da nova lei giram em torno de suas modificações às proteções asseguradas como direitos dos participantes e à redistribuição de responsabilidades entre as partes interessadas:

· Acesso Restrito ao Tratamento Pós-Estudo: A legislação estabelece limitações significativas ao tratamento contínuo de participantes de pesquisa após a conclusão do estudo, substituindo a garantia anterior de tratamento gratuito por tempo indefinido estabelecida pela Resolução 466/2012 do CNS. O novo quadro introduz justificativas e requisitos que dificultam o acesso a medicamentos experimentais contínuos, potencialmente deixando participantes vulneráveis sem alternativas terapêuticas uma vez que os ensaios concluídos.

· Transferência de Ônus Financeiro para o Sistema Público: Talvez a mudança mais radical envolva a transferência de responsabilidades financeiras de patrocinadores privados para o sistema público. Enquanto anteriormente laboratórios e empresas privadas patrocinadoras da pesquisa arcavam com a responsabilidade pela continuidade do tratamento e compensação de participantes por danos relacionados à pesquisa, a nova legislação atribui esses custos ao sistema público de saúde , sem fornecer qualquer avaliação de impacto orçamentário.

· Erosão do Consentimento Informado: O artigo 18 da lei permite a inclusão de pessoas em pesquisas sem consentimento prévio em situações de emergência, argumentando que nesses casos não haveria tempo hábil para coletar autorização formal. Esta disposição desafia fundamentalmente o princípio do consentimento autônomo, uma pedra angular da ética em pesquisa que respeita a dignidade e autodeterminação do participante, estabelecido desde o Código de Nuremberg, em 1945.

· Participação Social Enfraquecida: A nova estrutura de governança reduz significativamente a representação da sociedade civil na supervisão da ética em pesquisa. Ao contrário do modelo anterior que garantia participação social ativa na formulação de normas e acompanhamento dos estudos, o novo sistema limita esta presença à participação simbólica mínima  efetivamente marginalizando vozes comunitárias da tomada de decisão substantiva.

4 Tensões Constitucionais e Éticas na Nova Legislação

O questionamento legal apresentado na ADI 7875 levanta questões fundamentais sobre a constitucionalidade da Lei 14.874/2024, destacando vários pontos de tensão com o quadro constitucional brasileiro, o ordenamento jurídico do SUS e as tradições éticas.

4.1 Violação do Direito Fundamental à Saúde

A nova lei potencialmente viola a garantia constitucional da saúde como direito social fundamental estabelecido no Artigo 196 da Constituição Federal, que afirma que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Ao restringir o acesso ao tratamento contínuo para participantes de pesquisa—indivíduos que assumem riscos para o benefício científico coletivo—a legislação falha em cumprir o dever do Estado de proteger este direito de forma abrangente. Esta abordagem contradiz o princípio constitucional da dignidade humana (Artigo 1º, III) e o regime de proteção de direitos sociais, potencialmente criando o que a SBB caracteriza como um “retrocesso social e violação do direito fundamental à saúde”.

A legislação também parece conflitar com os parâmetros estabelecidos pelo STF para o fornecimento judicial de medicamentos não incluídos nas listas do SUS, que exigem comprovação de incapacidade financeira, indispensabilidade clínica e eficácia baseada em evidências. Ao limitar o acesso ao tratamento pós-estudo, a lei pode estar empurrando participantes para a judicialização sem garantir resultados favoráveis, uma vez que os requisitos rigorosos estabelecidos no Tema 6 de Repercussão Geral do STF ainda se aplicariam. Isto cria uma dupla vulnerabilidade para participantes de pesquisa: primeiro ao remover o direito automático ao tratamento contínuo, e segundo ao potencialmente torná-los inelegíveis para medicação através de meios judiciais devido aos critérios rigorosos.

4.2 Enfraquecimento da Participação Social Democrática

A marginalização da sociedade civil da governança da ética em pesquisa representa talvez a violação constitucional mais profunda, pois ataca diretamente a arquitetura participativa que define o SUS. A Constituição de 1988 estabeleceu não apenas um direito à saúde, mas um modelo particular para realizar este direito—um baseado na participação social e engajamento comunitário na formulação de políticas de saúde. As Leis 8.080/1990 e 8.142/1990 operacionalizaram este compromisso constitucional criando espaços institucionais para paridade deliberativa entre diferentes atores da saúde.

A substituição do sistema baseado no CNS por uma instância tecnicamente orientada e vinculada ao Ministério da Saúde altera fundamentalmente esta estrutura participativa, efetivamente desmantelando três décadas de capital social construído em torno da democracia sanitária. Esta mudança contradiz o desenho constitucional que trata a participação social não como mera formalidade, mas como componente essencial da governança em saúde. Como a SBB argumenta corretamente, esta limitação enfraquece o controle social, princípio previsto na Constituição para garantir que as políticas de saúde sejam construídas de forma democrática e participativa.

4.3 Irregularidades Processuais e Competência Institucional

A ADI também destaca uma potencial violação processual acerca da competência institucional. A Constituição estabelece que criar e extinguir ministérios e órgãos da administração pública cabe à competência do Presidente, não ao Poder Legislativo. Ao criar a Instância Nacional de Ética em Pesquisa através de legislação em vez de ação presidencial, a lei pode sofrer do que a SBB caracteriza como “vício de iniciativa”, minando ainda mais sua legitimidade constitucional.

