Em virtude do cenário de pandemia, devido ao Novo Coronavírus (Covid-19), o Conselho Nacional de Saúde (CNS) publica esta carta aberta voltada às autoridades brasileiras, em especial gestores e gestoras públicos, parlamentares e agentes responsáveis pela tomada de decisões emergenciais, que afetam diretamente a vida de todos os usuários(as) e trabalhadores(as) do Sistema Único de Saúde (SUS).
O objetivo é zelar pela Seguridade Social no nosso país e pela vida das pessoas, propondo encaminhamentos e medidas que podem atenuar o cenário que estamos enfrentando no país. Brasília, 23 de março de 2020
Excelentíssimos(as) senhores(as), Presidente da República, Ministros de Estado, Governadores(as), Prefeitos(as), Secretários(as) de Saúde e gestores(as) do SUS,
O CNS, enquanto órgão responsável pelo controle social no SUS, orienta que todos(as) os(as) referidos(as) nesta carta adotem medidas emergenciais, em todas as unidades da federação, para os próximos dois meses (abril e maio), visando conter a crise de Saúde que vivemos hoje e que pode se agravar nos próximos dias. Nesse sentido, é fundamental que sejam potencializadas ou desenvolvidas as seguintes ações:
1. Ampliar benefícios e programas sociais para populações mais vulneráveis e em risco pelo impacto da epidemia, no âmbito da Política Nacional de Assistência Social (Pnas) e do Sistema Único de Assistência Social (Suas), com a proposição de um programa de renda mínima mensal que amplie e desburocratize o acesso a programas sociais como o Bolsa Família. O objetivo é garantir a proteção a trabalhadores(as) do mercado informal, subempregados(as) e desempregados(as) ou qualquer outro segmento vulnerabilizado e em risco como;
- Pessoas em Situação de Rua;
- LGBTI+ e Pessoas Vivendo com HIV/Aids;
- Pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas;
- Prostitutas e Trabalhadores(as) do Sexo em geral;
- População negra e indígena;
- Catadores de Lixo e Cooperativas de Reciclagem;
- Populações Ribeirinhas e Marisqueiras(os)/pescadores(as) artesanais;
- Empregadas domésticas e diaristas;
- Artesãos(ãs) e camelôs;
- Dentre outros(as);
2. Apoiar trabalhadores(as) formais e/ou desempregados(as) com seguro desemprego, ampliando o tempo de seguro durante a crise e com renovação automática de benefícios em curso como auxílio-doença, benefícios previdenciários e assistenciais; desenvolver medidas em defesa do trabalho e da renda para cooperativas, instituições de economia solidária e trabalhadores precarizados e aplicativos; proibir despejo de pessoas que não consigam pagar aluguel; criar medidas alternativas para quem não possuir recursos para pagar contas fundamentais como energia e água;
3. Impedir que seja vedado o acesso à água e à energia a todos os cidadãos e cidadãs no Brasil em todo o período de crise; que sejam tomadas as providências para que o abastecimento de água ocorra em todas as regiões onde vivem pessoas sem acesso ao bem para que as mesmas possam exercer o direito de implementar as medidas sanitárias orientadas pelo Ministério da Saúde;
4. Buscar a aprovação de medidas de proteção econômica e financeira a pequenas empresas, microempreendedores(as) individuais e trabalhadores(as) da iniciativa autônoma, durante o período de expansão e manutenção da epidemia;
5. Isentar contas de água e energia à população de baixa renda, desenvolvendo programas locais de entrega gratuita de itens de higiene pessoal e distribuição gratuita de alimentos ou cestas-básicas, garantindo o acesso à alimentação saudável, em especial às populações que mais precisam, listadas no item 1 desta carta. Alimentos saudáveis precisam estar disponíveis de forma estável e permanente durante o período de crise e pós-crise até que as pessoas sejam capazes de assegurar a si mesmas e aos seus familiares; garantir apoio financeiro e de vigilância sanitária na manutenção de restaurantes populares; apoio a casas de repouso para pessoas idosas e outras instituições filantrópicas;
6. Garantir a defesa do controle social e público sobre a Saúde Suplementar; que as normas do Ministério da Saúde junto à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não contrariem os princípios do SUS; que sejam acionados todos os mecanismos legais para que os planos de saúde cumpram suas responsabilidades sanitárias; que seja priorizado o investimento de recursos públicos na rede pública de Saúde; que o atendimento da rede de planos de saúde seja, de fato, suplementar e financiada com recursos próprios. Se houver necessidade de investimento no setor privado, que seja via estatização.
7. Garantir proteção a todos(as) os(as) profissionais de Saúde e trabalhadores(as) de serviços administrativos, de limpeza hospitalar, sem distinção de categoria de vulnerabilidade, em diferentes locais que lidem com a área da Saúde e atendimento ao público, fornecendo Equipamentos de Proteção Individual (EPI) adequados e assegurados por contratação emergencial de compra junto às indústrias do setor hospitalar (luvas, máscaras, álcool gel, outros julgados necessários), em caráter de urgência para rápida tramitação de licitações, com vistas ao crescimento exponencial de casos no próximo período;
8. Garantir assistência especialmente planejada para regiões ou comunidades com situação grave de calamidade por causa da epidemia, com a convocação urgente de parceria dos setores públicos municipais e estaduais com o setor privado para adaptação de hotéis e outros lugares com espaços vazios ou disponíveis para atendimento aos pacientes (Ex: clubes esportivos, refeitórios, escolas, pavilhões de esporte cobertos, galpões ociosos, hospitais de campanha, militares, etc);
9. Contratar trabalhadores(as) da Saúde e de limpeza em regime emergencial nos locais que forem adaptados para o atendimento ampliado a população, onde ocorra apoio de locais cedidos temporariamente para as Secretarias de Saúde;
10. Solicitar audiências (com restrição de pessoas) e formalizar documentos com manifestação de “Pedido de Urgência” para obter apoio do Legislativo e do Judiciário diante da necessidade de imediata revogação da Emenda Constitucional 95/2016.
