Opinião: Sobre o Controle de Preços de Medicamentos

Os gastos com saúde crescem em quase todo o mundo, em particular nos países desenvolvidos, com os Estados Unidos da América na liderança[i]. A maioria das análises mostra que dentre as inúmeras causas desse crescimento está a intensificação da dinâmica tecnológica em saúde, especialmente a alta de preços dos medicamentos[ii].

 

 

Os países que possuem sistemas de saúde universais há muito desenvolveram mecanismos regulatórios para controlar esse aumento de preços que, com o recrudescimento da tendência de alta, em muitos casos estão sendo aperfeiçoados no sentido de controles mais rígidos (p. ex., Reino Unido em 2014[iii] e Canadá em 2020[iv]). Mesmo países sem sistemas universais o controle vem aumentando. Nos Estados Unidos, está para entrar em vigor em 2020 uma Lei que reforça a regulação de preços (Prescription Drug Pricing Reduction Act)[v].  Nos países em desenvolvimento, merecem destaque os esforços da China em controlar os preços dos medicamentos[vi]. No Brasil, o controle de preços teve início em 1999/2000 com a CPI dos medicamentos seguida pela promulgação da Lei dos Genéricos e pela criação da primeira câmara de regulação de preços (CAMED), ambas em 2000 e com a criação da CMED em 2003, que até hoje cumpre essa missão. Essas iniciativas, às quais devem ser adicionadas as farmácias populares (2004, 2007 e 2011 em suas três versões) e a política de desenvolvimento produtivo (2008), foram capazes de reduzir o preço médio dos medicamentos entre 2000 e 2017 em cerca de 20%[vii], com um crescimento significativo do acesso aos mesmos pela população. Essa foi uma trajetória nitidamente anticíclica em relação ao resto do mundo.

Um argumento abundantemente utilizado pelo mundo afora contra a regulação de preços de medicamentos é que as empresas sofrem com ele. No Brasil, pelo contrário. Neste século, com as políticas de controle brevemente mencionadas acima, adicionadas a inclusão social e a expansão da economia em boa parte do período, a indústria farmacêutica esteve entre os segmentos da indústria de transformação que mais cresceram, até hoje resistindo ao desastre observado em outros segmentos a partir de 2014.

As iniciativas de controle de preços dos medicamentos vêm tendo uma trajetória recente acidentada, com a extinção do componente público da Farmácia Popular em 2019, com o congelamento da expansão de seus outros dois componentes (Aqui Tem Farmácia Popular e Saúde Não Tem Preço) e com uma paralisia da política de desenvolvimento produtivo desde 2017. E, para completar a reversão dos mecanismos de controle de preços, avança celeremente uma proposta de eliminar a regulação de preços pela CMED de uma grande parte do mercado de medicamentos no país.

Nas palavras do representante do Grupo Farmabrasil, Reginaldo Arcuri: “Estamos propondo que medicamentos que têm inovação incremental tenham seu preço definido pela própria empresa”. Essa proposta foi objeto de estudo por uma comissão coordenada pela ANVISA com a participação dos Ministérios da Saúde, da Economia e da Justiça e deverá ser objeto de consulta pública em breve. Segundo matéria do Valor Econômico (10/9/2019), o argumento é: ‘“Na [CMED], a análise [para a fixação de preço] não levará em conta o risco assumido pelo laboratório e vai comparar um produto aperfeiçoado a outros que já estão no mercado, resultando em remuneração inadequada, afirma Arcuri. “O que estamos querendo é um jogo de mercado, e não privilégios. Queremos concorrer e ter flutuação de preços’”. Em outra matéria, agora na Folha de São Paulo (18/12/2019), o mesmo executivo afirma: “’O aumento dos preços desses medicamentos não é descartado (grifo meu). No entanto, segundo Arcuri, se a indústria aumentar os valores, terá baixa demanda nas farmácias, já que o consumidor recorrerá ao remédio no formato sem inovação incremental, mas com resultado igual. “O Brasil tem uma inércia de achar que preço de medicamento tem que ser controlado pela vida toda”’.

O conceito mais disseminado de “inovação incremental” foi elaborado pela OCDE e expresso em 1990 no Manual de Oslo. Uma das características da utilização desse conceito são as grandes indeterminação e elasticidade de suas fronteiras. Podem ser focadas em produtos, processos, marketing, design, mudanças organizacionais, etc. Por exemplo, a compra de novo maquinário para um produto é, sim, considerada uma inovação incremental. Aliás, de acordo com a Pesquisa de Inovação Tecnológica do IBGE, esta é mais frequente inovação relatada pela indústria de transformação no Brasil. Mudanças de embalagem são também consideradas inovações incrementais, nesse caso uma inovação de marketing. E por aí vai. Nada sabemos ainda sobre a delimitação que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) vai estabelecer. E, provavelmente, existindo um contraditório entre a interpretação da Anvisa e do fabricante sobre se um produto apresenta ou não uma inovação incremental, abre-se um amplo espaço para novos contenciosos judicializáveis.

Outro aspecto diz respeito a essa suposição (neoclássica) de que o mercado vai regular os preços relativos quando uma empresa lançar um produto “incrementado” já tendo outro(s) “velho(s)” e regulado(s) no mercado. Ora, todo o marketing sobre os prescritores nas farmácias e nos consultórios médicos será, naturalmente, focado no “incrementado” mais caro e a tendência será o fim-de-carreira do “velho”. Tendencialmente, teremos um mercado só com produtos sem regulação de preço. No limite, apenas os produtos protegidos por patentes estarão submetidos ao controle de preços.

Por fim, um comentário lateral, na verdade uma conjectura. Internacionalmente, o tema das inovações incrementais passou a ser exaltado pela Big Pharma como uma justificação da possibilidade de medicamentos resultantes dessas inovações poderem ser patenteados. Essa exaltação alimenta uma das principais estratégias de extensão exagerada do período de proteção patentária (evergreening) pelas multinacionais e tem contra si uma oposição feroz e justificada dos produtores locais. É bem verdade que os temas de patentes e controle de preços são distintos. Mas, não parecerá politicamente contraditório argumentar que produtos oriundos de inovações incrementais sejam não-patenteáveis ao mesmo tempo em que é proposta uma liberalidade para os mesmos quanto ao controle de preços? Em outros termos, ser contra o evergreening de patentes e a favor de uma espécie de “evergreening” de preços?

*Reinaldo Guimarães é médico, vice-presidente da Abrasco e pesquisador do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ

Referências:
[i] https://www.economist.com/business/2019/05/21/the-global-battle-over-high-drug-prices

[ii] https://www.ntu.org/publications/detail/health-care-technology-and-spending

[iii] https://en.wikipedia.org/wiki/Pharmaceutical_Price_Regulation_Scheme

[iv] https://www.theguardian.com/world/2019/aug/09/canada-prescription-drugs-cut-cost

[v] https://www.forbes.com/sites/joshuacohen/2019/10/15/drug-price-controls-gaining-traction-at-federal-and-state-levels/#5ad04d952049

[vi] https://www.asiatimes.com/2019/08/article/china-increases-drug-price-control-measures/

[vii] https://sindusfarma.org.br/arquivos/APRESENTACAO_MARCELA.pdf

Fonte: Abrasco
Publicado em 08/01/2020

Patentes para quê e para quem? A proposta de extinção do INPI e o monopólio ao setor privado

Em artigo, Jorge Bermudez* e Saulo da Costa** discutem as assimetrias e injustiças gerados pelo atual sistema de propriedade intelectual. “Contrapondo saúde e comércio, as patentes de medicamentos e de outras tecnologias podem se constituir em barreiras ao acesso a produtos de saúde. A regulação, tanto sanitária (Anvisa) como de propriedade intelectual e industrial (INPI), tem como finalidade fundamental o respeito a direitos assegurados em nossa Constituição e deve ter lastro na proteção de nossas populações”.