Princípios Constitucionais Potencialmente Violados pela Lei 14.874/2024

Direito à Saúde (Art. 196) Restrições ao tratamento contínuo para participantes de pesquisa

Dignidade Humana (Art. 1º, III) Limitações ao consentimento autônomo e cuidado pós-estudo

Participação Social Enfraquecimento do papel da sociedade civil na governança da ética em pesquisa

Separação de Poderes Criação legislativa de órgão administrativo potencialmente excedendo autoridade

Transparência Orçamentária Falta de avaliação de impacto para custos transferidos ao SUS

5 Implicações Mais Amplas para Judicialização da Saúde e Equidade

A implementação da Lei 14.874/2024 ameaça exacerbar dois desafios pré-existentes no sistema de saúde brasileiro: judicialização da saúde e aprofundamento das iniquidades em saúde.

5.1 Aumento da Judicialização Sem Proteção

A SBB alerta corretamente que as novas restrições provavelmente aumentarão a litigância em saúde, já que ao ser negada a continuidade do tratamento que está sendo benéfico os participantes de pesquisa não terão alternativa senão buscar pela via judicial. Entretanto, essas pessoas navegariam neste caminho judicial sem a segurança de uma resposta favorável, a depender do entendimento do magistrado responsável pelo julgamento. Pode-se citar como exemplo a dificuldade de comprovação de incapacidade financeira para aquisição do medicamento, visto que, via de regra, esses medicamentos  podem ser extremamente caros e nem sempre disponibilizados comercialmente em todo o território nacional   Participantes de pesquisa, particularmente aqueles em situações vulneráveis, enfrentariam desafios significativos para atender aos critérios exigentes do STF, potencialmente deixando-os sem proteção após contribuir para o avanço científico.

5.2 Impacto na Equidade em Saúde e Recursos Públicos

A transferência de responsabilidades financeiras de patrocinadores privados para o SUS cria implicações preocupantes para equidade em saúde e sustentabilidade fiscal. Sem uma adequada avaliação de impacto orçamentário, como observado na ADI, a lei potencialmente impõe encargos significativos aos cofres públicos, que se tornariam financeiramente responsáveis por compensações decorrentes de pesquisas financiadas privadamente. Esta redistribuição de custos de entidades privadas para o sistema público representa um preocupante subsidio de pesquisa privada com recursos públicos, potencialmente desviando fundos de outros serviços de saúde essenciais e afetando a sustentabilidade financeira geral do SUS.

Este arranjo é particularmente problemático dado que a pesquisa clínica frequentemente foca no desenvolvimento de medicamentos de alto custo para condições que afetam populações mais abastadas, potencialmente criando uma situação onde recursos públicos subsidiam o desenvolvimento de drogas que , ao final, permanecerão inacessíveis para a maioria dos usuários do SUS devido aos seus preços elevados. Esta dinâmica aprofundaria as iniquidades de saúde já existentes e contradiria o princípio constitucional da equidade, que visa tratar desigualmente os desiguais investindo mais onde as necessidades são maiores.

6 Recuperando o Caminho Democrático na Ética em Pesquisa

A controvérsia acerca da  Lei 14.874/2024 representa muito mais do que um ajuste regulatório técnico—ela constitui um teste crítico para a democracia sanitária brasileira. A substituição de um modelo participativo, socialmente controlado, por uma estrutura tecnocrática e centralmente gerenciada marca um preocupante recuo do avanço civilizacional que o SUS representou. Esta mudança em direção ao que a SBB caracteriza com precisão como um “retrocesso social” requer resistência vigorosa de todos comprometidos com a saúde como direito universal e valor democrático.

O caminho a seguir deve incluir tanto estratégias legais quanto políticas. A ADI 7875 atualmente perante o STF fornece uma oportunidade importante para restabelecer proteções constitucionais para participação social e direitos abrangentes à saúde. Simultaneamente, movimentos sociais, comitês de bioética,  comitês de ética em pesquisa, trabalhadores da saúde, entidades representativas de portadores de patologias e participantes de pesquisa devem mobilizar-se politicamente para defender o ethos participativo que definiu o sistema de saúde brasileiro em seu melhor. Esta mobilização deve advogar por um marco regulatório que harmonize eficiência da pesquisa com rigor ético, avanço científico com proteção do participante, e clareza regulatória com governança democrática.

A tensão entre autoridade e democracia na ética em pesquisa reflete uma luta mais ampla sobre que tipo de sistema de saúde o Brasil quer construir. Será um onde uma suposta eficiência técnica justifica marginalizar vozes comunitárias, ou um que abrace o desafio complexo mas necessário de equilibrar múltiplos interesses através da deliberação democrática? A resposta a esta questão determinará não apenas o futuro da ética em pesquisa, mas o próprio caráter do duramente conquistado sistema de saúde do Brasil. Ao navegar nesta encruzilhada, o Brasil faria bem em lembrar que no delicado equilíbrio entre autoridade regulatória e participação democrática, errar em não conseguir consensualizar ideias divergentes que podem produzir ineficiências, mas errar em direção à excessiva autoridade tecnocrática  arrisca minar os princípios fundamentais que fizeram do SUS um dos sistemas de saúde universais mais respeitados do mundo.

Ronald Ferreira dos Santos
Coordenador do Movimento Nacional Saúde pela Democracia + SUS é + Brasil
Diretor da Fenafar