11. Disponibilizar financiamento adequado para instituições de pesquisa relacionadas aos diversos aspectos da epidemia, com imediato planejamento de linhas de investimento (curto e médio prazo) para àquelas com projetos na área da Saúde pública;
12. Criar ou incluir em Gabinete de Crises Emergenciais do Ministério da Saúde, órgãos e instituições públicas como o CNS, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), Associação Brasileira de Economia de Saúde (Abres), Associação Brasileira Rede Unida, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Associação Paulista de Saúde Pública (APSP) e Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência (SBPC), representações de Universidades Públicas com excelência em pesquisa na Saúde, Movimento Popular de Saúde (Mops), dentre outros, para construção de apoio diante da necessidade de diálogo social amplificado, incorporando as experiências e know-how do controle social e dos movimentos sociais e acadêmicos numa resposta comunitária à epidemia no país;
13. Apoiar os serviços de saúde, nos diferentes níveis de complexidade (ABS – MAC e AC), com número adequado de profissionais de Saúde formados (com registro profissional de graduação) e demais trabalhadores(as) (de limpeza, segurança, administrativos, entre outros), todos(as) devidamente providos(as) de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), bem como de aparelhos, instrumentos, insumos e medicamentos para o tratamento de pacientes e enfrentamento da Covid-19.
14. Incentivar a racionalização das ações em Saúde sem paralisar, buscando aliar esforços do atendimento ambulatorial (especialidades, etc) aos mais complexos, sempre disponibilizando recursos e servidores(as) para unidades de atendimento imediato e triagem (Ex: Upas), inclusive profissionais da área de Saúde das forças militares, como hospitais de campanha em locais de difícil acesso ou maior emergência da epidemia;
15. Garantir que qualquer medida de restrição de locomoção de pessoas, mesmo em benefício da necessidade de Saúde pública, não viole os direitos humanos fundamentais ou direitos civis, sem ampla discussão com órgãos ligados à Organização das Nações Unidas (ONU). Trabalhadores(as) de setores essenciais, pessoas que necessitem de atendimento em Saúde e pessoas que necessitem comprar alimentos precisam ter a liberdade de ir e vir garantida. O objetivo é zelar pela integridade física e mental dos cidadãos e cidadãs brasileiros, buscando também ações específicas e sensíveis à realidade de pessoas em regime carcerário ou cumprindo medidas socioeducativas, dentre outras populações vulneráveis.
Conselho Nacional de Saúde
Confira a carta aberta do CNS às autoridades brasileiras
Publicado em 24/03/2020
“Trinta dias é muito tempo, as vidas não podem esperar”, afirma presidente do CNS
A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, pediu nesta sexta-feira (20/03), informações ao Poder Executivo da União sobre os efeitos da Emenda Constitucional (EC) 95/2016 nas necessidades decorrentes da pandemia provocada pelo novo coronavírus. A atitude pode ser vista como uma resposta aos alertas de várias entidades, dentre elas o Conselho Nacional de Saúde (CNS), sobre os impactos da falta de financiamento adequado ao Sistema Único de Saúde (SUS) neste momento. No entanto, o prazo de trinta dias estabelecido pela magistrada para uma resposta é preocupante, segundo CNS.
O Conselho tem atuado fortemente pela revogação imediata da Emenda Constitucional 95/2016 porque não é possível combater os impactos do novo coronavírus sem investimentos na Saúde. Conforme afirmou o presidente do Conselho, Fernando Pigatto, se o SUS não estivesse fragilizado, não estaríamos com tantas dificuldades neste momento de pandemia.
“Trinta dias é muito tempo, as vidas não podem esperar, a EC da morte tem que acabar!”, destaca Pigatto, afirmando que o Conselho estudará medidas jurídicas para que o prazo seja menor. O CNS também fará contato para que o Legislativo tome uma posição diante da situação.
A EC 95/2016, retirou verba do SUS, congelando investimentos até 2036. A capacidade danosa que ela gera à população brasileira levou diversos especialistas e defensores do SUS a batizarem a mudança constitucional de “EC da morte”.
Por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), Rosa Weber pede que os Ministérios da Saúde e da Economia, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e o CNS respondam uma série de questionamentos sobre as mudanças provocadas pela emenda do teto de gastos. A resposta do CNS será enviada já no início da próxima semana.
Os números debatidos na Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento do CNS (Cofin) apontam um prejuízo ao SUS, de 2018 a 2020, de R$ 22,48 bilhões. Ao longo de duas décadas, os danos são estimados em R$ 400 bilhões a menos para os cofres públicos.
Inconstitucionalidade da EC
No Supremo Tribunal Federal (STF) tramita uma ação de inconstitucionalidade, apoiada pelo CNS, com ampla mobilização popular contra a EC 95/2016. A ação pede a suspensão imediata dos efeitos de parte da EC 95/2016 por meio de liminar, para que o teto de gastos não seja aplicado à área de Saúde pública em razão da pandemia da doença causada pelo coronavírus (Covid-19).
Fortalecimento da mobilização online
O contexto atual pede a intensificação da mobilização online pela revogação da EC 95. O CNS convoca todas e todos a publicarem vídeos em apoio ao SUS e contra a mudança constitucional que vem agravando a situação da Saúde pública no Brasil. O Conselho também convoca para que a população assine o abaixo-assinado contra o congelamento de investimentos em Saúde.
Entidades protocolam petição no STF para suspender Teto de Gastos
Organizações alegam que a pandemia chega ao país em um contexto de extrema fragilização das políticas sociais e de pauperização da população e que seus efeitos vão ultrapassar 2020. As organizações destacam que as políticas sociais vivem hoje um quadro de profunda deterioração com os cortes de financiamento ao mesmo tempo em que a demanda por atendimento cresce com o aumento acelerado da pobreza e da extrema pobreza decorrente da crise econômica e da precarização das relações de trabalho.
Acesse aqui a íntegra da Petição Entidades de direitos humanos protocolaram ontem à noite (18/3) no Supremo Federal Tribunal uma petição de suspensão imediata da Emenda Constitucional 95, conhecida como Teto dos Gastos. As entidades afirmam que a pandemia pode levar o sistema de saúde e outras políticas sociais ao colapso e que os efeitos vão ultrapassar 2020. Alegam que somente a complementação de recursos por meio de créditos extraordinários não conseguirá restabelecer a condição dos sistemas públicos de atender a população afetada. “Os efeitos são de médio e longo prazo e os créditos extraordinários serão insuficientes para enfrentar tamanha fragilidade do sistema”, afirma Eloisa Machado, advogada do grupo de entidades, vinculada ao Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – CADHu.
Além da suspensão, a petição destaca a importância de um plano de ação emergencial de enfrentamento da pandemia com ações de saúde, segurança alimentar, assistência social e educação, que inclua a garantia de bolsa alimentação escolar nacional para estudantes que ficarão sem a merenda escolar no período de interrupção das aulas por causa da pandemia de COVID-19.