Muitas iniciativas do atual governo não mais espantam, mas certamente causam indignação. A atividade de regulação é própria do Estado e não pode ser entregue ao setor privado, eivado de conflitos de interesses. Contrapondo saúde e comércio, as patentes de medicamentos e de outras tecnologias podem se constituir em barreiras ao acesso a produtos de saúde. A regulação, tanto sanitária (Anvisa) como de propriedade intelectual e industrial (INPI), tem como finalidade fundamental o respeito a direitos assegurados em nossa Constituição e deve ter lastro na proteção de nossas populações.

O atual sistema de propriedade intelectual e nossa Lei de Propriedade Industrial encontram respaldo numa série de compromissos e acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, – podemos destacar a Constituição da Organização Mundial da Saúde, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, resoluções do Conselho de Direitos Humanos da ONU e o Acordo Trips da OMC (Acordo Sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), este último tomado como base para se alterarem as premissas do sistema de propriedade industrial no Brasil, aprovando a Lei 9.279, em 1996, e passando o Brasil a reconhecer patentes de processos e produtos e, consequentemente, ao gerar monopólios, podendo impactar negativamente o acesso a medicamentos sob proteção patentária.

O acesso a medicamentos vem sendo um tema amplamente discutido em foros mundiais, conceituado como o equilíbrio entre a oferta e a demanda de produtos, mas essencialmente contrapondo interesses comerciais a interesses sociais. Esse assunto foi exaustivamente debatido durantes as diversas reuniões do Painel de Alto Nível do Secretário-Geral das Nações Unidas, cujo relatório foi tornado público em setembro de 2016. Com a constatação de que o acesso a medicamentos hoje não é mais um problema restrito a países de renda baixa ou média, o relatório recomenda claramente que os Estados-membros da OMC devem se comprometer em seus níveis políticos mais altos a respeitar a letra e o espírito da Declaração de Doha sobre o Acordo Trips e Saúde Pública, se abstendo de qualquer medida que restrinja sua implementação e uso, com o fim de promover o acesso a tecnologias em saúde.

Fica evidente que as recomendações do Painel de Alto Nível das Nações Unidas implicam fortalecimento das capacidades nacionais da regulação patentária, no caso do Brasil, o INPI. Fica, entretanto, também evidente que nossas autoridades trilham outros caminhos

Concretamente, e mencionando o artigo 27 do Acordo Trips, devem ser adotadas e aplicadas definições rigorosas de invenção e patenteabilidade, assegurando que as patentes somente sejam concedidas quando se produz uma verdadeira invenção. O mandato do Painel de Alto Nível consistia na busca de soluções para as incoerências políticas entre os direitos dos inventores, as prioridades em Saúde Pública, as leis e regulação de direitos humanos e as regras do comércio.

Fica evidente que as recomendações do Painel de Alto Nível implicam fortalecimento das capacidades nacionais da regulação patentária, no caso do Brasil, o INPI. Fica, entretanto, também evidente que nossas autoridades trilham outros caminhos. Em dezembro de 2017, a Comissão Mista de Desburocratização do Congresso Nacional incluiu em seu relatório “agilizar o exame da proposta de alteração legislativa que tem por finalidade instituir um processo simplificado para apreciação da patente sem exame, a critério da parte interessada ou de eventual concorrente, atualmente em estudo na Casa Civil da Presidência da República”. É de estarrecer uma proposta desse tipo e, na ocasião, nos referimos à mesma como crime de lesa-Pátria (ver aqui). Aparentemente, mesmo sendo apoiada por setores do governo, essa proposta não conseguiu o eco necessário, e a discussão não prosperou.

Devem ser adotadas e aplicadas definições rigorosas de invenção e patenteabilidade, assegurando que as patentes somente sejam concedidas quando se produz uma verdadeira invenção

Nestes últimos dias, circulou amplamente a notícia de que o Ministério da Economia estaria propondo a extinção do INPI e a transformação da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial em Agência Brasileira de Desenvolvimento e Propriedade Industrial (ABDPI), incorporando as competências do INPI no formato de Serviço Social Autônomo (ver aqui a nota técnica com proposta de Medida Provisória nesse sentido). Tal proposta, na verdade, vem sendo gestada sem alarde há algum tempo, pois a Nota Técnica é datada de 4/11/2019 e discute Medida Provisória e Lei Ordinária, que remontam a outubro e propõem implementação a partir do primeiro dia do exercício de 2020, para o qual uma série de medidas anteriores se fariam necessárias tempestivamente.

A circulação dessa proposta, a nosso ver, incluída no desmonte que vem sendo implementado nos setores públicos, levou à reação imediata de funcionários do INPI. Põe em risco a excelência do Instituto, reconhecida por instituições congêneres em diversos países, comprometendo a imparcialidade e transferindo as responsabilidades de uma autarquia do Estado para uma entidade com interesses privados. Houve, ainda, notas públicas da Associação dos Juízes Federais do Brasil e Associação dos Juízes Federais do Rio de Janeiro e Espírito Santo, bem como de diversos sindicatos nacionais, lembrando do caráter superavitário do INPI, do seu papel relevante na transferência de tecnologia de outros países e estratégico, no desenvolvimento nacional e relações de comércio exterior.

Para além das questões corporativas, da excelência dos quadros de examinadores de patentes no INPI, a proposta em questão [de extinção] fere interesses nacionais; fere a soberania ao submeter interesses nacionais ao capital internacional; fere direitos humanos ao possibilitar atender a interesses privados e gerar mais monopólios e preços elevados; nega a relevância da regulação como ação estratégica de Estado

Louvamos com destaque a nota pública de repúdio à proposta de extinção do INPI elaborada e divulgada pelo Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), coletivo que congrega diversas organizações da sociedade civil, movimentos sociais e especialistas ligados ao tema da propriedade intelectual e acesso à saúde no Brasil. O GTPI, mais uma vez, posiciona-se oportuna e corretamente em defesa da saúde e contra o desmonte de instituições estratégicas de Estado.

Para além das questões corporativas, da excelência dos quadros de examinadores de patentes no INPI, da necessidade de fortalecer, e não de extinguir, a proposta em questão fere interesses nacionais; fere a soberania ao submeter interesses nacionais ao capital internacional; fere direitos humanos ao possibilitar atender a interesses privados e gerar mais monopólios e preços elevados; nega a relevância da regulação como ação estratégica de Estado.

Cada vez mais, fica evidente a necessidade de reagir com indignação, de argumentar com convicção e lutar contra a precarização de atividades essenciais e estratégicas. A insegurança jurídica que emana desse tipo de proposta compromete ainda mais a respeitabilidade do Brasil no exterior e está muito clara na questão de acesso a medicamentos. O papel do INPI, de qualquer forma, é relevante para muitas outras áreas, como Agricultura, Ciência e Tecnologia, pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação, direitos autorais, entre outros. O retrocesso que uma inciativa dessas vai acarretar não será superado em curto ou médio prazo, mostrando-se mais um desmonte, na contramão do mundo civilizado!

* Jorge Bermudez é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-geral das Nações Unidas

** Saulo da Costa Carvalho é tecnologista do INPI, presidente da Associação dos Funcionários do INPI.

Fonte: Fiocruz
Publicado em 18/12/2019

O que muda (para pior) no financiamento do SUS

Ministério da Saúde ameaça tirar mais de 50% dos recursos de alguns municípios. Unidades Básicas serão financiadas por quantidade de pessoas cadastradas e por “produtividade”. Princípio da universalidade, essencial ao sistema, é ameaçado.

