A crise causada por bebidas alcoólicas adulteradas expõe o desmonte das proteções estatais e reforça a urgência de fortalecer a Política Nacional de Vigilância em Saúde.
Por: Ronald Ferreira dos Santos
A falsificação de bebidas alcoólicas que tem causado mortes, cegueira e intoxicações graves com o que estamos nos confrontando no Brasil, serve como um alerta sombrio sobre os riscos da desregulamentação e do desmonte das proteções estatais. Este cenário de emergência em saúde pública evidencia a necessidade urgente de se retomar e fortalecer a Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS), aprovada em 2018, como instrumento essencial para proteger a vida da população brasileira. Diante de um contexto de enfraquecimento institucional promovido por políticas de liberdade econômica que privilegiaram o mercado em detrimento do controle estatal, a implementação plena da PNVS torna-se uma questão de soberania nacional e defesa do direito à saúde.
1. A Política Nacional de Vigilância em Saúde: uma conquista ameaçada
A PNVS, instituída pela Resolução CNS nº 588/2018, representa um marco na organização do Sistema Único de Saúde (SUS) para abordar de forma integrada e transversal os riscos à saúde da população. Trata-se de uma política pública de Estado que tem como finalidade “a promoção e a proteção da saúde e a prevenção de doenças e agravos, bem como a redução da morbimortalidade, vulnerabilidades e riscos decorrentes das dinâmicas de produção e consumo nos territórios” .
A política compreende a articulação de quatro pilares fundamentais:
- Vigilância epidemiológica: monitoramento de doenças e agravos que podem afetar a população;
- Vigilância sanitária: controle da segurança de alimentos, medicamentos e produtos;
- Vigilância ambiental: acompanhamento do impacto do meio ambiente na saúde;
- Vigilância em saúde do trabalhador: proteção da saúde de quem trabalha .
A PNVS é clara ao estabelecer que sua incidência “se dá sobre todos os níveis e formas de atenção à saúde, abrangendo todos os serviços de saúde públicos e privados, além de estabelecimentos relacionados à produção e circulação de bens de consumo e tecnologias que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde” . Esta abrangência é crucial para compreender seu potencial na abordagem de problemas complexos como o atual surto de intoxicação por metanol.
2. A crise do metanol: um retrato do desmonte das proteções estatais
Os recentes casos de intoxicação por metanol em São Paulo ilustram com dramaticidade as consequências da fragilização dos mecanismos de controle sanitário. Estamos diante de:
- 22 casos de intoxicação por metanol (entre suspeitos e confirmados);
- 5 mortes relacionadas ao consumo da substância;
- Vítimas com sequelas graves, incluindo cegueira irreversível ;
- Mais de 800 garrafas de bebidas apreendidas apenas na capital paulista;
- Estabelecimentos interditados por apresentarem “risco iminente à saúde pública” .
Este cenário crítico não é acidental. Pesquisa da Federação de Hotéis, Restaurantes e Bares do Estado de São Paulo (Fhoresp) já alertava em abril de 2025 que 36% das bebidas comercializadas no Brasil eram fraudadas, falsificadas ou contrabandeadas, sendo que uma em cada cinco garrafas de vodca vendidas no país era adulterada . O problema era conhecido, mas a capacidade de enfrentá-lo foi sistematicamente enfraquecida.
3. A contrarreforma: liberdade econômica versus proteção à saúde
Os governos de Temer e Bolsonaro implementaram uma agenda regulatória que operou na contramão da proteção sanitária, sob o argumento da necessária “modernização” e “desburocratização”. A Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) tornou-se o epicentro deste projeto, que:
- Fragilizou o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, reduzindo sua capacidade de controle e fiscalização;
- Criou obstáculos à atuação regulatória do Estado em setores essenciais à saúde pública;
- Estabeleceu o “ponto por exceção”, que dificulta a fiscalização trabalhista e abre espaço para a precarização;
- Ampliou as jornadas de trabalho e reduziu a proteção aos trabalhadores, afetando sua saúde e segurança.
Esta orientação política coincidiu com o esvaziamento de conselhos deliberativos como o Codefat, responsável por políticas de trabalho e renda, e a extinção do Ministério do Trabalho, transformado em secretaria do Ministério da Economia . O resultado foi um ambiente institucional enfraquecido e menos capaz de proteger os cidadãos dos riscos decorrentes das dinâmicas de produção e consumo.
4. A vigilância em saúde como instrumento de resistência e reconstrução
Diante deste cenário, a implementação da PNVS representa muito mais do que a execução de uma política setorial – é um projeto de reconstrução nacional e reafirmação do Estado como garantidor de direitos. Sua efetivação permitirá:
4.1. Fortalecimento da capacidade de resposta a emergências sanitárias
A PNVS define a “emergência em saúde pública” como “situação que demanda o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública” . A política estabelece mecanismos para uma atuação rápida e coordenada entre os entes federativos, essencial para conter crises como a do metanol.
4.2. Articulação intersetorial e integração de saberes
A Política “compreende a articulação dos saberes, processos e práticas relacionados à vigilância epidemiológica, vigilância em saúde ambiental, vigilância em saúde do trabalhador e vigilância sanitária” . Esta visão integrada é fundamental para enfrentar problemas complexos que envolvem desde a produção ilegal de bebidas até sua comercialização em estabelecimentos formais.
4.3. Proteção dos mais vulneráveis
A PNVS deve “priorizar, entretanto, territórios, pessoas e grupos em situação de maior risco e vulnerabilidade, na perspectiva de superar desigualdades sociais e de saúde e de buscar a equidade na atenção” . Em um país marcado por profundas assimetrias, este compromisso com a equidade é vital.
4.4. Transversalidade das ações de vigilância
O texto da política é claro ao afirmar que ela deve contribuir “para a integralidade na atenção à saúde, o que pressupõe a inserção de ações de vigilância em saúde em todas as instâncias e pontos da Rede de Atenção à Saúde do SUS” . Isto significa que a vigilância não pode ser um apêndice, mas deve estar no centro do modelo de atenção.
5. Conclusão: pela vida e pela saúde como direitos fundamentais
A tragédia do metanol não é um evento isolado, mas sim um sintoma do desmonte sistemático das estruturas de proteção social e sanitária no Brasil. As vidas perdidas, as famílias destruídas e as sequelas permanentes sofridas pelas vítimas clamam por uma resposta firme e coordenada do Estado brasileiro.
A plena implementação da Política Nacional de Vigilância em Saúde representa um caminho para reconstruir a capacidade de o Estado proteger sua população dos riscos inerentes às dinâmicas de produção e consumo. Mais do que isso, significa reafirmar o compromisso constitucional com a saúde como “direito de todos e dever do Estado”, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos.
Em um momento em que o Brasil busca superar os legados nefastos dos governos que privilegiaram o mercado em detrimento da vida, a PNVS oferece um roteiro para reconstruir um país mais justo, saudável e seguro para todos os seus cidadãos. A proteção da saúde não é um custo, mas um investimento civilizatório que não pode ser sacrificado no altar do lucro e da desregulamentação.
Ronald Ferreira dos Santos
Coordenador do Movimento Nacional Saúde pela Democracia + SUS é + Brasil