EC 95: a destruição de um país
Aprovada em dezembro de 2016, a Emenda Constitucional (EC) 95 estabeleceu a redução do gasto público em educação, saúde, assistência social e em outras políticas sociais por vinte anos, aprofundando a miséria, acentuando as 2
desigualdades sociais do país e, em especial, comprometendo ainda mais as condições de sobrevivência da população, sobretudo da população pobre e negra. A EC 95 é objeto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 5633, 5643, 5655, 5658, 5715 e 5743 que solicitam sua revogação imediata pelo Supremo Tribunal Federal. Todas essas ADIs foram distribuídas à Ministra Rosa Weber.
Estudos da Plataforma DHESCA; do Inesc/Oxfam/Centro para os Direitos Econômicos e Sociais; e do IPEA, entre muitos outros, vêm demonstrando o profundo impacto da Emenda em várias áreas sociais, acarretando grandes retrocessos na garantia de direitos.
Em agosto de 2018, sete Relatores da ONU lançaram pronunciamento internacional conjunto denunciando os efeitos sociais da Emenda Constitucional 95 e o fato do Brasil ser o único país do mundo a ter constitucionalizado a austeridade como política econômica de longo prazo.
Ainda em 2018, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos realizou, depois de mais de duas décadas, uma visita ao Brasil para averiguar a situação dos direitos humanos. O relatório preliminar da CIDH manifestou grande preocupação com o fato de o país ter uma política fiscal que desconhece “o princípio de progressividade e não regressividade em matéria de direitos econômicos, sociais e ambientais”.
Criticada no país e internacionalmente como extremamente ineficaz e destruidora das condições de vida da população, inclusive por organismos internacionais conservadores como o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), a política econômica de austeridade tem como base o entendimento de que há somente um caminho para um país sair da crise econômica: cortar gastos sociais, atacar direitos constitucionais e privatizar bens públicos.
Esse caminho cria um círculo vicioso que desaquece a economia, aumenta o desemprego, diminui a arrecadação de impostos, concentra a renda ainda mais na mão de poucos, destrói setores produtivos da economia nacional e viola – de forma ampla e extremamente perversa – os direitos humanos da população, com impacto terrível nos setores mais pobres. Ao contrário: os investimentos sociais diminuem a desigualdade e são motor de desenvolvimento econômico com justiça social. Por isso, em vários países, mesmo em períodos de crise, há aumento desse investimento, considerada uma medida anticíclica.
Entidades pedem ao Supremo suspensão do teto de gasto para país enfrentar pandemia
Entidades de direitos humanos ingressaram nesta terça-feira (17) no STF (Supremo Tribunal Federal) com petição para suspensão imediata da emenda constitucional que estipulou em 2016 um teto de gastos federais por 20 anos. O pedido afirma que a pandemia de coronavírus pode levar o sistema de saúde e outras políticas sociais ao colapso, com efeitos para depois de 2020.
A situação exigirá do país a complementação de recursos e, segundo a petição, a emenda do teto é um “entrave à reação à pandemia”.
A iniciativa partiu de organizações como Ação Educativa, Conectas Direitos Humanos e Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
As entidades são qualificadas como parte interessada (amici curiae, que significa amigos da corte, em latim) em três ADIs (ações diretas de inconstitucionalidade) que já tramitam no Supremo contra a emenda.
A peça é assinada pela advogada Eloísa Machado de Almeida, professora de direito da FGV-SP e membro do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, que representa as mais de 25 organizações da sociedade civil.
Especialistas afirmam que a regra que limita o crescimento das despesas federais não impede que o governo gaste mais em ações de combate ao coronavírus, pois o dinheiro para casos de calamidade pública fica fora da restrição.
No entanto, parte deles defende que o mecanismo seja temporariamente suspenso para que a equipe do presidente Jair Bolsonaro adote as medidas necessárias.
A petição levada ao STF nesta terça argumenta que o teto de gastos alterou a lógica constitucional: esforços pautados para manter a necessária melhoria e expansão das políticas de saúde e educação transformaram-se em um cenário de “reivindicações para sua mera existência”.
Agora, diz o texto, uma emergência de saúde pública se sobrepõe por causa do coronavírus.
As entidades ressaltam as preocupações com o financiamento adequado do sistema de saúde, mas apontam para a emergência de manter e ampliar políticas sociais diante da pandemia.
“O resultado do subfinanciamento das políticas de saúde, que já era grave, toma proporções catastróficas em um cenário de crise de saúde, com a pandemia de coronavírus”, diz o texto.
Entretanto, argumenta a petição, não basta olhar somente para as políticas de saúde.
“Toda a estrutura constitucional de proteção social tem de ser e estar fortalecida, já que a desigualdade é também um fator de agravamento do impacto da doença.”
O texto chama a atenção ainda para o “potencial de destruição” com relação à população em situação de rua e em assentamentos precários.
Cita a necessidade de ampliação da testagem e de leitos de terapia intensiva, mas também ações emergenciais na área de assistência social e de segurança alimentar, “com a expansão e fortalecimento urgente dos programas de rendas mínima”, como o Bolsa Família, BPC (benefício assistencial para idosos carentes e deficientes) e de outros como o Bolsa Alimentação Escolar.
Até esta terça, 23 redes estaduais de ensino já haviam suspendido as aulas, segundo balanço do Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação).
“As merendas ocupam função importante no dia a dia de muitos alunos”, diz o texto. “Para essas crianças, períodos sem aulas é equivalente à fome.”
Aprovado pelo Congresso em 2016, na gestão do ex-presidente Michel Temer (MDB), o limite de crescimento das despesas públicas foi incluído na Constituição e impede a expansão dos gastos acima da inflação. Qualquer alteração nessa regra depende de amplo apoio na Câmara e no Senado.
A restrição ao aumento dos gastos tem algumas exceções. Uma delas é o envio de dinheiro para despesas imprevisíveis e urgentes, como em caso de guerra, comoção interna ou calamidade pública.
O governo, portanto, pode usar esse dispositivo para ampliar os recursos em ações de contenção das transmissões do vírus e tratamento de pacientes infectados.
Fonte: Folha de S.Paulo
Publicado em 19/03/2020
Defensores da saúde pública, uni-vos!, por Jandira Feghali*
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi construído a partir de um debate intenso com a sociedade. Houve um tempo em que os que não tinham carteira assinada eram tratados como indigentes e lhes era negado o acesso aos serviços públicos de saúde. Inscrever a saúde como direito de todos e dever do Estado na Constituição, universalizando o acesso, foi uma enorme conquista. Responsavelmente foram garantidas fontes plurais para os objetivos estabelecidos.
Começou a se travar, a partir daí, uma luta de resistência e avanços, a depender do governo que estava no comando da nação. Desde tentativa de desconstitucionalização do SUS, até profundas asfixias financeiras.