 

 

Primeiro, o que é atenção básica?

A atenção básica à Saúde (ABS) ou atenção primária é conhecida como a porta de entrada dos sistemas de saúde. Ou seja, é o atendimento inicial, o primeiro nível de atenção. Ela oferece desde a promoção da saúde (por exemplo, orientações para uma melhor alimentação) e prevenção (como vacinação e planejamento familiar) até o tratamento de doenças agudas e infecciosas, bem como controle de doenças crônicas, cuidados paliativos e reabilitação. A ABS organiza o fluxo dos serviços nas redes de atenção à saúde, dos mais simples aos mais complexos.

Na sua essência, a atenção básica cuida das pessoas, em vez de apenas tratar doenças ou condições específicas. Ela é baseada na comunidade, ou seja, considera outros determinantes da saúde, como o território e as condições de moradia e trabalho. É o famoso postinho de saúde do bairro, a Unidade Básica de Saúde (UBS). Ela pode atender mais de 80% das necessidades de saúde de um indivíduo ao longo de sua vida.

Como ela era financiada?

O financiamento era composto por um valor fixo (PAB Fixo), corrigido por alguns parâmetros (PIB per capita, percentual da população com plano de saúde, percentual da população com Bolsa Família, percentual da população em extrema pobreza e densidade demográfica), multiplicado por toda a população do município. Além dele, era pago um valor variável (PAB Variável) para estimular a implementação e expansão da Estratégia de Saúde da Família e outros programas, por exemplo, as Equipes de Saúde da Família, Saúde Bucal e Consultório na Rua, Agentes Comunitários de Saúde, dentre outros.

O que muda com a nova portaria?

O novo modelo publicado na portaria 2.979/19, que começa a valer a partir de 2020, busca estimular o alcance de resultados e é composto por capitação ponderada, pagamento por desempenho e incentivo para ações estratégicas. Ou seja, o financiamento será feito a partir do número de usuários cadastrados nas equipes de saúde, com foco nas pessoas em situação de vulnerabilidade social (ao exemplo das que recebem auxílio financeiro do Programa Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada ou benefício previdenciário no valor máximo de dois salários mínimos), pagamento baseado no alcance de indicadores e adesão a projetos do governo federal, como Saúde na Hora, de informatização, dentre outros.

Quais os problemas do novo modelo?

Considerar o conjunto da população é importante para se planejar e implementar estratégias que beneficiam a todas as pessoas. Limitar o financiamento às pessoas cadastradas pode na verdade diminuir a ação do SUS e sufocar ainda mais um sistema que já conta com menos recursos que o necessário, o chamado subfinanciamento crônico.

A restrição de recursos pode prejudicar a ação comunitária, o planejamento territorial e a vigilância em saúde, ações que valem para a população como um todo e vão muito além só das pessoas cadastradas. Como a maior parte das pessoas que usa o SUS é de baixa renda, a proposta é de um SUS para os pobres, ao invés de um SUS para todos.

Com a nova portaria, algumas cidades vão ficar sem mais da metade dos recursos, uma soma que ultrapassa R$ 400 mil. Elas irão perder a única transferência governamental em saúde de base populacional atualmente existente e que pode ser aplicada com autonomia – e isso certamente é um risco para a sustentabilidade financeira do SUS municipal.

E isto é ruim, pois em vez de priorizar estas pessoas, na verdade o que está sendo feito, pouco a pouco, é o desmonte do sistema, considerando que existem diversas medidas em curso que vem asfixiando o SUS. Por exemplo, a Emenda Constitucional 95 de 2016, conhecida como Teto dos Gatos, estabeleceu um limite nas despesas do governo federal, inclusive com saúde. Agora está em discussão no Congresso a Proposta de Emenda Constitucional do Pacto Federativo que prevê a junção dos mínimos a serem aplicados em saúde e educação pelos municípios, gerando uma queda de braços entre estes dois direitos, ao invés de ampliar o recurso para ambos.

Além de outras mudanças na atenção básica: a Medida Provisória 890 ( 2019), aprovada na última semana, que cria o Médicos pelo Brasil, institui uma agência de direito privado, a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), para realizar serviços de responsabilidade do Estado com orçamento público e pode realizar parcerias com a iniciativa privada. Ela teria em seu conselho deliberativo um representante das empresas privadas da saúde, e não do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que conta com a participação dos usuários e dos trabalhadores do setor. É o governo implementando cada vez mais uma lógica de privatização, ao invés do fortalecimento do serviço público. Quer dizer, é dinheiro indo para empresários e não para população, sem a comprovação de que o serviço privado tem melhor desempenho que o público.

O programa Médicos pelo Brasil, substituto do Mais Médicos, prevê ainda contratar médicos em regime CLT, abrindo mão da exigência de residência médica, e focando a estratégia apenas neste profissional e não em uma equipe multidisciplinar. Tampouco prevê a melhoria e construção de UBS. Ainda, o Ministério lançou uma consulta pública para estipular uma carteira de serviços da atenção primária, que, apesar de poder padronizar os serviços entre as diferentes UBS e aumentar a transparência para população, neste cenário de corte de recursos, pode na verdade restringir o serviço, ao invés de ampliá-lo.

Adotar a lógica do desempenho e produtividade, também importada da iniciativa privada, é complicado, pois a saúde não é – ou não deveria ser – mercadoria. Por exemplo, um maior número de atendimentos, mas feitos às pressas, não significa um melhor cuidado aos pacientes. Da mesma forma, cadastrar um número grande de pessoas sem se preocupar com suas reais necessidades em saúde pode comprometer a efetividade da estratégia adotada para aquele território.

Outro problema é a falta de transparência e de participação popular. A apresentação do novo modelo foi feita por slides, sem um documento robusto de embasamento, ou sem detalhar pontos importantes, como quais indicadores serão considerados. Além disto, apesar de ter sido aprovado na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), composta por representantes do Ministério da Saúde e de secretários de saúde estaduais e municipais, não passou pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). A proposta foi apresentada em julho, a portaria publicada em novembro e passa a valer em janeiro de 2020.

Em suma, os princípios do SUS, em especial a universalidade e a participação popular, e sua própria existência enquanto sistema público, são colocados em risco nesse novo modelo.

E por que defender o SUS e seus princípios é importante?

O SUS tem vários problemas, pois não é tarefa fácil criar um sistema gratuito e para todos em um país grande e diverso como é o Brasil. Mas nenhum provedor privado de saúde fornece tantos serviços quanto o SUS, que vai desde a vigilância sanitária, para garantir que a comida do restaurante seja feita com higiene, até cirurgias complexas, como transplantes cardíacos, passando pela produção de medicamentos, gestão de hospitais e unidades de pronto atendimento (UPAs) e oferta de tratamentos de alto custo.

Certamente, há muito a ser melhorado, mas mesmo com uma histórica falta de recursos, o SUS conseguiu resultados importantes, como redução da mortalidade infantil ou o controle e a eliminação de doenças por meio da vacinação. Além disso, por mais que tenha problemas como filas ou demora no atendimento ou marcação de exames e consultas, ele é um sistema ao qual todos os brasileiros podem recorrer, sejam eles pobres ou não, ao contrário do que acontece em outros países, em que os gastos com saúde levam famílias a falência.