Em um intervalo de três décadas, passamos de um aporte de 30% dos recursos das contribuições sociais para vinculações de recursos mínimos e, hoje, temos o absurdo limite “constitucional” que estabelece um teto de gastos para custeio e investimento, apenas incrementado pela inflação do ano anterior. Nenhuma ampliação de serviços, contratação de profissionais, produção de medicamentos é possível sem retirar recursos de outras políticas essenciais. É a famosa Emenda Constitucional 95, que só não coloca teto para gastos financeiros, ou seja, para a dívida pública. Projeções indicam que a participação dos investimentos em relação ao PIB, com as limitações da emenda do teto, cairão 4 pontos percentuais até 2026. Na saúde, as perdas somarão, apenas em 2020, R$ 14 bilhões.
Mais preocupante, no entanto, é a mais nova investida contra o direito à saúde, na medida em que, depois da reforma da previdência, avançam para o desmonte do serviço público com propostas de reforma administrativa e do Plano Mais Brasil, apresentado por meio de três Propostas de Emendas à Constituição (PECs 186, 187 e 188). Estas tratam de situações de emergência fiscal e alterações em fundos constitucionais e no pacto federativo. Um verdadeiro ataque a conquistas de diversas áreas, que levará a forte redução dos serviços públicos. Caso sejam aprovadas farão com que a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, reduzam despesas obrigatórias quando forem atingidos determinados indicadores. Na prática, se a economia vai mal o corte recai com força em áreas sociais cada vez mais necessárias nesses momentos de crise.
E mais: as PECs promoverão a extinção imediata da vinculação de recursos, uma conquista para a saúde e educação.
Mas, o ataque à saúde pública não para por aí. Ainda se propõe extinguir o fundo social e a vinculação dos royalties à educação e saúde. As perdas serão inestimáveis.
E o pano de fundo a justificar o verdadeiro descaso com as políticas públicas atende pelo nome de “emergência fiscal”. Mas, não aceitam que os dados apresentados como base sejam questionados, mesmo que estes indiquem que não estamos em emergência fiscal! O discurso se presta a passar uma imagem de um governo responsável com as contas públicas, mas esconde sua real intenção: minguar os investimentos em políticas públicas para beneficiar o sistema financeiro. Serão R$ 219 bi desviados para pagamento aos bancos. É disso que se trata e isso precisamos combater.
A asfixia financeira do SUS trará de volta não apenas as epidemias e desassistência, como o tempo em que acesso à “saúde pública” era para poucos. Os prejuízos devem ser expostos. A sociedade precisa se mobilizar. Ainda mais quando temos uma pandemia de Coronavírus anunciada a combater.
Saúde não é mercadoria.
Em defesa da vida, uni-vos.*Jandira Feghali é médica, deputada federal pelo PCdoB/RJ
Fonte: Midia Ninja
Publicado em 12/03/2020
Semana da Saúde 2020: CNS propõe que conselhos intensifiquem ações contra o desmonte do SUS
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) propõe que os conselhos estaduais e municipais intensifiquem as ações contra o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS). A ideia é realizar aulas em praças públicas, debates, audiências, seminários ou rodas de conversa durante a Semana da Saúde 2020, que acontecerá de 2 a 7 de abril. A estimativa é que mais de 100 mil pessoas se mobilizem contra o desfinanciamento do SUS em todo o país.
A Semana da Saúde 2020, que tem como tema “Saúde é Direito”, pretende mobilizar mais de 100 mil pessoas nas ruas, em todos os estados do país. O objetivo é dialogar com a população sobre os impactos do desfinanciamento do SUS, que tem se agravado a cada dia, em especial pela implementação da Emenda Constitucional (EC) 95/2016, que congelou os investimentos em políticas sociais até 2036.
A mobilização também é contra o Plano Mais Brasil, que tramita no Congresso Nacional com as Propostas de Emendas Constitucionais (PEC) 186, 187 e 188, que podem agravar ainda mais o cenário para as políticas sociais, em especial para a Saúde. Segundo estudo realizado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), as limitações de financiamento impostas só pela EC 95, podem resultar em cerca de 20 mil mortes e 124 mil hospitalizações na infância.
Com a emenda, a Comissão Intersetorial de Orçamento e Financiamento (Cofin) do CNS estima que o prejuízo à Saúde pública possa chegar a R$ 400 bilhões em duas décadas. Entre as atividades sugeridas pelo CNS para a semana está a coleta de assinaturas do abaixo-assinado pela revogação da EC 95.
Assine o abaixo assinado pela revogação da EC 95
Além do desfinanciamento, é fundamental abordar com os participantes das atividades a importância do SUS, presente no dia a dia de todos os brasileiros e brasileiras, como nas campanhas de vacinação, na fiscalização de alimentos em bares e restaurantes, na qualidade da água, no atendimento do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), na realização de transplantes e diversos outros serviços.
O SUS também é o responsável por diversas ações de promoção e proteção à Saúde, como o controle de doenças e epidemias como o novo Coronavírus (Covid-19), por exemplo. Desde que apareceram os primeiros casos do vírus, foi instalado no país um centro de operações de emergência para monitorar a doença. Além disso, diversas instituições ligadas ao SUS realizaram uma série de ações de referência em nove países das Américas.
Rede em defesa do SUS
Promova e participe das atividades da Semana da Saúde 2020 e ajude a fortalecer a rede em defesa do SUS e da saúde pública como direito a toda a população. O CNS vai divulgar nas redes sociais as imagens da mobilização. Encaminhe para o comunicacns@gmail.com fotos das atividades, com nome da cidade, estado e data de realização.
Dia Mundial da Saúde
O Dia Mundial da Saúde é comemorado em 7 de abril. A data coincide com a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1948. O conceito de Saúde definido pela OMS é amplo e não se restringe apenas a ausência de enfermidades, sendo: “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afeções e enfermidades”.
Fonte: ASCOM CNS
Publicado em 11/03/2020
EC 95 – O vírus que está matando o SUS, por Ronald dos Santos
O teto de gastos, que tirou cerca de 20 bilhões de reais somente em 2019 do Sistema Único de Saúde , está promovendo a maior desestruturação da saúde pública no Brasil.
Por Ronald Ferreira dos Santos* Num momento de alerta internacional por conta do Coronavírus e de grave crise econômica, onde um enorme contingente de pessoas está desempregada ou trabalhando de forma precária, perdendo o atendimento no sistema de saúde suplementar, as consequência da Emenda Constitucional 95 é o adoecimento e a morte de milhares de pessoas, é a redução drástica da capacidade das estruturas públicas de seguridade social e saúde de desenvolverem ações e políticas de prevenções.
Desde muito antes da aprovação do teto de gastos, as organizações, ativistas e pesquisadores da área da saúde já alertavam para a situação de subfinanciamento do SUS. Apesar de ser o maior programa de saúde pública do mundo, a demanda — desde a atenção básica até procedimentos especializados — cresce em descompasso com a capacidade de se ampliar as estruturas de atendimento.
Medidas importantes foram adotadas para procurar enfrentar essa situação: a política de atenção básica e a estratégia saúde da família, o Programa Mais Médicos, o Farmácia Popular, a Política Nacional de Assistência Farmacêutica, entre outras que somadas buscavam ampliar o acesso aos serviços de saúde para a população brasileira.
Contudo, desde o segundo semestre de 2016, essas políticas todas vem sendo desmontadas e descontinuadas. A aprovação do teto de gastos foi o prego que faltava martelar no caixão dessas políticas.
Ao lado disso, uma desregulamentação das políticas vem sendo construída para dar ainda mais poder ao mercado da vida, ou aos mercadores da morte: tentativas de modificar legislações, como no caso da Lei 13021/2014, para acabar com a obrigatoriedade da presença do farmacêutico nas farmácias e liberar a venda de medicamentos me qualquer tipo de estabelecimento comercial. A redução do papel da Anvisa no processo de autorização da circulação de medicamentos – fator importante para a segurança da saúde da população, políticas de ataque aos laboratórios públicos, etc.
A alternativa que o Estado oferece à população diante de tamanho desmonte é o plano de saúde popular, é pagar para ter acesso a um serviço precário. Contudo, tal alternativa não cabe no orçamento do cidadão, uma vez que explode o número de trabalhadores informais — sem registro e sem qualquer benefício incorporado ao seu trabalho. Isso para não falar no desemprego que está na ordem de 13% da população brasileira.
O resultado disso é o retorno de uma epidemia de Sarampo, o aumento dos números de casos da Dengue e de doenças negligenciadas no Brasil. Também a falta de medicamentos básicos em postos de saúde, queda na cobertura de vacinação, aumento da mortalidade materna e a ausência de médicos em muitas regiões do país.
O modelo econômico do atual governo é totalmente incompatível com uma política de caráter democrático, universal e integral como o SUS. Por isso, a sociedade brasileira precisa se mobilizar para exigir que se reestabeleça uma política que coloque a saúde como prioridade. O momento é mais que oportuno: vivemos o contexto de uma pandemia que pode ter consequências trágicas.
Dia 07 de abril é o Dia Mundial da Saúde. Temos que mostrar de forma inequívoca que é preciso revogar a Emenda Constitucional 95, é urgente recompor os recursos do SUS.
*Ronald Ferreira dos Santos é farmacêutico, presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos e ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde.
Publicado em 11/03/2020
Orçamento da Saúde perdeu R$ 20 bilhões em 2019
A receita da União cresceu 27% desde que a Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos) entrou em vigor, mas não houve aumento compatível no orçamento da Saúde. Só em 2019,o orçamento da Saúde perdeu R$ 20 bilhões.
A Emenda Constitucional (EC) 95 implementada durante o governo de Michel Temer (MDB) e mantida pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido) prometeu congelar os recursos do orçamento da união para despesas básicas. Entretanto, como previsto por uma grande parte da sociedade civil, a promessa caiu por terra e, na verdade, os recursos da Saúde estão caindo cada vez mais.
A denúncia é do pesquisador de economia da saúde e consultor do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Francisco Funcia, que analisou dados do orçamento da União aos quais o CNS teve acesso.
Funcia atesta: a receita da Saúde vem em “queda livre” desde a implementação da emenda.
A EC 95 – do Teto de Gastos – representou, na prática, a desvinculação do gasto mínimo 15% da receita da União com a Saúde. Isso ocorre porque os gastos do governo foram limitados ao valor utilizado ano anterior, reajustado somente pela inflação acumulada.
Por conta disso, aponta o pesquisador, mesmo que a receita da União tenha crescido, em 2019, cerca de 27% em relação a 2016, não houve um crescimento compatível na Saúde. Com a EC 95, o recurso destinado à pasta será sempre aquele valor de 2017 somado à inflação.
“Quando eu comparo o quanto da receita está sendo alocada para a saúde eu percebo que cada ano que passa está alocando menos. Eu estou, inclusive, voltando aos percentuais do fim da década passada”, explica Funcia.
Enquanto em 2017, quando a emenda passou a vigorar, os gastos com os serviços públicos de saúde representavam 15,77% da arrecadação da União, em 2019, os recursos destinados à área representaram 13,54%.
R$ 20 bilhões perdidos
Se em 2019, o governo tivesse aplicado o mesmo patamar que aplicou em 2017, 15% da receita corrente líquida de cada ano, a Saúde teria um orçamento de cerca de R$ 142,8 bilhões em 2019 – e não R$ 122,6 bilhões aplicados. Ou seja, um encolhimento de R$ 20,19 bilhões nos recursos saúde da população.
Segundo Funcia, a projeção permite afirmar que a Emenda Constitucional 95 não preserva os recursos da saúde, como o argumento utilizado pelo governo Temer à época. Ele explica que e medida não leva “em consideração que as necessidades de saúde da população crescem e significa não realocar a célula do crescimento da receita para atender estas necessidades crescentes de saúde da população”.
Emenda da Morte
O economista e vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres), Carlos Ocke, endossa a análise de que o gasto público está diminuindo e explica que desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), pela Constituição de 1988, há um “subfinanciamento” ao orçamento da pasta.
Ele alerta para a redução progressiva da chamada renda per capita da saúde, o valor aplicado em um ano pelo Estado na saúde da população dividido pelo número de cidadãos. O valor investido por pessoa, que chegou a R$ 595 em 2014, passou a ser de R$ 555, em 2020. “Em vez de crescer o gasto público federal per capita em saúde, tem-se retirado investimentos, considerando que a população está crescendo e que a população está envelhecendo e, portanto, existe uma curva crescente dos custos de saúde associados ao envelhecimento.”
Segundo Ocke a Emenda Constitucional 95 representou uma descontinuidade desse padrão para pior e está provocando o “estrangulamento e sucateamento do SUS”, além de impactar diretamente a distribuição de renda.
“Nessa perspectiva de redução gastos públicos e de retirada do Estado na economia e na redistribuição de renda, que é disso que se trata as políticas sociais universais cumprem esse papel. Você aumenta o gasto privado das famílias e acelera o movimento de privatização simultaneamente a uma queda do gasto público e simultaneamente a uma piora do quadro epidemiológico. Então você vê claramente que o bem-estar social das famílias e dos trabalhadores piorou, você pode verificar isso quando você olha o aumento da pobreza e o próprio aumento da desigualdade.”