O melhor caminho, então, seria aprimorar o SUS – e não limitar ainda mais seu financiamento. A ideia de uma cesta mínima de serviços apenas para populações mais vulneráveis é o que prega a Cobertura Universal de Saúde. Essa corrente é apoiada por organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde e o Banco Mundial. Mas, para nós brasileiros, na prática, essa cobertura restrita significa um retrocesso em relação ao sistema público universal, e em relação ao pacto social na saúde que acordamos na Constituição Federal de 1988.

Usa-se mais uma vez o argumento da escassez de recursos e a lógica da privatização, em vez de se promover o uso máximo de recursos e a realização progressiva de direitos bem como a participação popular, pilares importantes para o uso do orçamento público, registrados na metodologia Orçamento & Direitos do Inesc.

Essa lógica levanta soluções como os planos de saúde acessíveis ou populares. Eles podem até seduzir pela marcação de consulta imediata ou seu preço baixo. Mas se o paciente precisar de respostas mais complexas, por exemplo, uma cirurgia ou um exame mais elaborado, ele fica sem assistência. E com um SUS pequeno e limitado, no fundo, quem não tiver dinheiro não terá para onde correr.

Fonte: Inesc, por Luiza Pinheiro – extraído do Outra Saúde
Publicado em 06/12/2019

Juarez Guimarães: A luta pela saúde como enfrentamento ao neoliberalismo

“Quando se funda uma república, ela vem com a aura da fundação, com o vigor, os valores, as ideias. Com o passar do tempo desgasta, e é necessário, sobretudo em contextos adversos, relembrar as inspirações do início. E o caminho para recuperar a democracia no Brasil é a refundação do Sistema Único de Saúde” disse Juarez Guimarães, cientista político, durante o 8 º Simpósio Brasileiro de Vigilância Sanitária (26/11) , em Belo Horizonte.

 

 

A partir desta linha de pensamento, a palestra de Juarez “Democracia no Brasil e seus reflexos na saúde”, foi um convite: aos jovens, que conheçam os pilares do SUS. Aos fundadores, que revisitem as memórias.

O tempo não é inimigo

Para o professor da Universidade Federal de Minas Gerais, o tempo não é inimigo, é a casa de quem mora na tradição sanitarista e a estrada que reconectará os antigos sonhos – de uma sociedade igualitária, de saúde universal e gratuita – aos novos – a saúde que pensa no todo e também no indivíduo: “Há muitos novos sujeitos andando por aí a procura do SUS – movimentos negros, gays, mulheres, sem terra, indígenas. Precisamos ir ao encontro. Pela tradição sanitarista, nós visitamos os sonhos dos fundadores do SUS, e, antes ainda, os sonhos dos sanitaristas que construíram a primeira sensibilidade de se pensar em política pública, de se pensar no sofrimento do povo brasileiro e de encontrar soluções”, disse à plateia.

Na palestra, dedicada ao patrono da Saúde Coletiva, Sérgio Arouca,  Juarez recuperou justificativas consolidadas para o fato do Sistema Único de Saúde não ter atingido, 30 anos após seu fundamento, todo seu potencial como experimento de construção da democracia e reinvenção dos novos direitos para os brasileiros: “A consciência critica da saúde construiu três diagnósticos para os impasses históricos que enredam o SUS: subfinanciamento, sistema mercantil privado, e impasses de gestão”, explicou o professor.

Os estudiosos do campo apontam subfinanciamento como o maior problema a ser enfrentado para a resistência do SUS porque, desde o início, o programa recebeu recursos aquém de sua dimensão. Já a lógica mercantil fortalece o setor privado na saúde – como as empresas de planos de saúde – em detrimento da saúde pública. A terceira linha de argumentação diz respeito às dificuldades de se gerenciar um sistema desenhado com forte participação social, transparência e federalismo em um “Estado que não foi completamente republicanizado”, de acordo com Guimarães.

O pesquisador apontou, referenciando-se na figura histórica de Sonia Fleury, que é necessário unificar estes diagnósticos em um só: o gargalo temporal entre a fundação e a institucionalização do SUS. Isto é, houve uma distância entre a consolidação da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu o Sistema Único de Saúde como o marco civilizatório mais importante da sociedade brasileira, e a estruturação do SUS, o que causou uma tensão entre o “fundador programático” do SUS e o “construtor pragmático” do SUS. De novo, recorreu ao tempo: é preciso a reconexão com o ethos da fundação do SUS como “momento decisivo da refundação da própria democracia brasileira”.

Atacar o SUS é trazer a morte para o povo brasileiro

De acordo com Juarez, que pesquisa políticas públicas relacionadas aos Estados do Bem-Estar Social, predominava no pós-guerra uma lógica de construções de direitos, apesar do liberalismo econômico. O neoliberalismo, entretanto, quebra essa dinâmica: ataca a macroeconomia do setor público, provoca um processo de crescimento da  privatização e desorganização. Há também a desconstrução da cultura de direitos, porque, para os entusiastas do neoliberalismo, a “liberdade está apartada da ideia de igualdade”, explicou. Por fim, o neoliberalismo ataca a própria democracia: rompe com eleições livres, destrói a possibilidade de construção de direitos públicos, “ataca a economia, a cultura e as instituições políticas ao mesmo tempo”.

Esta desapropriação dos direitos, ainda segundo o professor, corrói as bases do que é considerado dever do Estado, como a saúde. Por isso, a reprogramação do SUS deve estar no centro dos programas de enfrentamento ao neoliberalismo, a exemplo de outros países: “O Partido Trabalhista do Reino Unido [Labour Party] agora posiciona-se fortemente sobre a taxação de grandes riquezas em prol do refinanciamento do National Health System (NHS). Nos Estados Unidos, políticos de oposição colocam em pauta a construção de um sistema sanitário, em meio a maior crise da democracia do país – quando a extrema direita assume a presidência, eleita por Fake News“, afirmou.

Ao falar das práticas neoliberais no Brasil, Juarez citou o ministro da economia Paulo Guedes, que ele chamou de “profeta do apocalipse” (em referência ao artigo de Sonia Fleury, “O adereço de Guedes e o sentido do governo”), e as medidas do atual governo que, somadas à Emenda Constitucional 95, estrangulam o financiamento do SUS e deterioram as condições de vida da população brasileira: “Atacando o programa de prevenção ao HIV/Aids, desorganizando a Estratégia de Saúde da Família, a Vigilância Sanitária… o que trarão se não a peste para os brasileiros? Estão trazendo a fome. A guerra”.

Tensões políticas atravessam o 8 º Simbravisa

As palavras fortes do professor geraram um tensionamento na plateia: enquanto cerca de 400 pessoas permaneceram aplaudindo de pé, aproximadamente 30 simposiastas retiraram-se do espaço, em protesto às críticas direcionadas ao Presidente da República: “As políticas do Bolsonaro são muito afirmativas neste sentido, políticas de violência contra os Direitos Humanos mais básicos, chamando ao armamento livre, à matança livre de culpa. É a política da morte: atacar o SUS é trazer a morte para o povo brasileiro. Não há como resistir sem construir alternativas. Não há como resistir sem derrubar o governo Bolsonaro”.

Ao final da palestra, Gulnar Azevedo e Silva, presidente da Abrasco, agradeceu as palavras de Juarez, lembrando que a Abrasco foi fundada há 40 anos, em plena ditadura militar, e reafirmando o compromisso da entidade com a refundação do SUS e da democracia:  “Os fundadores [do SUS] estão de cabelos brancos, mas estão na luta. É nosso dever continuar a luta pelo direito universal à saúde”, concluiu.

Fonte: Abrasco
Publicado em 05/12/2019

Pesquisadores comentam as ameaças ao programa brasileiro de HIV/Aids

Com uma atuação marcada por quebra de patentes, distribuição de medicamentos e combate à homofobia, o Brasil se consolidou como referência internacional em políticas públicas de enfrentamento à epidemia de HIV/Aids ao longo dos anos 1990 e 2000. Essa trajetória foi analisada pelos historiadores Marcos Cueto e Gabriel Lopes, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Na entrevista eles alertam para as ameaças que o retrocesso nestas políticas podem trazer para o país. 

O artigo Aids, Antiretrovirals, Brazil and the International Politics of Global Health, 1996–2008, publicado na revista Social History of Medicine (Oxford University Press), destaca o protagonismo do país na política global da Aids em meados dos anos 1990 até a primeira década do século 21.

No mês em que se celebra o Dia Internacional de Luta Contra a Aids, em 1º de dezembro, Lopes alerta, porém, para as ameaças às conquistas das últimas décadas. “Para que os avanços não sejam perdidos, as políticas voltadas para o combate ao HIV/Aids devem ser encaradas como políticas de Estado e não de governo. Por isso, é importante defender os ideais de saúde como direito, seguindo a Constituição Federal”. A data foi instituída pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no fim da década de 1980, para reforçar a solidariedade, a tolerância e a compreensão com as pessoas infectadas pelo HIV.

Nesta entrevista, os historiadores da COC falam sobre o artigo e discutem o atual cenário de enfraqueciemento das políticas públicas para o tema. Gabriel Lopes, que é bolsista de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC, critica o que chamou de ‘moralização da Aids’. “O movimento conservador, muitas vezes, relaciona a Aids a práticas consideradas impuras ou a comportamentos não desejáveis. Estes setores têm assumido um papel importante nesta ‘moralização’, tornando a questão mais complexa e obscura”, ressaltou.

O Brasil colocou os países em desenvolvimento em posição de destaque no cenário internacional, promovendo debates sobre processos e políticas de acesso universal a antirretrovirais (ARVs), como mostra o artigo. Quais foram as estratégias brasileiras neste processo? 
Marcos Cueto: O Brasil não somente desafiou as poderosas empresas farmacêuticas, como também a suposição de que as políticas internacionais de saúde eram definidas apenas por países desenvolvidos. As duas principais estratégias brasileiras neste processo foram a parceria entre sanitaristas, Organizações Não Governamentais (ONGs), pessoas vivendo com HIV, diplomatas e funcionários do governo e, em segundo lugar, a participação brasileira em importantes reuniões e redes internacionais para discutir o acesso gratuito a medicamentos. Os resultados da combinação de uma política de saúde esclarecida e ativismo da saúde contribuíram para que o país alcançasse relevância internacional.

Gabriel Lopes: Além disso, o Brasil incluiu grupos sociais neste debate, incorporando o ativismo, novas pesquisas sobre o tema, a política internacional e as práticas de saúde brasileira. Certamente, se o país não possuísse uma estrutura em termos de Sistema Único de Saúde, de corpo diplomático que soubesse dialogar com os outros países, além da capacidade de negociar e propor discussões com a indústria farmacêutica, não teria atingido essa posição.

Como foi a discussão proposta pelo Brasil sobre medicamentos antirretrovirais como mercadorias ou bens públicos e como isso influenciou o acesso gratuito a estes fármacos?
Marcos Cueto: O Brasil foi um modelo importante pela parceria entre diferentes atores, a luta contra a homofobia, a articulação entre prevenção e tratamento, a promoção de medicamentos genéricos e a redução de preços dos medicamentos de marca.

Gabriel Lopes: As políticas de saúde global de Aids foram influenciadas pelo advento dos antirretrovirais – fármacos usados para o tratamento de HIV/Aids e outras doenças infecciosas – a partir de 1996. A política de saúde brasileira, respaldada pelo SUS, defendia o acesso público e universal a estes medicamentos. No entanto, defensores das grandes indústrias farmacêuticas consideravam que o Brasil não era suficientemente pobre para conseguir a quebra de patente para obter esses remédios, enquanto os diplomatas envolvidos defendiam essa quebra para a distribuição gratuita dos remédios à população. Curiosamente, atualmente, os países que mais precisam destes medicamentos e de tratamento, são países pobres localizados na África, que menos têm acesso, revelando uma contradição com as ideias defendidas pelas farmacêuticas naquela época.

De que forma o Programa Nacional de Aids e Doenças Sexualmente Transmissíveis e o Sistema Único de Saúde (SUS) contribuíram para o protagonismo brasileiro nas políticas globais para o HIV/Aids?
Marcos Cueto: Os princípios de integralidade e participação da comunidade serviram para articular o trabalho de prevenção, tratamento e o ativismo em saúde, favoreceram a articulação brasileira no cenário internacional.

Gabriel Lopes: A estruturação do SUS, em 1988, que reconheceu a saúde como direito de todos os cidadãos e uma obrigação do Estado, foi fundamental para deixar o ambiente preparado para que o Brasil pudesse influenciar as políticas internacionais de saúde relacionadas ao HIV/Aids. Outro ponto importante foi a atuação do Estado, já que os diplomatas brasileiros estavam engajados em defender questões importantes frente à Organização Mundial do Comércio e o acesso a antirretrovirais, por exemplo. Além disso, este processo recebeu o apoio de organizações não-governamentais e da população, mobilizando intelectuais, artistas, formadores de opinião e a sociedade civil para o debate. Essa sinergia interna e externa foram fundamentais nesse período.

Como o contexto político brasileiro a partir de 2008, com a multiplicidade de partidos políticos e o desmantelamento da bancada multipartidária de saúde, interferiu na política nacional para HIV/Aids? 
Gabriel Lopes: Nesse período, mantiveram-se os ganhos em mortalidade, mas experimentou-se um aumento lento, mas constante, da morbidade pelo HIV, resultado de políticas de tratamento com pouca prevenção. Além disso, houve uma interferência da indústria farmacêutica internacional. Os antirretrovirais feitos na Índia ficaram em descrédito e toda a produção de medicamentos em países periféricos foi colocado em xeque. Observamos ainda ações importantes do governo americano que procuravam proteger a indústria farmacêutica.

Além disso, questões internacionais ligadas a alas conservadoras foram importantes para culpabilizar as pessoas portadoras do HIV/Aids. De certa forma, essa confluência também com setores conservadores nacionais interferiu nas questões brasileiras. Vale destacar que no período indicado no artigo – 1996 a 2008 – havia uma bancada da ciência e da saúde no congresso nacional, um grupo organizado que defendia essas questões. Atualmente, nós não temos isso, as coisas estão mais desmobilizadas e a tendência é que a saúde não seja vista como um direito.

Em maio de 2019, o Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde sofreu alterações e, atualmente, integra o outro departamento que se dedica também a doenças como hanseníase e tuberculose. Qual o impacto dessa decisão nas políticas de combate ao HIV/Aids?
Gabriel Lopes: Considerado referência mundial no tratamento de HIV/Aids, o Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais tem atuação histórica na luta contra a doença, como a oferta gratuita de tratamento para portadores do vírus. Outra iniciativa recente foi o encerramento das redes sociais relacionadas aos temas HIV/Aids. Essas medidas podem ampliar a invisibilidade desta doença, uma vez que reduziu o acesso da população a informações sobre doenças que continuam sendo uma questão de saúde pública global. O cenário atual é crítico e pode ser considerado um retrocesso, com tendência a se agravar. Essas doenças precisam ser encaradas como uma questão de saúde pública e devem ser enfrentadas em diversos níveis seja com informação de qualidade, prevenção, educação sexual ou o fornecimento de medicamentos.