O economista ressalta que, na prática, essa política aumentou a desigualdade do acesso à saúde, piorou as condições de oferta e qualidade do SUS. “A gente vê isso nos dados do aumento de quadro de dengue e no próprio retorno do sarampo talvez, no aumento da mortalidade infantil e materna, na mortalidade precoce em doenças crônicas em especial no câncer, no retorno de doenças preveníveis e a queda do nível de vacinação”, avalia.
Sem perspectivas
Ocke avisa que a tendência para 2020 é a situação da saúde e da população brasileira piorar ainda mais, dado que tramitam no Congresso Nacional novas Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que alteram a regulação dos gastos públicos da União, estados e municípios de diferentes maneiras.
As PECs foram encaminhadas pelo governo Bolsonaro em novembro do ano passado e são englobadas no que a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, chama de “Plano Mais Brasil”: PEC Emergencial, PEC dos Fundos Públicos e PEC do Pacto Federativo.
A primeira é a PEC 186/2019, trata da possibilidade de redução compulsória de salários dos servidores públicos em até 25%, acompanhada da redução equivalente da jornada de trabalho. A segunda, PEC 187/2019, autoriza o governo a extinguir um conjunto de fundos públicos atualmente existentes e permite a utilização dos saldos bilionários existentes em tais fundos pelo comando econômico. E a terceira PEC é a 188/2019, a principal das três, prevê, entre outras medidas, a unificação dos gastos mínimos obrigatórios para saúde e educação.
“Esse quadro de austeridade fiscal que já era grave e já era de sucateamento, caso as PECs sejam aprovadas caracterizando, sem exagero do prefixo, uma política de hiper austeridade fiscal, você piora ainda mais esse quadro. É muito grave”, prevê o economista.
Fonte: Brasil de Fato
Publicado em 02/03/2020
Um protesto tímido pela progressividade do Fundeb e do Bolsa Família
Fundeb e Bolsa Família são eixos civilizatórios em políticas públicas essenciais (educação e assistência social) que não podem ser amesquinhados, revogados, descontinuados ou simplesmente asfixiados fiscalmente. Sua evolução normativa reclama sempre progressividade, o que, por óbvio, passa por custeio suficiente ao atendimento das obrigações legais já definidas.
Por Élida Graziane Pinto*
O poema “Consolo na Praia”[1], de Carlos Drummond de Andrade, tem me reavivado alguma esperança sempre que a realidade dura soa como iniquidade intransponível. Particularmente me ampara a seguinte estrofe:
“A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.”Nesta terça-feira de Carnaval, acumulamos o som e as imagens dos “protestos [nada] tímidos” contra a desigualdade brasileira, que foram feitos nos desfiles de diversas escolas de samba[2]. Ainda neste fevereiro tão poético que já caminha para o fim, vale lembrar a premiação do Oscar 2020[3], que também denunciara a perda da promessa de bem-estar social como nosso maior conflito contemporâneo (a repetir tensões dignas do final do século XIX)…
O poeta nos avisa que “a injustiça não se resolve” sozinha, até porque o “mundo errado” se reproduz em meio a novas tramas juridicamente naturalizadas de extrema desigualdade político-econômica. Descobrir quem são os parasitas[4] (para além da propaganda oficial) é um desafio colossal e diuturno diante do severo bombardeio do nosso ordenamento constitucional.
A distribuição de direitos e deveres de custeio guarda severo conflito, sobretudo em tempos de ajuste fiscal seletivo e iníquo[5] que nega a efetiva aplicação do princípio da função social da propriedade. Cinismo e fisiologismo fiscal não são fantasias de carnaval, muito pelo contrário: são a contundente face real das escolhas orçamentárias brasileiras. Que outro nome dar à escolha de constranger a fila de acesso ao Programa Bolsa Família (PBF)[6] ou à estratégia de colocar em risco a renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb)[7]? Rodrigo Zeidan bem definiu como sordidez[8]… Francisco Menezes vai mais longe e grita seu protesto contra essa “fábrica de fazer pobres”[9]:
“A assistência do Estado àqueles mais necessitados vai se reduzindo. Não só o Bolsa Família, mas outros programas que formavam o chamado “colchão de proteção social” vão sendo esvaziados ou extintos. […]
Então, que se assuma sem subterfúgios. Não se trata apenas da crise, mas das escolhas feitas para enfrentá-la. E essas escolhas, como os dados também mostram, aprofundaram as diversas desigualdades no país e, por conseqüência, o empobrecimento de parte de nossa população. Enquanto não for revisto o caminho adotado, os indicadores não irão alterar sua rota, e a fábrica que produz pobreza e extrema pobreza continuará a funcionar celeremente.”
Enquanto isso persistem impasses consideráveis na esfera tributária (matriz regressiva agravada pelas renúncias fiscais), na concentração bancária[10], na ausência de limites para a dívida pública federal (a despeito dos arts. 48, XIV e 52, VI da CF, do art. 30 da LRF e do Acórdão TCU 1084/2018), nos reajustes salariais e benefícios previdenciários privativos dos militares[11], no caríssimo “overnight das operações compromissadas”[12], entre outros.
Nosso orçamento de castas reproduz e amplifica a desigualdade. Os que não conseguem se defender como as crianças e jovens da educação básica obrigatória e as famílias em condições de pobreza e extrema pobreza são constrangidos pela tese falaciosa de que não há como ampliar o custeio do Fundeb e do Bolsa Família.
Eis aqui o ponto de onde timidamente ergo minha voz e registro um protesto adicional: não cabe a qualquer governante de ocasião constranger o custeio de ambos, negando-lhes progressividade e até colocando em risco sua continuidade, sob pena de afronta aos princípios do mínimo existencial, vedação de retrocesso e vedação de proteção insuficiente.
A estatura jurídica do Fundeb e do Bolsa Família, na forma do Anexo III da LDO federal vigente (Lei 13.898/2019)[13], é a de despesa amparada do contingenciamento, por envolverem, ambos fundo e programa, um plexo de obrigações constitucionais e legais de fazer inadiáveis e incomprimíveis.
A esse respeito, basta clara é a redação do §2º do art. 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal: “Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias.”
Fundeb e Bolsa Família são eixos civilizatórios em políticas públicas essenciais (educação e assistência social) que não podem ser amesquinhados, revogados, descontinuados ou simplesmente asfixiados fiscalmente. Sua evolução normativa reclama sempre progressividade, o que, por óbvio, passa por custeio suficiente ao atendimento das obrigações legais já definidas.