Dados do Unaids, mostram um aumento de 21% no número de novos casos de infecção por HIV no Brasil entre 2010 e 2018. Qual a importância da educação sexual nesse contexto? 
Gabriel Lopes: Atualmente, observa-se a permanente ‘moralização da Aids’, que relaciona a doença a práticas consideradas impuras ou a comportamentos ‘não desejáveis’. Estes argumentos culpabilizam as pessoas e reforçam a ideia de que se você tem Aids é porque não estava de acordo com o comportamento ‘correto’ ou se envolveu com ‘pessoas erradas’. Setores conservadores [da sociedade] têm assumido um papel importante nessa ‘moralização’, tornando a questão mais complexa e obscura. Nesse contexto de conservadorismo, a educação sexual tem sido atacada por diversas frentes que defendem que esse assunto deve ser abordado prioritariamente pela família, excluindo a escola e outros grupos sociais do debate. Não adianta ter remédio e uma política de tratamento, se não se investe na educação sexual e na prevenção bem estruturada.

Diante do enfraquecimento de órgãos ligados às políticas públicas voltadas a essa questão, o que considera mais importante no enfrentamento do HIV/Aids nesse momento atual?
Gabriel Lopes: Como historiador, defendo que, para que os avanços não sejam perdidos, as políticas voltadas para o combate ao HIV/Aids devem ser encaradas como políticas de Estado e não de governo. A sociedade precisa estar mobilizada para que os ganhos conquistados até aqui sejam retidos e para que certos avanços não sejam perdidos com a mudança de governo. É importante defender os ideais de saúde como direito, seguindo a constituição federal.

Fonte: Agência Fiocruz
Publicado em 03/12/2019

Arminio Fraga: Aliado do SUS ou ‘Mui Amigo’?

Banqueiro e criador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde publicou artigo polêmico, em que defende a universalidade do sistema, mas afirma que setor privado “ajuda”.

 

 

Folha publicou no dia 01/12, na sua seção Tendências e Debates, artigo que foi recebido com muita polêmica. Assinado por Armínio Fraga, o texto questiona se o SUS tem futuro – mas, pelo menos na nossa interpretação, defende o Sistema. Ele começa com uma contextualização, explicando que assegurar uma rede de proteção social é um aspecto “fundamental de qualquer Estado democrática digno do nome”. E que, na saúde, essa rede se organizou historicamente em dois modelos: o do SUS e do NHS britânico e o do seguro de saúde obrigatório. Ao que tudo indica, Fraga defende o nosso modelo… Embora faça uma crítica bem neoliberal a ele (há “ineficiências” intrínsecas à gestão pública). Mas na comparação com o sistema universal, o modelo de seguros leva a pior: “A gestão é terceirizada, o que por um lado gera eficiência, mas por outro eleva a demanda por exames e cirurgias. Na prática, as seguradoras buscam minimizar seus pagamentos, frequentemente em confronto com seus segurados”, descreve.

Superada a contextualização, Fraga apresenta o problema: em função do envelhecimento da população, do crescimento da renda e do encarecimento dos custos do setor, a tendência no mundo todo é que a população demande mais serviços de saúde. Isso vai significar mais gastos em saúde. Só que há um problema: “O SUS foi desenhado à imagem e semelhança do modelo britânico, que hoje custa cerca de 10% do PIB deles, sendo 8% administrados diretamente pelo Estado. No Brasil o gasto total com saúde chega a 9% do nosso PIB. No entanto, a despeito de suas origens, a proporção pública aqui corresponde a apenas 4% do PIB. Muito pouco para um sistema universal. Não surpreende, portanto, que, por falta de recursos e também por ineficiências, os usuários do SUS se vejam hoje às voltas com filas de espera, peregrinações à busca de atendimento e leitos improvisados. Os outros 5% do PIB são gastos diretamente pelas pessoas ou através de planos de saúde (o sistema suplementar)”, identifica.

Se no presente, o nível de investimento público já é baixo, Arminio Fraga aponta que a proporção pode piorar. “Dado o estado precário das finanças públicas no país, dificilmente a fatia pública [de 4% do PIB] será mantida. Na verdade, ela deve cair, sujeita que está ao teto dos gastos públicos, congelados em termos reais”, conclui. Com isso, a sobrevivência do SUS “está ameaçada”, continua ele, que defende – e aqui está o pomo da discórdia – as seguintes medidas: “para investir mais em saúde e em outras áreas de interesse público será necessário buscar recursos em novas fontes: nos gastos e subsídios tributários regressivos, que devem ser eliminados, e na Previdência e no funcionalismo, que respondem por 80% do gasto público”. Seria importante que Fraga desse detalhes ou exemplos mais concretos.

O fato é que o ex-presidente do Banco Central no governo FHC termina o artigo de maneira ainda mais ambígua. Fraga se posiciona contra a ideia tão comum no meio empresarial de que o setor privado “ajuda” o SUS – “ao contrário de países avançados, aqui os subsídios [à saúde suplementar] são concedidos para os que mais podem, na forma de deduções do Imposto de Renda” –, mas não fecha totalmente a porta para uma maior participação das empresas. Diz ele: “o sistema de saúde suplementar em seu formato atual não representa uma alternativa viável para os três quartos da população que dependem do SUS”. E se o formato atual mudar? Fica a dúvida.

Fonte: OutraSaúde, por Maíra Mathias
Publicado em 02/12/2019

CNS aproxima relação com Conselho Nacional do Ministério Público para defender SUS

O presidente do CNS, Fernando Pigatto, participou do Seminário Ministério Público, Diálogos Institucionais e Efetividade das Políticas Públicas de Saúde. O encontro reuniu representantes de diferentes instituições vinculadas ao poder público com objetivo de debater evidências, fortalecer vínculos e aprimorar o Sistema Único de Saúde (SUS).

 

 

Na manhã desta quinta (28/11), o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto, participou do Seminário Ministério Público, Diálogos Institucionais e Efetividade das Políticas Públicas de Saúde, organizado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em Brasília.

Para Fernando Pigatto, presidente do CNS, a aproximação entre diferentes conselhos que lutam pelos interesses e direitos dos cidadãos é uma das estratégias para que a saúde pública seja defendida como direito humano. “Estamos articulando com vários setores, inclusive Legislativo e Judiciário. Nossa atuação é para além do CNS. A iniciativa deste seminário é importante para seguirmos em diálogo”, afirmou.

O presidente do CNS também destacou que a austeridade fiscal dos últimos anos, em especial, imposta pela Emenda Constitucional 95/2016, que vem retirando recursos do SUS e outras políticas sociais, tem sido um fator de alerta para diferentes instituições. Tanto que Paulo Gadelha, coordenador da Estratégia da Fiocruz para a Agenda 2030, também expôs sua preocupação diante do que vem ocorrendo no Brasil.

“Saúde é uma agenda universal, interage com todos os setores sociais. 70% das pessoas no nosso país dependem exclusivamente do SUS e 30% depende conjuntamente da saúde privada e do SUS. O SUS é a instância central dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), tem um papel fundamental na Agenda 2030”, disse.

De acordo com o presidente do CNMP e procurador-geral da república, Antônio Augusto Brandão, é necessário que as instituições solidifiquem suas estruturas para que a lei e as políticas públicas sejam cumpridas com exelência, independentemente da gestão. “Precisamos de um Estado estruturado, com instituições fortes. Por isso a importância do diálogo com diferentes segmentos da sociedade, com correntes distintas de opinião. Isso é a nossa democracia”, disse.