No âmbito do Fundeb, há evidente fraude interpretativa na omissão em regulamentar o custo-aluno qualidade inicial (CAQi) e o custo-aluno qualidade (CAQ), a que se referem as estratégias 7.21 e 20.6 a 20.8 da Lei 13.005/2014 (Plano Nacional de Educação), como já denunciado pelo TCU desde seu Acórdão 618/2014. Todo o debate sobre a insuficiente complementação federal ao Fundeb — reavivado na tramitação da PEC 15/2015 — tem como pano de fundo a pura e simples omissão da União em cumprir o artigo 206, VII e o artigo 214 da Constituição de 1988, bem como as citadas estratégias do PNE. A fraude fiscal em curso repercute na péssima qualidade da educação básica obrigatória ofertada às crianças e aos jovens brasileiros e merecia ser tratada na seara do dano moral coletivo, na forma do artigo 37, §6º da CF.
Por outro lado, a fila de acesso ao Bolsa Família configura, ao meu sentir, lesão a direito subjetivo equiparável ao benefício de prestação continuada (BPC). A concessão do Bolsa Família aos cidadãos que cumprem os requisitos de elegibilidade definidos na Lei 10.836/2004 não pode ser considerada uma escolha discricionária do gestor, mas sim ato vinculado de natureza jurídica equivalente ao benefício assistencial de que trata a Lei 8.742/1992 (LOAS).
Negar assistência a quem faz jus — na forma do que a lei já houver regulamentado — é ferir não só os princípios da dignidade da pessoal humana e do mínimo existencial, mas literalmente lesar direitos que podem ser demandados, na forma do artigo 5º, XXXV da Constituição brasileira. Deixar morrer na pobreza e extrema pobreza os cidadãos que têm direito ao PBF é também ato punível, no mínimo, na esfera do artigo 37, §6º da nossa Constituição.
Quando o artigo 9º, §2º da LRF fala em não serem objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, o comando fiscal ali embutido é ainda mais forte do que o Executivo normalmente lhe atribui. Não se trata apenas de não poder contingenciar a dotação correspondente, como também significa que não é possível deixar de suplementá-la, se necessário for.
Diante das injustiças desse mundo errado na seara fiscal, hoje ergo meu protesto tímido e grito rouca e angustiadamente: custeio progressivo do Fundeb e do Bolsa Família são obrigações constitucionais e legais!
Não lhes imponham uma inexistente limitação fiscal para frustrar sua eficácia e para ampliar sórdida e cinicamente a fábrica de fazer pobres e ignorantes em que nosso país vive desde sempre… Carlos Drummond de Andrade nos dá o consolo de que os protestos não devem parar diante das sombras. As injustiças precisam ser combatidas, por mais que o mundo siga sendo conduzido em trilhas erradas. Nossa obstinada poesia reside em denunciar a injustiça e exigir cumprimento resiliente do pacto constitucional de 1988.
[1]Disponível em https://www.letras.mus.br/carlos-drummond-de-andrade/460646/
[2] Como se pode ler em https://revistaforum.com.br/cultura/carnavalescos-colocam-carnaval-como-contraponto-a-forcas-reacionarias/ e https://oglobo.globo.com/rio/critica-politica-marca-safra-do-carnaval-2020-ouca-os-sambas-enredo-ja-escolhidos-24015914
[3] Como bem suscitado em https://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-desigualdade-no-oscar-24264628 e https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/opiniao/2020/02/13/internas_opiniao,827703/artigo-o-oscar-da-desigualdade.shtml
[4] Sobre o filme vencedor da premiação de melhor filme e outras no Oscar 2020, uma boa análise pode ser lida aqui “https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-parasita-de-quem/”. Sobre a comparação feita pelo Ministro da Economia, uma outra provocação digna de registro é a disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/marco-aurelio-nogueira/o-parasita-de-bong-joon-ho-e-o-de-paulo-guedes/
[5] Francisco Tavares e eu escrevemos a respeito em https://valor.globo.com/opiniao/coluna/em-busca-da-equidade-fiscal.ghtml
[6] Noticiado em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/02/bolsonaro-trava-bolsa-familia-em-cidades-pobres-e-fila-chega-a-1-milhao.shtml
[7] Como se pode ler em https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/12/18/plano-do-mec-para-fundeb-e-irresponsavel-diz-relatora.ghtml
[8] Em sua coluna publicada em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/rodrigo-zeidan/2020/02/sordidez-de-vilao-de-james-bond.shtml
[9] Em artigo publicado em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/02/a-fabrica-de-fazer-pobres.shtml
[10] Como se pode ler em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,grandes-demais-para-existir,70003201126 e https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/02/18/Como-a-concentra%C3%A7%C3%A3o-banc%C3%A1ria-afeta-o-PIB-brasileiro-segundo-este-estudo
[11] Algo noticiado em https://www.camara.leg.br/noticias/602197-reforma-da-aposentadoria-preve-reajuste-acima-de-40-para-alguns-militares/ e https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,com-apoio-politico-policiais-ja-pressionam-12-estados-por-reajuste-salarial,70003205177
[12] Como denunciado em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,e-preciso-acabar-com-o-overnight-do-bc-imp-,1632618
[13] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/Anexos/Anl13898-3.pdf
*Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Fonte: Conjur
Publicado em 26/02/2020
Emenda do teto de gastos faz SUS perder R$ 13,5 bilhões em 2019
A redução do orçamento se dá num contexto em que há piora recente da mortalidade infantil, aumento de quase 500% nos casos de dengue em 2019, retorno dos casos de sarampo e emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, para citar algumas questões urgentes.
por Bruno Moretti* e Ana Paula Sóter** Nos últimos anos, mais de 3 milhões de usuários deixaram os planos de saúde, aumentando a demanda pelo SUS. Há estimativas de que a inflação do setor, em 2019, foi de 17%. O envelhecimento populacional e a incorporação tecnológica levam mais pressão ao orçamento de saúde. Segundo pesquisa Datafolha em 2019, a saúde era o principal problema do país.
Como responder ao quadro acima esboçado, que combina aumento de custos e demanda da população por serviços de saúde? Aperfeiçoamento do funcionamento do SUS e ampliação do financiamento seriam os caminhos naturais. No entanto, o SUS vem sofrendo o impacto negativo da Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que limita o gasto federal primário à variação da inflação. Em outros termos, se o PIB tiver algum crescimento acima da inflação, a regra implica a redução das despesas em relação ao PIB. Estima-se que tal queda será de 4 p.p. de PIB até 2026.