Maria Tereza Uille Gomes, conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), também participou do evento apresentando as inovações do CNJ com o Sistema de Gestão de Tabelas Processuais Unificadas, onde é possível encontrar inúmeros processos brasileiros por tema, inclusive relacionando-os à área da Saúde ou mesmo a partir das metas e objetivos da Agenda 2030.

Saiba mais

A Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), representa o consenso de 193 países com 17 objetivos de desenvolvimento sustentável e 169 metas que refletem temas pela erradicação da pobreza e da fome, a promoção do crescimento econômico includente, a redução das desigualdades, a ação contra as mudanças climáticas, o acesso universal e o uso racional de água, entre outros.

Fonte: SUSConecta
Publicado em 29/11/2019

Frente Parlamentar decide elaborar PEC para que o acesso ao medicamento seja direito fundamental

Nesta quarta-feira, 20 de novembro, entidades e parlamentares participaram da reunião da Frente Parlamentar em Defesa da Assistência Farmacêutica, na Câmara dos Deputados. Após um debate sobre a situação o tema, os presentes definiram medidas para enfrentar propostas que pretendem liberar a venda de medicamentos em supermercados e aprovaram a elaboração de uma proposta de emenda constitucional para que o acesso medicamento seja um direito humano fundamental.

A Frente Parlamentar em Defesa da Assistência Farmacêutica é coordenada pela deputada federal Alice Portugal (PCdoB-BA), que coordenou a reunião. Ela apresentou um levantamento com os projetos em tramitação no Congresso Nacional que são verdadeiros ataques à profissão do farmacêutico, ao acesso ao medicamento e à Lei 13.021 que transformou a farmácia em estabelecimento de saúde. Estavam em pauta também as propostas que permitem a venda de medicamentos em supermercados.

Participaram da mesa de debate o presidente da Fenafar, Ronald Ferreira dos Santos, Gilcilene Chaer representante do Conselho Federal de Farmácia (CFF), Ediane Bastos representante do Ministério da Saúde, Elton Chaves representante do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), e Jorge Bermudez representando a Fiocruz.

Gilcilene Chaer destacou a importância de combater todas as propostas que visam alterar a Lei 13.021, uma grande conquista para a categoria, e barrar também as que pretendem permitir a venda de medicamentos em lugares que não sejam as farmácias.

O presidente da Fenafar destacou que o Brasil vive hoje um tsunami liberal que quer acabar com as profissões regulamentadas e colocar a saúde da população sob risco.

Elton Chaves afirmou que os projetos citados na reunião atacam de forma frontal o direito constitucional à saúde. Ideia também defendida por Jorge Bermudez, da Fiocruz, que acrescentou que é preciso também voltar a atenção para o desmonte do SUS, promovido pelo atual governo.

Ediane Bastos, do Ministério da Saúde, reiterou a necessidade de fortalecer a informação da importância da farmácia como estabelecimento de saúde e da presença dos farmacêuticos nos estabelecimentos.

Ao final da reunião, a deputada Alice e as entidades presentes assinaram um ofício que será encaminhando ao Ministério da Saúde, solicitando audiência com o ministro para discutir os projetos pautados. Além disso, ficou definido que será preparado um material informativo com as propostas nocivas à assistência farmacêutica para ser entregue aos parlamentares. Para avaliar os vários projetos em tramitação na Câmara, também ficou encaminhada a construção de uma audiência pública para discutir as propostas que atacam o direito à vida como esta que propõem a venda de medicamentos em supermercados.

Na avaliação de Ronald Ferreira dos Santos, a decisão mais importante da reunião da Frente Parlamentar foi a ideia de elaborar uma proposta para garantir o acesso a medicamentos como direito humano fundamental dos brasileiros e brasileiras. Ele considera que a proposta é fruto do amadurecimento dos debates que a categoria vem realizando ao longo dos últimos anos.

“A partir dos debates, decidimos elaborar uma Proposta de Emenda Constitucional em torno do direito humano ao acesso ao medicamento, o que colocará a Assistência Farmacêutica e o desenvolvimento da Ciência e Tecnologia não apenas na lógica de sustentar o mercado ou produzir bons negócios, mas de colocar o direito das pessoas e colocar o medicamento como produto vinculado ao direito à vida. Essa proposta pode agregar amplos setores da sociedade  (setor produtivo, gestores e usuários) que defendem os princípios do SUS e o direito à vida. Ela é resultado de um acumulo de debate que estamos fazendo ao longo dos últimos anos de colocar a farmácia como estabelecimento de saúde e o papel de medicamento como insumo essencial à vida. A Farmácia Estabelecimento de Saúde nós já conseguimos conquistar com a Lei 13.021, agora precisamos consolidar o que já está mais ou menos concretizado em várias decisões de tribunais, que é a necessidade de caracterizar o medicamento como insumo essencial ao direito à vida”, avalia Ronald.

Para Jorge Bermudez a reunião debateu temas de extrema importância para a profissão farmacêutica e para o acesso aos medicamentos, entre elas a inserção da Assistência Farmacêutica na Estratégia Saúde da Família. “Cada vez que participamos de uma reunião deste tipo nos sentimos preparados e revigorados para essa luta  que estamos travando contra o desmonte do Sistema Único de Saúde, contra a cassação a direitos sociais adquiridos e conquistados arduamente ao longo dos 30 anos, e principalmente no campo da Assistência Farmacêutica e colocar o medicamento como direito à saúde”.

Da redação com agência
Publicado em 22/11/2019

Fiocruz analisa impactos do derrame de petróleo na saúde

A Fiocruz vai monitorar o impacto na saúde da população atingida pelo derrame de petróleo no litoral do Nordeste. Um dos principais objetivos da ação é rastrear o risco para pescadores, marisqueiras e grávidas. Para isso, a instituição acaba de criar um grupo de trabalho – com a mobilização de pesquisadores e envolvimento das direções dos institutos e unidades técnico-científicas da Fiocruz da região Nordeste – que se reunirá pela primeira vez nesta terça-feira (5/11), para avaliar o problema e propor soluções. 

 

 

A equipe que atuará no local foi destacada pelo Ministério da Saúde para apoiar o Centro de Operações de Emergência – COE Petróleo. De acordo com o pesquisador Guilherme Franco Netto, assessor da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, para rastrear o risco para pescadores, marisqueiras e grávidas, a Fiocruz apresentará ao Ministério da Saúde um plano de ação que incluirá, entre outros pontos, um planejamento de capacitação de curto prazo para que os profissionais de saúde das redes de atenção do SUS estejam habilitados a prestar serviços que levem em consideração os riscos à saúde decorrente do desastre ambiental.

“Nas áreas atingidas, os pescadores e marisqueiras (que no Nordeste representam uma população hoje estimada em 144 mil pessoas) correm o risco de ter contato direto com o material contaminado e o pescado como principal fonte de sua alimentação e modo de vida nos territórios que habitam. Essas populações exercem um papel central na defesa do patrimônio cultural, ambiental e econômico da costa do Nordeste. Por isso, temos que ter um cuidado redobrado com essas pessoas, e, por isso mesmo, envolvê-las na organização da resposta”, informou o pesquisador.

Guilherme também ressaltou que deve haver atenção especial às gestantes que vivem na região costeira atingida. “Há necessidade de monitorar criteriosamente a saúde das futuras mães e dos fetos que estão em desenvolvimento”. O especialista chama a atenção para o fato de que os dados divulgados sobre os locais atingidos apontam para situações e níveis de contaminação diversos. “Além dos pescadores, grávidas e marisqueiras, diferentes grupos populacionais – como militares, defesa civil e voluntários, entre outros, que estão trabalhando na remoção do óleo – estão expostos aos riscos de contaminação, seja pela inalação, pelo contato dérmico ou pela ingestão de alimentos contaminados”, alerta.