Para assegurar a redução do gasto, o teto requer “paredes”, sobretudo para diminuir despesas obrigatórias, já que as discricionárias estão em um patamar que se aproxima da paralisia (shutdown) da máquina pública em 2021. Os benefícios represados pelo INSS estão aí para demonstrar. Agora mesmo, o Senado discute a PEC da Emergência Fiscal, que permite reduzir em até 25% a despesa de pessoal e a jornada de trabalho, afetando serviços públicos, proíbe a expansão do Bolsa Família e a valorização real do salário mínimo. Não se trata de emergência fiscal, e sim de ajuste ao teto de gastos por meio da redução de gastos obrigatórios[1].
Mas a EC 95 já trazia um instrumento para reduzir despesas: o congelamento do mínimo obrigatório de saúde. Curiosamente, os defensores da EC afirmavam que o teto de gastos é global e a saúde não seria afetada. No entanto, a EC 95 dispõe que o piso da saúde fica, a partir de 2018, congelado no valor de 2017 (15% da RCL, nos termos da EC nº 86, de 2015[2]), passando a ser atualizado apenas pela inflação do período. A partir de então, para cada exercício, a diferença entre o valor aplicado e o piso anteriormente vigente (EC 86) corresponde ao valor retirado do SUS em razão do congelamento do piso do setor. Em 2019, a perda para o SUS foi de R$ 13,5 bilhões. Em 2020, deve girar em torno de R$ 10 bilhões.
A redução do orçamento se dá num contexto em que há piora recente da mortalidade infantil, aumento de quase 500% nos casos de dengue em 2019, retorno dos casos de sarampo e emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, para citar algumas questões urgentes.
A estimativa das perdas orçamentárias acumuladas entre 2018 e 2020 é de R$ 27,5 bilhões. Pode-se objetar que, em 2019, a arrecadação foi extraordinariamente impactada pelo megaleilão dos excedentes da cessão onerosa, que rendeu R$ 70 bilhões para a União, dos quais R$ 11,7 bilhões foram destinados aos entes subnacionais. Contudo, a indexação do piso de saúde à receita, extinta pela EC 95, era justamente uma maneira de repassar ao setor ganhos de arrecadação, mesmo que em função de fatores atípicos, tendo em vista a demanda por mais recursos pelas razões já expostas.
Na prática, a EC 95 permite que, havendo aumento da receita (como em 2019), este ganho não reverta para o financiamento do SUS. Não por outra razão, de 2017 a 2019, a despesa federal de saúde já caiu mais de 2 p.p da RCL, conforme o gráfico abaixo. Isto é, mesmo diante de demandas e custos crescentes, o Novo Regime Fiscal (EC 95) permite a retirada bilionária de recursos do SUS, que passa a representar uma fatia cada vez menor da RCL.
O Novo Regime Fiscal está na contramão do interesse popular. Se a crise econômica piora a qualidade de vida da população, o reforço da rede de proteção social é parte da solução. Mas por aqui vigora uma espécie de terraplanismo fiscal, em que tudo se resume a demonstrar aos donos do dinheiro que o teto de gastos (sem paralelo no mundo) é crível, alegando-se que o sacrifício (corte de gastos) será recompensado com prosperidade material no futuro (recuperação da economia).
Curiosamente, à direita e à esquerda, houve gritas em relação aos R$ 10 bilhões utilizados fora do teto para capitalizar empresas estatais em 2019. Até entre os críticos do Novo Regime Fiscal, houve quem tenha assinalado que a despesa primária em relação ao PIB cresceu em razão dos gastos não computados nos limites da EC 95. É claro que seria fundamental discutir outras possibilidades de alocação dos recursos, tendo em vista o seu efeito sobre a renda, o PIB, a desigualdade, entre outros.
No entanto, o mais grave, e que passou praticamente despercebido em 2019, é que o governo mira um subteto de gastos, já que a despesa ficou R$ 34 bilhões abaixo do limite da EC 95. Entre as razões para o feito está um erro de avaliação de R$ 12 bilhões no gasto de pessoal. Programa-se a despesa no teto, mas a execução fica abaixo dele, aumentando o resultado primário. Ao mesmo tempo em que se discute o possível estouro do teto e as “inevitáveis” restrições fiscais por ele impostas, há mais de R$ 30 bilhões de sobra em relação ao limite estabelecido.
Entre os terraplanistas fiscais, já se levantou o argumento de que a restrição do teto (que virou subteto) magicamente produziria alocação mais justa de recursos. O problema não seria o volume do gasto, mas a sua alocação. Num país desigual como o Brasil, é claro que a voz dos que dependem exclusivamente dos serviços públicos seria mero “ruído”, para usar a expressão de Rancière. O orçamento mais apertado em função das regras fiscais restritivas (teto, meta de primário e regra de ouro) é beliscado por reajustes salariais de corporações, emendas impositivas e subsídios a setores econômicos (como o diesel, em 2018). Enquanto isso, políticas sociais são desfinanciadas.
No caso da saúde, a perda em 2019, conforme exposto, foi de R$ 13,5 bilhões. Dentro dos valores executados pelo setor (R$ 122,3 bilhões), 10% já são controlados pelos parlamentares sob a forma de emendas impositivas e recursos de custeio dirigidos às suas bases eleitorais. O Parlamento retira recursos da saúde nas leis orçamentárias e por meio da aprovação de novas regras fiscais, ao mesmo tempo em que comanda parcela crescente do orçamento do setor.
Vale lembrar que o Brasil é caso único no mundo de sistema universal em que os gastos públicos representam menos da metade dos gastos totais de saúde. A exigência de redução das despesas nos próximos anos para ajuste ao teto seguirá convertendo subfinanciamento crônico em desfinanciamento do SUS, com impactos sobre a saúde da população. O sacrifício aumentará, mas o terraplanismo fiscal declarará que ainda não é o suficiente para redimir o Brasil.
*Bruno Moretti – É economista pela UFF, mestre em economia pela UFRJ, doutor e pós-doutor em sociologia pela UnB
**Ana Paula Sóter – É médica, doutoranda em Saúde Coletiva pela Unifesp.[1] Para maiores detalhes, ver: https://jornalggn.com.br/noticia/socorro-nao-estamos-em-emergencia-fiscal-por-bruno-moretti/.
[2] A EC 86 previu o escalonamento dos valores mínimos de aplicação de saúde, partindo de 13,2% da RCL e alcançando, em 2020, 15% da RCL. O Ministro Lewandowski deferiu liminar na ADI 5595, suspendendo o escalonamento, de modo que, sob a vigência da EC 86, o piso seria 15% da RCL.
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