Um conjunto importante de medidas estratégicas devem ser implementadas, tais como a definição de parâmetros para a análise dos alimentos com potencial contaminação para orientar adequadamente o consumo de pescados; a garantia da segurança alimentar da população, com atenção especial para as comunidades que vivem e trabalham do mar e do mangue, pescadoras e pescadores; o envolvimento do Conselho Nacional de Saúde e dos Conselhos de Saúde dos estados afetados, onde estão presentes trabalhadores de saúde, representantes dos movimentos sociais e de governo; implementar estudos de monitoramento de longo prazo na população exposta; e informar à população sobre a não exposição ao óleo bruto, ou áreas contaminadas (como areia da praia), além de gestantes, crianças e mulheres em fase reprodutiva. Há também a necessidade de que os órgãos ambientais instituam ação e orientem a população sobre o manejo adequado e o descarte dos resíduos do material contaminado, de acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos.

Óleo

O óleo vazado (petróleo) é formado por uma mistura complexa de hidrocarbonetos – um composto químico constituído por átomos de carbono e de hidrogênio, associada a pequenas quantidades de nitrogênio, enxofre e oxigênio. O petróleo se apresenta na natureza sob forma gasosa, líquida ou sólida. Entre os hidrocarbonetos, está o benzeno, que é cancerígeno. A contaminação pelas substâncias tóxicas pode ocorrer por sua ingestão, inalação ou absorção pela pele.

A exposição a esses produtos poderá provocar irritações na pele, rash cutâneo, queimação e inchaço; sintomas respiratórios, cefaleia e náusea; dores abdominais, vômito e diarreia. O efeito mais temido de longo prazo é a ocorrência de câncer, em especial alguns tipos de leucemia. Os pesquisadores da Fiocruz alertam que a exposição a esse produto deve ser reduzida ao mínimo. Quem chegar perto deve usar roupas protetoras e depois descartá-las de forma adequada.

Fonte: Fiocruz
Publicado em 05/11/2019

Pesquisa retrata contribuições e desafios de laboratórios públicos no país

CNS participou do lançamento, debatendo o abastecimento da rede SUS e o risco da extinção de laboratórios farmacêuticos oficiais.

 

 

Os laboratórios farmacêuticos oficiais são responsáveis por grandes contribuições à saúde do país, mas precisam ser fortalecidos para dar continuidade ao trabalho de vanguarda que já realizam e atender às novas demandas da sociedade. É o que ficou constatado em pesquisa inédita realizada pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF), em parceria com a Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil (Alfob). No lançamento, ocorrido nesta terça (29/10), em Brasília, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) falou sobre o risco da extinção de laboratórios farmacêuticos oficiais.

A publicação traz o diagnóstico da rede de 18 unidades existentes no país. Elas são as principais responsáveis por fornecer medicamentos e outros produtos para o Sistema Único de Saúde (SUS). Lenise Garcia, conselheira nacional de saúde representante da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), lembrou que a questão do abastecimento da rede SUS e o risco da extinção de laboratórios farmacêuticos oficiais foram discutidos em eventos realizados pelo conselho, e geram preocupação em função do que isso pode representar para a saúde pública. Como exemplo, ela citou o caso do aumento da epidemia de sífilis no país, devido à falta de penicilina.

“Foi amplamente discutido ali que faltou penicilina porque ela é barata e não há interesse muitas vezes por parte dos laboratórios privados por essa produção. E isso destaca a relevância da produção pública. A gente vê o interesse muito grande da indústria farmacêutica de focar em medicamentos de alto custo que, às vezes, com uma grande produção propiciam um grande lucro e com isso se desinteressam por medicamentos que são extremamente importantes para a saúde da população”.

O levantamento também destaca aspectos históricos e a relevância dessas instituições para o atendimento à população, como pontua o presidente da Alfob, Artur Couto. “Na parte de produção de vacinas, muitas vezes o mercado privado não tem interesse em fazer. Um exemplo concreto é a vacina de febre amarela. Quando nós tivemos um surto de febre amarela, foi um laboratório público brasileiro que resolveu parar uma linha de produção, ampliar a capacidade de produção para febre amarela para poder disponibilizar o produto à população brasileira. Então os laboratórios públicos são fundamentais para a política de saúde pública no Brasil”.

Os laboratórios oficiais foram responsáveis pelo registro de 111 medicamentos, 18 vacinas, 15 soros e 33 produtos diversos para a saúde. Dos cerca de 8 mil colaboradores que atuam nessas instituições, 12% são mestres e doutores. A maioria do quadro é formada por farmacêuticos. O assessor da presidência do Conselho de Farmácia, Tarcísio Palhano, um dos responsáveis pela pesquisa, destaca a importância desses laboratórios para o aperfeiçoamento profissional no setor.

“Ficou mais do que claro que essas instituições são um belíssimo campo de estágio para estudantes de Farmácia e para farmacêuticos. Em vários deles já existe a oferta de estágio. Com essa nova perspectiva, isso seria institucionalizado, aumentado e incrementado, de modo que boa parte dos estudantes pudesse passar por esses laboratórios”.

Desafios

A publicação também traz desafios a serem superados. Dez instituições tiveram projetos cancelados e enfrentam problemas burocráticos. Para o secretário da Alfob e coordenador da pesquisa, Luiz Marinho, a falta de um marco regulatório traz prejuízos ao setor. “Isso acarreta principalmente uma visão distorcida dos tribunais de conta, principalmente nos processos que envolvem transferência de tecnologia com outros parceiros privados. E, como somos instituições públicas, temos que adquirir bens e serviços pela lei de licitações, isso nos atrasa muito no cumprimento das regras estabelecidas pela Anvisa, ou seja, a modernização do nosso parque às vezes fica atrasada dentro das exigências sanitárias porque nós não temos um caráter especial no país”.

A expectativa agora se volta para o Legislativo. A ideia é solucionar entraves do setor por meio da elaboração de uma legislação federal. O deputado e ex-ministro da Saúde Ricardo Barros, que é presidente da Frente Parlamentar da Indústria Pública de Medicamentos, esteve presente no evento de apresentação da pesquisa e falou sobre o desafio.

“Nós temos que conseguir implantar a política do complexo industrial da saúde, precisa instalar o Gecis, regulamentar o decreto que trata da política da saúde. Essas são as tarefas mais emergentes para que nós possamos efetivamente construir a possibilidade dos laboratórios terem investimento, contratos firmes de fornecimento com o ministério e poderem com essa segurança assumir a produção de medicamentos para doenças neglicenciadas e medicamentos órfãos que o Brasil precisa que sejam feitos e a indústria privada não quer fazer”.

A realização de um diagnóstico da situação dos laboratórios oficiais foi solicitada pelo Ministério da Saúde. Para a coordenadora do Complexo Industrial da Saúde do Ministério, a farmacêutica Mirna Oliveira, o material será importante para a tomada de decisão dos gestores públicos e para direcionar a formação dos futuros farmacêuticos.

“A gente precisa definir, identificar quais são as capacidades reais e potenciais de cada laboratório isoladamente e, a partir daí, apoiar esses laboratórios nas suas diferentes necessidades e demandas para que eles possam avançar. Além disso, investir na formação de profissionais e também otimizar recursos. Os laboratórios oficiais precisam trabalhar em rede, em conjunto, cada um dentro da sua expertise e das suas capacidades.

Acesse a pesquisa Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil